"NEYMARISMO" X FRANCESES: Futebol
e ativismo combinam?
O futebol no Brasil é
mais do que um esporte, é um fenômeno social e econômico que movimenta bilhões
de reais e emprega milhões de pessoas. Este texto examina como o futebol pode
servir como um veículo de transformação social, destacando exemplos históricos
como a Democracia Corintiana, que promoveu engajamento social e político entre
os jogadores. Em contrapartida, analisamos o “Neymarismo”, uma tendência
contemporânea que reflete a alienação dos jogadores brasileiros das questões
sociais e políticas, em contraste com o ativismo dos jogadores franceses contra
a extrema direita. Também discutimos o potencial do futebol para influenciar
positivamente a sociedade, especialmente na inclusão e ascensão social de
negros e pobres, e a importância do engajamento dos atletas em promover valores
de igualdade, justiça e inclusão.
• O futebol é uma máquina econômica
O futebol é uma das
indústrias mais lucrativas do Brasil. Em 2023, o mercado do futebol brasileiro
movimentou aproximadamente R$ 7,5 bilhões, destacando-se como um motor
econômico vital do país. As principais fontes de receita incluem os salários
dos jogadores, a venda de ingressos, os direitos de transmissão e os
patrocínios. Esse robusto ecossistema não apenas entretém milhões de fãs, mas
também emprega diretamente cerca de 300 mil pessoas e indiretamente outras 2
milhões, evidenciando sua importância para a economia nacional.
Um exemplo emblemático
de como o futebol pode servir como um veículo de transformação social é a
Democracia Corintiana. Durante a década de 1980, os jogadores do Corinthians
adotaram um modelo de gestão participativa, em que todas as decisões do clube
eram tomadas de forma democrática, sem hierarquias rígidas. Esse movimento não
apenas melhorou o desempenho do time dentro de campo, mas também trouxe
questões sociais e políticas para o centro das atenções, demonstrando o poder
que os atletas possuem quando se unem por uma causa maior. Esse processo
questionou tanto a ditadura militar quanto a falta de políticas que
fortalecessem os profissionais do futebol em detrimento dos altíssimos lucros
dos cartolas e empresários. Lideraram o movimento: Sócrates, Casagrande,
Wladimir, Zenon, Biro-Biro, dentre outros.
• Alienação dos jogadores brasileiros e o
contraste com a atuação dos jogadores franceses
Enquanto a Democracia
Corintiana serve como um exemplo inspirador do engajamento social dos atletas,
a atual geração de jogadores brasileiros parece cada vez mais alienada das
questões sociais e políticas. Esse fenômeno, que pode ser chamado de “Neymarismo”,
reflete a postura de muitos jogadores brasileiros que se mostram distantes da
realidade de pobreza e violência racial/social que afeta o país. O próprio
Neymar, apesar de ter sofrido com o racismo ao longo de sua carreira, falha em
debater e apoiar de forma efetiva a luta contra essas injustiças devido à sua
postura política de direita.
Um exemplo recente de
como essa alienação contrasta com o ativismo de jogadores em outros países pode
ser visto na França. A extrema direita francesa, representada principalmente
pelo partido Rassemblement National (RN), propôs uma agenda que inclui políticas
anti-imigração, nacionalismo extremo e a promoção de valores tradicionais que
muitas vezes marginalizam minorias étnicas e religiosas. Em resposta, os
jogadores franceses, muitos dos quais são de origem imigrante, utilizaram sua
visibilidade e influência para se posicionar contra essas ideologias, mostrando
solidariedade e resistindo ao avanço dessas políticas discriminatórias.
Recentemente, Kylian
Mbappé, um dos jogadores mais influentes do mundo, manifestou-se publicamente
contra as políticas da extrema direita francesa, defendendo a diversidade e a
inclusão no esporte e na sociedade. Além disso, Raí, ex-jogador do São Paulo e
da seleção brasileira, e irmão de Sócrates, um dos líderes da Democracia
Corintiana, também se posicionou de forma enfática contra o avanço da extrema
direita na França, destacando a importância de combater o racismo e a
xenofobia.
Os jogadores de
futebol, em sua maioria, vêm de origens simples, filhos da classe trabalhadora.
Cresceram em ambientes onde as dificuldades econômicas eram constantes e
testemunharam de perto as lutas de seus pais para sustentar a família em meio a
um sistema capitalista que frequentemente explora e marginaliza os
trabalhadores. Diante dessa realidade, seria natural que esses jogadores
desenvolvessem um sentimento de classe, compreendendo a necessidade de lutar
contra um sistema que perpetua a desigualdade e a pobreza. Embora seja legítimo
que eles queiram acessar melhores condições de vida e desfrutar de bens e
prazeres antes inacessíveis, suas vivências deveriam inspirá-los a combater as
injustiças que conheceram tão bem. Afinal, o capitalismo se alimenta das
mazelas da pobreza, e quem já viveu isso tem um papel crucial na promoção de
uma sociedade mais justa e igualitária.
• A superficialidade e falta de
engajamento
Vivemos uma geração de
jogadores que, apesar de sua enorme influência e visibilidade, permanecem
alheios às lutas sociais e políticas de seu país. Neymar, o exemplo mais
proeminente, é um jogador que escolheu um caminho que não o permite debater ou
apoiar efetivamente a luta contra essa e outras formas de injustiça. Seu
recente documentário na Netflix é um reflexo claro disso. O filme pinta um
retrato de um jovem superficial, fútil e mimado, sem qualquer profundidade ou
consciência social.
Enquanto o
documentário tenta mostrar o lado humano e os desafios pessoais de Neymar,
falha em abordar questões mais profundas e relevantes, como o impacto de sua
influência na sociedade ou sua postura política e social. Em um momento em que
o Brasil enfrenta crescentes desafios sociais e políticos, a falta de
engajamento de figuras públicas como Neymar representa uma oportunidade perdida
de promover mudanças significativas.
O futebol brasileiro
possui um imenso potencial econômico e social. Enquanto continua a gerar
bilhões de reais e milhões de empregos, ele também tem a capacidade de ser um
agente de transformação social. O exemplo da Democracia Corintiana nos anos
1980 e o recente ativismo dos jogadores franceses contra a extrema direita
mostram que os atletas podem e devem se envolver em questões além do campo de
jogo. A alienação dos jogadores brasileiros contemporâneos, exemplificada pelo
“Neymarismo”, representa uma perda significativa, não apenas para o esporte,
mas para a sociedade como um todo. Em tempos de polarização política e social,
é essencial que figuras públicas utilizem sua influência para promover valores
de igualdade, justiça e inclusão.
O futebol brasileiro
possui um potencial extraordinário para influenciar os jovens e a sociedade de
maneira ampla, indo muito além do mero entretenimento esportivo. Se os
jogadores utilizassem sua posição privilegiada para promover mudanças sociais,
poderiam exercer um impacto significativo, similar ao ativismo observado entre
os jogadores franceses, que usam sua visibilidade para lutar pela igualdade.
Muitos desses atletas vivenciaram a pobreza e a miséria, tornando-os
especialmente sensíveis às injustiças sociais. No entanto, não se pode
culpá-los inteiramente por sua alienação. O capitalismo fomenta um fetiche por
bens e prazeres superficiais, alienando os indivíduos ao oferecer a promessa de
sucesso individual. Enquanto essa dinâmica persistir, as mudanças estruturais
serão difíceis e as injustiças continuarão a prevalecer.
Fonte: Por Herlon
Miguel, no Le Monde
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