“Nossas definições de masculinidade fazem
os homens sentirem que fracassaram”, diz antropóloga
O ser humano é um
animal muito raro em termos de sexo e reprodução quando comparado a outros
primatas e mamíferos. Na lista de excentricidades está o fato de que os machos do Homo
sapiens cuidam cada vez mais de seus filhotes. Sarah
Blaffer Hrdy (Estados Unidos, 1946) é uma antropóloga e primatóloga
conhecida por seus livros sobre a evolução das mulheres, das mães e dos
cuidados compartilhados. Em seu último livro Father Time: A natural
History of Men and Babies (que, no próximo ano, será publicado em
espanhol pela Captain Swing) ela se concentra nos homens para quebrar
preconceitos biológicos e sociais sobre o papel que desempenham na criação dos
filhos.
A tese de Blaffer
Hrdy resume-se no fato de que as duras condições de vida dos nossos
antepassados forçaram todo o grupo a se dedicar aos cuidados, inclusive os
homens. Mais tarde, o aparecimento dos Estados e do patriarcado dividiu os
papéis de gênero e, com eles, o cuidado. Somente os avanços da modernidade
(do feminismo à
mamadeira) trouxeram à tona algumas características de nossa espécie que
estavam escondidas há muito tempo. Sua conclusão pode não parecer surpreendente
hoje: nada em nossa biologia impede que os homens sejam capazes de cuidar dos
pequenos tão bem quanto suas companheiras.
Nota: a língua inglesa
permite fazer uma diferenciação entre fathers e parents,
mas ambas as palavras são traduzidas para o espanhol [e o português] como
“pais”. Para maior clareza, nesta entrevista o termo “pais” referir-se-á sempre
ao plural de “pai”, salvo indicação em contrário para esclarecer que também
inclui as mães.
<><> Eis a
entrevista.
·
São os mamíferos e primatas “bons” pais?
Cinco porcento dos
mamíferos são bons pais, mas a maioria não é. Em relação aos símios, somos
grandes exceções: alguns macacos como os saguis, micos e lêmures têm muito
cuidado paterno, mas isso não é visto em nenhum dos grandes símios dos quais
fazemos parte. Chimpanzés, bonobos,
orangotangos e gorilas são parentes muito próximos e os machos não se importam
com filhotes pequenos.
Há casos, como o de um
chimpanzé macho adulto num zoológico que adotou um órfão que estava quase
prestes a desmamar, mas são exceções. Acontece que os circuitos neuronais
existem, as inclinações existem, mas as condições para que despertem são muito
raras. Na natureza, não creio que um chimpanzé macho teria acesso ao bebê de
uma mãe, porque são muito protetoras com seus recém-nascidos.
·
Como surgiu uma exceção como a nossa?
Tudo começou com a
evolução dos mamíferos, porque a fertilização interna significa que os machos
não podem ter certeza da sua paternidade. Os primatas ainda menos: desde que
existe o infanticídio, as fêmeas acasalam com muitos machos para manipular as
informações sobre a paternidade. Assim, a evolução selecionou os machos de
primatas para ficarem perto das fêmeas após o acasalamento, algo incomum para
os mamíferos. Não era para cuidar dos pequenos, mas para protegê-los de serem
mortos por outro macho e para salvaguardar o seu acesso à fêmea. A partir daí
tem a ver com o tempo e a proximidade íntima que passam com os bebês desde o
nascimento, e que parece ativar antigos potenciais [do cérebro orientado para o
cuidado paterno].
·
Tudo começou antes da nossa espécie?
Existem circuitos
neuronais e moléculas, ancestrais da ocitocina e da prolactina, por exemplo,
que já estavam presentes nos peixes. O hormônio da lactação já existia nos
peixes muito antes da evolução dos mamíferos, há mais de 400 milhões de anos.
Temos esses genes dentro de nós, fósseis herdados de nossos ancestrais
vertebrados. O cuidado parental em peixes nem sempre existe, mas quando existe
é sempre masculino. São os machos que protegem o ninho, os ovos e os filhotes,
e os circuitos para isso parecem ser persistentes. A mãe natureza,
minha metáfora pessoal para a seleção natural, é muito econômica. Guarda esses
ingredientes na despensa e se precisar deles depois vai lá pegá-los. Se
existirem condições que afetem o sucesso reprodutivo e a sobrevivência, essas
características serão favorecidas pela evolução.
