Mauro Iasi: Quatro crises e
um programa
Antes de refletir
sobre a natureza do programa revolucionário para o Brasil, devemos relembrar
alguns pressupostos.
Tanto a estratégia
quanto a tática derivam de uma leitura da realidade. No entanto, tal
leitura se dá em dimensões qualitativamente diferentes. Enquanto a estratégia
pressupõe o conhecimento histórico da formação social em que atuamos, a tática
é a necessária mediação da estratégia no tempo presente.
A estratégia deve se
fundamentar no preciso estudo da formação social, seu desenvolvimento
histórico, a natureza particular do desenvolvimento do modo de produção
capitalista, no nosso caso de um capitalismo dependente e subordinado ao
imperialismo, do Estado burguês e da luta de classes. Mas, e isso é
fundamental, a estratégia não tem os olhos voltados para o passado, ela mira em
um determinado ponto no devir. Não se trata do objetivo final, mas do caminho
traçado de como chegar a este objetivo, portanto, a estratégia implica na
objetividade da análise e nas intenções dos sujeitos históricos.
A tática, mais
precisamente o conjunto das táticas, não pode operar em um ponto futuro, ela é
a mediação da estratégia no terreno concreto da história, naquilo que chamamos
de trama conjuntural, numa determinada correlação de forças, num certo momento
da luta de classes.
Daí podem derivar dois
erros fundamentais que acabam criando enormes problemas para nosso programa e
nossa ação política. De um lado, traduzir mecanicamente uma estratégia
para as ações táticas, o que leva ao discurso doutrinário e messiânico. De outro,
ficar preso aos limites do presente e perder de vista a dimensão estratégica, o
que leva à toda sorte de reformismos e, no limite, à conciliação de classes. No
primeiro caso temos o esquerdismo, no segundo a acomodação aos limites da
sociedade capitalista e a perda da perspectiva revolucionária.
A questão do programa
se insere neste delicado dilema. Ele não pode ser a mera afirmação de nossos
objetivos estratégicos, nem pode ser um conjunto de respostas pontuais para os
diferentes problemas da classe trabalhadora diante de uma determinada
conjuntura. O programa é a expressão concreta da estratégia mediado pelas
táticas, isto é, ao mesmo tempo que dialoga com as necessidades reais da classe
trabalhadora, o faz apontando para as determinações históricas das contradições
vividas por nossa classe e para nossas intenções futuras.
De maneira sucinta e
meramente introdutória, pensemos nosso país e seus dilemas no sentido que aqui
apontamos. Enquanto militante comprometido com a estratégia de meu
partido, penso que no Brasil confluem quatro crises particulares que em seu
conjunto expressam as contradições principais a serem enfrentadas em nosso
esforço coletivo de chegar ao programa da revolução brasileira.
A primeira crise é
aquela que se encontra na base do modo de produção e reprodução da
vida, em mudanças significativas no padrão de acumulação, nas relações de
trabalho e contratualidade, na relação entre produção, circulação e
consumo. Na base desta crise está a chamada reestruturação produtiva e uma
nova morfologia da classe trabalhadora, mas suas encontramos suas determinações
mais profundas na alteração qualitativa da composição orgânica do capital,
investindo cada vez mais proporcionalmente em capital constante do que em
capital variável (Mészáros, 2002; Antunes, 1999).
Esta crise se expressa
não apenas no desemprego de forma mais visível, mas também nas condições
contratuais, na intensificação brutal do trabalho e consequente adoecimento dos
trabalhadores, como também na subjetividade da classe fragmentada e serializada,
submetida à reificação e à alienação, na impossibilidade da reprodução da vida
que não seja subordinada ao capital.
A segunda crise é
aquela derivada do crescimento do capitalismo no campo e na formação de uma
nova estrutura agrária. Aquilo que eufemisticamente se chama de
“agronegócio”, nada mais é que o capitalismo no campo em sua fase monopolista,
altamente concentrado, expropriador e predatório. A ele se soma a extração
acelerada de matérias primas e recursos necessários ao ritmo da produção de
mercadorias.
