Neoliberalismo na universidade pública
Os trabalhistas
ganharam as eleições na Inglaterra. Ante um esboço de comemoração, um amigo inglês
apressou-se em dizer: “Olhe, não se anime, eles já não são tão de esquerda”.
Tal confusão de fronteiras se repetiria em toda parte, a apagar distinções
outrora claras entre conservadores e progressistas. Estaríamos vivendo novos
tempos de pragmatismo político, em função do qual todos em muito se irmanariam
e, por isso mesmo, esquerda e direita já não se distinguiriam claramente por
suas práticas ou propostas, mas sobretudo por sua retórica.
Toda retórica tem
consequências, é claro; pode levar a políticas opostas e a resultados
distintos, mas, por vezes, acordos mais profundos podem unificar aqueles que
aparentemente se opõem de forma virulenta. Esse costuma ser o caso quando estão
envolvidos processos de transferência de recursos públicos.
Algumas áreas, é bem
verdade, nem sequer seriam contempladas em governos conservadores, mas os
métodos de distribuição podem ser assemelhados, como se já não houvesse um
vínculo procedimental intrínseco entre princípios, meios e fins da gestão
pública. A política não se demarcaria mais por princípios aplicados na longa
duração, mas por resultados imediatos.
Princípios nunca foram
o forte da política mais colada ao rés do chão – dessa que se institucionaliza
e assume protagonismo no dia a dia. Onde a surpresa, então? Em primeiro lugar,
no descaso recente com as instituições. Políticos ou gestores podem até sublimar
esse descaso com a justificativa de serem de esquerda; diriam assim
retoricamente que só os conservadores teriam algum respeito por tradições, como
as universitárias.
Em segundo lugar, na
defesa pura e simples do mecanismo mais eficaz. Eles reagiriam, pois, a nossas
objeções afetando sagacidade: seriam, afinal de contas, políticos. O resultado
desse desdém voluntário é claro: a mão invisível do mercado e o gesto bastante
visível dos governos minam a esfera pública e comprometem o controle social do
recurso público, sendo tais mecanismos uma ameaça a uma sociedade democrática,
para além de qualquer retórica.
Tal realismo político,
agora adotado por uma nova esquerda, uma esquerda com feição neoliberal, é
escandaloso em toda parte, compromete toda esfera pública, todo exercício do
comum, mas é sim especialmente doloroso vê-lo prosperar tanto nessa dimensão singular
que é a das universidades – equipamentos únicos por meio dos quais a tradição
de produção do conhecimento e de formação de pessoas nos traria as melhores
promessas de futuro.
Em uma perspectiva de
longa duração, universidades não deveriam flutuar ao sabor de interesses
particulares, porquanto configuram um investimento da sociedade, sendo nossa
reverência especial decorrente do reconhecimento desse seu papel estratégico
para a nação e, por conseguinte, do dever de vê-las protegidas em sua
universalidade e autonomia.
Custou-me, assim,
acreditar em um “card” eleitoral, no qual um candidato em atual campanha para a
reitoria de importante universidade enuncia com todo pragmatismo como uma de
suas bandeiras “incentivar e apoiar a captação de recursos extraorçamentários”,
propondo-se a criar “um setor para a orientação desses processos”. O que é
isso, companheiro? Certamente, não é um beijo. Ao transformar em virtude um tal
expediente que tem sido praticado em toda parte, o candidato enuncia um
verdadeiro escândalo, cabendo-nos até sugerir um nome para tal setor: “O
Balcão”.
Não quero nem posso
estimar se a plataforma do candidato é melhor ou não que a de seus
concorrentes. Tampouco penso que o problema seja mais grave em sua
universidade. Sugiro apenas que, ao ser enunciada essa proposta em uma
plataforma, temos um alerta para uma prática que se tornou sistêmica e,
enquanto tal, afeta e ameaça todas as universidades federais.
Com efeito, a captação
de recursos extraorçamentários sempre esteve entre as missões dos gestores, bem
como de pesquisadores, sendo louvados e destacados os mais hábeis
politicamente. Não obstante esse histórico relativamente normal, a ampliação da
discricionaridade coloca o problema em outra escala e o reveste de outra
significação.
Talvez a proposta do
candidato seja pensada, com invulgar inocência, como medida de eficácia e
realismo político. Se for assim, tem ao menos a virtude da transparência. De
modo explícito, porém, está adotando como política um mecanismo que, elevado a
um paroxismo, agride princípios mais republicanos e democráticos, compromete a
inteireza do sistema federal de educação superior e, enfim, solapa a autonomia
de cada universidade, transformando os melhores gestores em mediadores e os
piores em operadores de um sistema perverso.