·
A ‘mãe natureza’ tinha os ingredientes. Por
que os nossos antepassados humanos tinham necessidade deles?
Nossa espécie tem uma
maturação muito lenta, com crias muito caras que demoram muito para se
defenderem sozinhas. Não teríamos sobrevivido no Pleistoceno se as
mães não tivessem tido muita ajuda. Antes, presumia-se que isso vinha do pai, a
hipótese do homem caçador. O problema é que os etnólogos que trabalharam com
pessoas como os hadza demonstraram que um pai sozinho não pode fornecer carne
suficiente para manter vivos um bebê e a mãe. Tinha que haver partilha e mais
de um homem caçando.
A maior parte das
calorias provavelmente veio de alimentos vegetais coletados pelas mulheres.
Necessitava-se de uma grande variedade de alomães [membros do
grupo que não são a mãe e que podem ser homens ou mulheres] além das mães, e os
pais ajudavam quando estavam presentes. Essa criação com os outros era
essencial. Hoje, muitos filhos de caçadores-coletores crescem em comunidades
onde seus pais não estão presentes e são alimentados da mesma forma que todos
os outros.
·
A criação humana não é tarefa nem de um nem
de dois?
Em Mothers and
Others [2009] apresentei a ideia de que os seres humanos eram
criadores cooperativos, porque as mães deviam ter tido ajuda para manter os
seus bebês vivos. Eu era conservadora e disse que tudo começou no Pleistoceno,
com o Homo erectus. Há cerca de 1,8 milhão de anos, começávamos a
desmamar os bebês mais cedo e as mães tornavam-se muito mais dependentes dos
outros, mas na realidade todos dependiam mais dos outros. Partilhar a comida
foi uma mudança radical na evolução humana junto com a linguagem.
Já escrevi muito sobre
quanto apoio as mães precisam, porque é muito difícil para uma mulher cuidar de
um bebê completamente sozinha, mas acho que não ressaltei o suficiente quanto
apoio os pais precisam. Até eles precisam de muita ajuda, e também de um aval
social. Ninguém deveria ter de cuidar de um bebê sozinho 24 horas por dia.
·
A necessidade da criação cooperativa fez
com que todos nós evoluíssemos para sermos cuidadores?
Penso que a maioria
dos humanos, talvez todos, tem um substrato aloparental no cérebro que nos
torna receptivos aos bebês. Os homens que estão em proximidade íntima e
prolongada atingem um ponto crítico que estimula essas áreas cerebrais antigas.
No livro especulo que
a decisão de cuidar – ou não – é tomada no córtex pré-frontal do cérebro do
homem. É uma porção muito nova que evoluiu na última metade
do Pleistoceno, quando começou o cuidado cooperativo. Acho que o córtex
pré-frontal e a criação cooperativa evoluíram juntos.
No entanto, um estudo
de 2014 sobre casais de homens homossexuais que cuidavam de bebês desde o
nascimento, sem nenhuma mulher envolvida, revelou que o que estava acontecendo
nos seus cérebros não ocorria apenas no córtex frontal: também envolvia áreas cerebrais
muito antigas, profundamente envolvidas no cuidado materno, como o sistema
límbico, o hipotálamo e as amígdalas.
·
No livro, você argumenta que mudanças
socioculturais, como o patriarcado, distanciaram os homens e os bebês porque os
Estados precisavam de soldados e mães. O feminismo moderno contribuiu para
trazer à tona a nossa biologia oculta?
As mães sempre
trabalharam, mas antes não recebiam uma remuneração significativa, mas à medida
que o mundo mudou e elas começaram a contribuir significativamente para a
economia familiar, os homens reconheceram que precisavam dos seus rendimentos.
Queriam ajudar mais, as ideologias estavam mudando, as rígidas normas de gênero
estavam afrouxando e os homens podiam expressar sentimentos de cuidado para com
os outros com um pouco mais de facilidade, sem serem desprezados.
A sociedade estava
mudando de uma forma que possibilitava aos homens passar mais tempo perto das
crianças, uma coisa às vezes até necessária. Quando os homens passam mais tempo
próximos e cuidando dos bebês, este potencial ancestral que não tinha sido expresso
ao longo da evolução, mas que agora está sendo exposto pela primeira vez em
centenas de milhões de anos, é despertado e ativado. É algo que me impressiona.
Os desenvolvimentos
tecnológicos também contribuíram, juntamente com as mudanças históricas,
ideológicas, socioeconômicas e educacionais, para os direitos e a influência
das mulheres. O leite já foi essencial para a sobrevivência, mas isso mudou com
as mamadeiras com bicos de borracha e as melhorias na fórmula do leite. Além
disso, temos extratores [de leite], então não há mais necessidade de ter a mãe
por perto.
No entanto, não sei se
isso acontece na Espanha, mas está certamente acontecendo no meu país: há
um enorme retrocesso em relação aos direitos das mulheres, especialmente contra
os direitos reprodutivos. E devo dizer que esta história termina quando as
mulheres perdem a autonomia reprodutiva.
·
O que você quer dizer com “esta história
termina”?
Se as mulheres já não
conseguem controlar quando dão à luz, pensa no quanto isso afeta o seu acesso à
educação, o seu desenvolvimento profissional e a sua capacidade de trabalhar
fora de casa. De repente, uma mulher que quer sustentar a sua família só pode
fazê-lo, mais uma vez, com o apoio masculino, porque ela sozinha não pode
fazê-lo. [Controlar quando dão à luz] foi uma grande mudança, e se houver uma
guerra toda a ênfase recai sobre a necessidade de guerreiros do sexo masculino
para proteger o povo. Temos uma congressista nos Estados Unidos que
diz que precisamos de mais masculinidade tóxica, e
não menos, porque precisamos de guerreiros ferozes.
Vemos essa busca
masculina por status, de querer ser dominante, o macho alfa, nos homens. Trump, Putin e Netanyahu preocupam-se
com o seu status e com a possibilidade de permanecerem fora da
prisão. Eles têm impulsos sexualmente selecionados descontrolados. É uma
masculinidade nostálgica.
·
Como lutar contra esses impulsos que também
têm um fundo biológico?
Somos humanos,
passamos por períodos em que éramos muito dependentes dos outros e nos
preocupávamos com a nossa reputação: é aqui que entra em jogo a seleção social,
à qual estranhamente os humanos são suscetíveis porque se preocupam com o que
os outros pensam deles. Esta é uma proteção contra os impulsos sexualmente
selecionados desenfreados, que podem levar à destruição do seu grupo.
No livro menciono uma
espécie de macaco em que a cada 27 meses entra um novo macho, expulsa o morador
e mata todos os bebês. Se isso acontecer com frequência suficiente, esses
grupos desaparecem. Se um destes líderes, desesperado por status acima de tudo,
iniciar uma guerra nuclear ou não se importar com as mudanças climáticas, isso
poderá levar à destruição da sua própria posteridade. Se a seleção sexual
estiver no comando, tudo o que importa é o seu status pessoal. Precisamos que
as pessoas se preocupem com o mundo que oferecerão aos seus herdeiros.
·
É por isso que você diz no livro que as
crianças estão em melhor situação em sociedades onde as mulheres têm mais
poder?
Se tivermos sociedades
em que os homens estão mais envolvidos com as crianças, eles também se
preocupam, mudam as suas prioridades, tornam-se mais maternais. Não
creio que os homens sejam o problema; o problema é a seleção sexual irrestrita.
Os homens têm dentro de si o potencial para cuidar, só precisa ser exercitado.
Isto cria “ambientes mais agradáveis”, um termo para peixes, aves e espécies em
que as fêmeas selecionam os parceiros com base na sua utilidade para a prole,
resultando numa maior sobrevivência da prole.
Os bonobos machos
também brigam, mas nunca matam ninguém e não existe infanticídio, são muito
menos agressivos e violentos. Os chimpanzés às vezes tentam eliminar o grupo
vizinho, e algumas sociedades humanas também o fazem e estão fazendo isso neste
exato momento.
·
Que conselho daria a um futuro pai?
Ah, o meu principal
conselho seria para os legisladores: precisamos de uma licença parental mais
longa, horários de trabalho mais flexíveis e mais apoio, tanto para as mães
como para os pais e para aqueles que os ajudam. O velho debate sobre se é
melhor o cuidado em creche ou o maternal estava muito errado, porque sempre
evoluímos como uma espécie com cuidado maternal, o que faz com que nossos
filhos sejam mais empáticos e mais capazes de se comunicar. Há muitas
evidências de que o bom cuidado prestado por outras pessoas é altamente
benéfico para o desenvolvimento infantil.