Balcões informais, com
ou sem nome, mais ou menos ligados às administrações centrais, podem estar
espalhados por nossas instituições. Não por acaso, “contratadas” para o
desenvolvimento de projetos pelo governo ou pelo mercado, as universidades têm
agora um volume significativo de recursos correndo por fora. E esse volume é,
por vezes, bem maior do que o montante inscrito para o custeio da instituição
na Lei Orçamentária Anual (LOA) – já não nos parecendo haver, então, uma
diferença entre a fonte pública e a privada, uma vez que a autonomia se vê
ameaçada nos dois casos.
Importa insistir. A
ameaça não vem só de fora. Uma movimentação vai ao encontro da estreiteza dos
governantes que decidiram não ampliar o orçamento próprio das universidades
federais. É em função dessa deliberada restrição orçamentária que não se
consegue rodar a matriz Andifes há alguns anos.
E essa é sim uma
escolha, uma decisão, uma vez que, ao mesmo tempo, diversos ministérios –
especialmente, o da Educação – destinam recursos vultosos às universidades na
forma de recursos extraorçamentários. Com esse procedimento, temos mais
recursos de custeio no sistema, mas boa parte deles rodando por fora da matriz.
Vale aqui esclarecer.
Chamamos de “matriz Andifes” um modelo de partição de recursos implementado
depois de 1994, quando a distribuição do orçamento, por proposta da Andifes,
deixou de ser definida discricionariamente pelo MEC e passou a contar com uma modelagem.
Tal modelo de partição identificaria, em tese, o custo de manutenção de cada
universidade.
A matriz não distribui
todo o orçamento de custeio da universidade. Por exemplo, recursos de emendas
são inscritos na LOA, mas são erráticos e raramente constituem uma série
histórica. A matriz, sim, cria um importante solo comum. No caso, após muitos
estudos, chegou-se a uma formulação conceitual, traduzida em uma equação
matemática, que procura identificar o valor de uma unidade de custo do chamado
“aluno equivalente”. A matriz estabeleceria, então, a partir de dados do censo
das universidades, quantos alunos equivalentes teria cada instituição.
Como os principais
insumos desses cálculos são o número de alunos matriculados na graduação e na
pós-graduação e o “peso” dos cursos, há muito a discutir. A matriz está longe
de ser perfeita e não dá conta sozinha de todo problema, mas é um caminho comum
e transparente para alocação de recursos de custeio.
Além disso, como se
trata de uma modelagem desenhada para um sistema, o modelo pode comportar
gatilhos indutores, por meio dos quais o conjunto do sistema pode vir ao
socorro das instituições que acaso enfrentem dificuldades conjunturais, assim
como pode estimulá-las, visando a lhes garantir ou exigir a devida qualidade.
Muitos pontos podem
decerto ser questionados. Entretanto, em virtude de seu emprego regular, a
sociedade pode ser desafiada a indicar o modelo de universidade que, ao fim e
ao cabo, pretende valorizar. Não seria exatamente esse um debate urgente a ser
assumido não só pela própria Andifes, mas também pelas sociedades científicas
diversas, a SBPC, as Academias de Ciências, a Associação Nacional de Pesquisa
em Financiamento da Educação (Fineduca), o parlamento? Não deveria um tal
debate percorrer nossos conselhos, as representações sindicais locais e
nacionais, nossas categorias, nossas assembleias?
As questões são
muitas. Por exemplo, deve contar na matriz sobretudo o número de estudantes, na
forma atual do aluno equivalente? Devem ter um acréscimo as instituições que
abrigam estudantes em maior vulnerabilidade, incorporando-se à matriz o PNAES,
o programa nacional de assistência estudantil?
Devem ser reforçadas
instituições com desempenho excelente na graduação e na pós-graduação,
impactando esses dados o desenho da distribuição de recursos de custeio, de
sorte que os resultados da pesquisa, conquanto esta seja financiada em separado
pelas agências de fomento, poderiam ser capturados e interferir no desenho da
matriz?
Muitas, portanto, são
as questões que, envolvendo orçamento, permitem uma efetiva discussão coletiva
sobre a natureza e o futuro da universidade. Isso nos deveria convocar a todos
como sociedade e como comunidade universitária, não se resolvendo obviamente
nos bastidores. De todo modo, é imperioso e estratégico poder rodar a matriz
Andifes, ao tempo que a discutimos e aperfeiçoamos.
É claro que, por
severa a aritmética, é inevitável que, sem o aumento do total de recursos, a
aplicação automática da matriz prejudique algumas instituições – por mais que
se esforcem e sejam eficazes os captadores de recursos extraorçamentários. Na
situação indesejável ora enfrentada, sem recursos suficientes para uma
distribuição que garanta um mínimo necessário, a matriz continuará sem poder
ser rodada. Portanto, um aporte de mais recursos diretamente na LOA é
indispensável, e isso em um patamar bem mais elevado do que o atual.