Em vez do velho
debate, hoje a questão é simplesmente pagar por essas coisas e fazer com que os
governos reconheçam que isso é benéfico. Relatórios de empresas de consultoria
mostram que seus resultados melhoram se seus funcionários estiverem mais satisfeitos
com a vida familiar e com o equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Um
estudo da Harvard Business School diz que mesmo os homens muito ricos
querem passar mais tempo com as suas famílias. É uma coisa geracional e é
incrível a rapidez com que as coisas mudaram ao longo da minha vida. Mudaram
não apenas as oportunidades das mulheres, mas também as dos homens.
·
Um dos estudos mais famosos que você cita
no livro é aquele que mostra que os níveis de testosterona caem com a
paternidade. Esses estudos são comunicados de forma excessivamente negativa,
com certo sarcasmo?
Um estudo longitudinal
muito bem realizado analisou os mesmos homens desde o nascimento, durante a
infância, durante a puberdade, antes do casamento, depois do casamento e depois
de ter um filho. Foi quando a testosterona caiu. Na sociedade ocidental há tanta
ênfase na genitália masculina... às vezes os homens comparam seus órgãos
genitais. Portanto, a ideia de que a testosterona diminui depois que os homens
passam muito tempo com os bebês, embora não permaneça sempre baixa mas depois
suba, incomoda alguns homens. Isto tem a ver com as nossas definições de masculinidade: se a
definimos como ser uma pessoa boa e amorosa, o problema desaparece.
·
A masculinidade também precisa ser
redefinida?
Nossas definições de
masculinidade, de que os homens devem ser fortes e emocionalmente seguros e
dominantes e nunca podem mostrar fraqueza, prestam um péssimo serviço aos
homens. Quando olhamos para os dados nos EUA sobre as “mortes por
desespero”, overdoses e suicídio, três em cada cinco são homens. Muitos homens
de meia-idade estão tão zangados e magoados que sentem que perderam o seu
propósito. Tinham a ideia de que deviam ser o provedor da família, o que nunca
foi possível: não foi assim no Pleistoceno e não é hoje. Não é
possível que um estilo de vida de classe média possa ser sustentado por um
único homem, mas sentem que fracassaram e que uma mulher tomou o seu emprego.
O fato de que os
homens manifestem seus sentimentos por meio do cuidado e terem uma nova fonte
de satisfação e propósito em suas vidas lhes faz muito bem. Não deveria ser uma
fonte de queixa, mas é para muitos e tem a ver com as nossas definições muito tendenciosas
e unilaterais de masculinidade.
·
No livro você menciona o conceito de
“paternidade múltipla” que algumas culturas possuem, em que alguns homens
consideram como seus filhos aqueles que sabem que não são seus filhos. Estamos
muito obcecados com genes?
Não creio que isso [a
obsessão pelos genes] tenha servido para alguma coisa. Foram encontradas
dezenas de tribos na América do Sul com essas crenças, depois se viu
a mesma coisa na África Central. É muito mais comum do que se pensava, e
há muitas razões para isso, como quando os recursos são escassos e a mãe
precisa de mais ajuda.
Também reduz a tensão
dentro do grupo, não que o ciúme sexual desapareça, mas o modera: se algo
acontecer comigo, meus filhos serão mais bem cuidados. A essa altura [os pais
não biológicos] já passaram algum tempo com esses bebês e passaram a amá-los.
Há 11 milhões de crianças nos Estados Unidos vivendo como enteadas e
muitas estão bem. Um estudo realizado na Alemanha mostrou que alguns
padrastos que passam muito tempo com estas crianças investem nelas quase tanto
como o pai [biológico].
·
Como será o pai do futuro? Aonde essa
evolução nos levará?
É muito difícil e não
há provas de que isso vá acontecer, mas poderíamos evoluir para cuidados
masculinos obrigatórios se o fizéssemos o suficiente e isso afetasse a
sobrevivência infantil. Dependerá de onde os homens veem o seu interesse
próprio alinhado, mas não creio que tenhamos esse tempo. Vejo ameaças como as
mudanças climáticas. Se houver uma guerra, todas as apostas na criação dos
filhos serão canceladas. E quem se importará? Já estamos numa crise de
cuidados, é óbvio que não há cuidados suficientes e há muitas crianças
abandonadas no mundo. E haverá ainda mais. Se, porventura, as guerras
na Ucrânia e em Gaza acabarem, haverá muitos órfãos.
Fonte: Entrevista com
Sarah Blaffer Hrdy para Sergio Ferrer, em El Diario - tradução do Cepat, para
IHU
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