Esse patamar é
passível de definição bastante objetiva e, ademais, republicana e transparente.
Trata-se de um aporte que deve poder colocar nossas instituições em linha de
conta, sendo comparadas por suas dimensões e suas qualidades. Somente assim,
por um processo de comparação e aferição de suas necessidades de funcionamento,
pode ser-lhes garantido o consignado no Artigo 55 da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação: “Caberá à União assegurar, anualmente, em seu Orçamento Geral,
recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento das instituições de
educação superior por ela mantidas”. Não é outro o dever do Estado.
Por outro lado,
mantida a singular situação de penúria em meio a uma injeção indireta e por
demais seletiva de recursos, um mecanismo de destruição se instaura e prospera.
Com esse mecanismo, estamos retornando na prática a um período discricionário
de distribuição de recursos, ou seja, a um procedimento que favorece os já
favorecidos, aprofunda a desigualdade entre as regiões e mesmo entre
pesquisadores, quebrando a comensurabilidade de nossas medidas acadêmicas e o
próprio sentido de um sistema federal de ensino superior.
A distribuição
discricionária deve, pois, ser combatida. Qualquer a motivação, o retorno
generalizado a um tal regime discricionário só pode trazer danos ao sistema –
danos, a longo prazo, irreversíveis.
Nas campanhas
eleitorais no âmbito da universidade, não tenho dúvida que quase todas as
candidaturas defenderão o aumento da assistência estudantil, a liberdade de
expressão, o combate às discriminações, a excelência na pesquisa, o
fortalecimento da extensão. É esse, afinal, o nosso ambiente. Algumas avançarão
em pautas identitárias, outras arriscarão inovações no ensino ou no emprego de
tecnologias digitais, inclusive na atividade da administração. Tratarão, muita
vez, como uma obviedade até o que ainda demanda cuidadosa discussão, sendo tão
corriqueiro o encantamento das comunidades científicas pelo que, bem ou mal,
pode ser etiquetado como um “progresso”.
Enfim, com a alma
lavada, provavelmente falarão em autonomia da universidade, conquanto talvez
estejam consentindo na prática (ou até em suas propostas) em que essa mesma
autonomia se veja destruída pela ação pervasiva de subordinação de parte
expressiva da pesquisa, do ensino, da extensão e até da administração da
universidade a recursos oriundos do mecenato parlamentar ou de termos de
execução descentralizada – todos eles, em sua maior parte, geridos doravante
por fundações de apoio às universidades.
Nesse cenário de
quebra da aura da universidade, de rebaixamento do pacto coletivo que a
sustenta, alguns chegam a pensar e até a formular: bobo será aquele que não
estiver se aproveitando, quem não estiver sendo beneficiado nem estiver
beneficiando alguém com bolsas e outros recursos. Cheguei a ouvir de um colega
que questionamentos só partiriam de quem não estaria sendo contemplado; e todo
um silêncio costuma cercar esse mecanismo, oferecendo-lhe uma tácita anuência.
Tão grave se torna a
doença que, uma vez disseminada e tornada moeda corrente, termina por
comprometer a higidez até de procedimentos que, ao longo dos anos, serviram
para carrear recursos necessários a pesquisas ou à extensão, mas não previstos
nas rubricas comuns. Antes, eram como um musgo que se colava à casca de uma
árvore sadia. Agora, uma vez distorcidos e hipertrofiados, tais expedientes
tendem a destruir a árvore mais frondosa como uma erva de passarinho.
O erro é generalizado,
com todas as exceções que sempre devemos registrar e louvar. É hoje claro,
porém: balcões existem com mais ou menos profissionalismo, dependendo seu
sucesso bem mais das gestões políticas do que das exclusivamente acadêmicas. O
erro é, assim, em primeiro lugar, da própria política governamental. Nesse
caso, pode ser motivado por um desprezo de fundo à universidade enquanto um
projeto autônomo e de longa duração.
Alguns realmente temem
a independência crítica da universidade ou a insultam como se fora um projeto
da elite. E, como não a prezam, mal conseguem esconder a repulsa que lhes causa
a ideia de que universidades tenham um voo próprio. As universidades são chamadas
apenas a servir aos projetos imediatos de governos, quando não a interesses
mais diretos de partidos (quaisquer partidos!), e não a um projeto de Estado.
O erro, porém, é
também daqueles que na universidade, por cansaço ou por convicção, não veem a
hora de obter recursos, mesmo que para isso precisem entregar os dedos para
ficar com os anéis. O erro é ademais das administrações que, sem estrutura, sem
pessoal, e carregando o próprio peso dos muitos controles (que muitos outrora
repudiavam como mera burocracia), aceitam ser reduzidas ainda mais e até
preferem transferir responsabilidades para as fundações.
O erro pode, enfim,
ser conjugado e sistêmico, não se restringindo ao território das universidades,
mas invadindo todo espaço público. Com certeza, a questão é mais ampla. Tais
práticas de sobre financiamento sempre são danosas à gestão pública e deveras
questionáveis. Na história do Brasil, talvez seja uma regra em prefeituras,
estados e a nível federal.
Erro é erro, puro e
simples, em toda parte. Agora, porém, uma esquerda neoliberal vê os ventos
soprarem nessa direção e esquece que tais práticas, no caso específico do
sistema das universidades e institutos federais, podem ser ainda mais perigosas
e lhes comprometer de todo a essência.
A universidade não é
imaculada, mas é um lugar em que isso jamais precisaria ocorrer, não sendo
redimido o procedimento se acaso alimentado por discursos que valorizam
qualquer oportunidade e costumam descambar para o mero oportunismo,
esquecendo-se a lição de que não se sobe em um cavalo apenas por ele estar
selado, sem que saibamos sequer aonde nos levará.
Como a voracidade é
grande, o montante disponível de recursos a serem captados pode agora
contemplar todas as áreas do conhecimento e não apenas as ciências mais duras.
Alguns até festejam a novidade de recursos jamais vistos em certos rincões da
cultura e da extensão (esses mais do governo que do mercado), que podem assim
passar a contemplar inclusive as humanidades e as artes. Esquecem, porém, que,
sendo discricionário esse procedimento, pode ser passageiro. Com sua adoção
indiscriminada, não se faz o principal: proteger a própria universidade, que,
esta sim, chova ou faça sol, sempre há de solicitar e prover ciência, cultura e
arte.
Uma vez identificado e
(como vimos) até celebrado como uma proposta de gestão, o erro passará a ser
também da comunidade universitária como um todo, caso esta não resista. Ou
seja, será de cada representante institucional, de cada gestor e, especialmente,
de nossas categorias, caso aceitem tais tendências como um destino inelutável
ou até queiram, na pura imediatez, beneficiar-se delas.
Não podemos, portanto,
fechar os olhos à dura realidade de que, diante dos mecanismos atuais, aos
quais alguns aderem com regozijo, o Programa Future-se não era mais que uma
brincadeira de criança. Que se verifiquem os grandes números. Que se veja como
um conjunto abundante de recursos já não se destina ao que é gerido
coletivamente pela própria universidade, ou seja, por sua administração, em
conformidade com as políticas aprovadas em seus conselhos.
Não há discurso sério
que possa, então, pretender transformar tal precariedade em virtude. Que se
pondere, portanto, sobre o risco de destinações vultosas e apressadas de
recursos (por vezes, aprovadas facilmente por nossas congregações) virem até a
minar ou a desviar o trabalho daqueles que, ao fim e ao cabo, têm dedicação
exclusiva ao ensino, à pesquisa e à extensão.
Afinal, práticas antes
parcimoniosas, e liberadas talvez por necessárias e bem justificadas,
simplesmente proliferam, comprometendo até o sentido outrora atribuído a uma
estrita e bem controlada complementação extraorçamentária. Com isso, padece
todo o sistema – como, de resto, costuma ocorrer a qualquer organismo quando há
ingestão excessiva de alimentos, qualquer a natureza ou procedência.
Não podemos aceitar
uma disjunção de teor quase apocalíptico. Ou a comunidade resiste de forma
séria à redução sistemática do orçamento das universidades, ou logo veremos o
fim da universidade como a conhecemos e a sonhamos. Se for assim, será uma
destruição para a qual nós também teremos contribuído – alguns por seus atos e
a maioria por repetidas omissões.
Se o pessimismo da
razão nos aproxima de constatações assim sombrias, a conclamação à resistência
não se ampara no vazio. Ela se enraíza na história e na vida de cada
universidade. Em sendo assim, o otimismo da vontade encontra sua força em um
corpo coletivo capaz de fazer ciência e de estar radicalmente irmanado aos
interesses mais profundos da sociedade – um corpo que, enfim, pensa, debate,
aprende, ensina, pesquisa, luta e dança.
Um corpo que sabe agir
com urgência ou pacientemente, pois sabe também fazer cessar procedimentos
insustentáveis, quando é então razoável suspender juízos e mais que prudente
recolher a mão.
Fonte: Por João Carlos
Salles, em A Terra é Redonda
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