Quando vemos as duas
crises em conjunto podemos constatar que elas resultam na intensificação das
expropriações, nos termos que são apresentados por Boschetti, Fontes, Bering e
outros (2018), produzindo uma intensificação extrema da formação de uma superpopulação
relativa. A expropriação no campo tinha um significado no longevo modelo
econômico brasileiro, o de formar o exército industrial de reserva, condição
básica para a exploração pelos monopólios transnacionais. Nas condições atuais,
do novo padrão de acumulação no campo e nas cidades, o que era um fator de
desenvolvimento, torna-se um entrave.
Esta contradição vista
em conjunto nos leva às duas outras crises: a ecológica e a urbana.
Tanto o padrão de
acumulação urbano industrial, como o crescimento do monopólio capitalista no
campo, implicam em um ritmo acelerado de mercadorias e a compressão do tempo de
produção, circulação e consumo. O resultado imediato de tal fato é a rápida deterioração
ambiental, uma vez que o sistema produtivo retira recursos da natureza em um
ritmo muito maior do que esta é capaz de se recuperar, produzindo mudanças
catastróficas nos biomas, no clima e na vida humana.
Da mesma forma, as
expropriações, seja pela alteração da composição orgânica do capital, seja pela
crescente expulsão dos trabalhadores do campo, em um contexto de subordinação
real do trabalho ao capital, promovem uma hipertrofia do espaço urbano com todos
os problemas que daí derivam. Se Lefebvre está certo, e creio que está, em
chamar a cidade de “cidade do capital”, a cidade de hoje é a cidade da crise do
capital plenamente desenvolvido. É no espaço urbano que as três primeiras
crises encontram sua síntese e revelam seu caráter destruidor. A cidade é a
expressão concreta da crise causada pelo monopólio capitalista na agricultura,
da crise de superacumulação e superprodução do capital industrial e da crise
ambiental, com agravantes na realidade urbana uma vez que a cidade da
crise do capital afeta diretamente a reprodução da vida, a moradia, a saúde, o
saneamento, a alimentação, o lazer, a cultura, as relações afetivas e todas as
áreas.
A crise em seu
conjunto, como crise do capital em seu máximo ponto de desenvolvimento, deve
ser compreendida ainda pelo caráter cada vez mais parasitário do capital, da
predominância do capital fictício e do capital portador de juros e daquilo que
Mészáros (2002) denomina de “ativação dos seus limites últimos”.
Como podemos ver, as
quatro crises estão interconectadas profundamente. Mas, ao que estão
interconectadas? A crise da acumulação capitalista, a crise agrária, a
crise ambiental e a crise urbana são a manifestação da crise do modo de
produção capitalista e, por consequência, do capitalismo dependente e
subordinado ao imperialismo. Mas, uma vez feita esta constatação, qual
seria a conclusão necessária?
Vejamos o problema
mais de perto. Caio Prado Jr. (1978) afirmava que um programa não pode ser
meramente a expressão do desejo, ou da constatação de uma injustiça e,
portanto, da busca moral. Para o marxista brasileiro do PCB, o programa
só pode derivar das contradições objetivas presentes em determinada formação
social e, mais do que isto, “sua potencialidade em projeção para o futuro”
(1978, p.20). Isto significa que cada elemento do programa é uma resposta a uma
determinada contradição objetiva que real ou potencialmente encontra expressão
na ação de sujeitos sociais, caso contrário é um mero desejo metafísico.
Desta forma, todos os
problemas que se apresentam em nossa formação social, na conjuntura presente,
seja a violência no campo, a fome, a violência nas cidades e suas formas mais
perversas como o racismo, a homofobia e a violência contra a mulher, a crise
nas políticas públicas, na saúde, na educação, o descaso total com a
cultura, a intensificação brutal do trabalho e a crescente perda de
direitos, as mudanças climáticas e a degradação ambiental, o ultraje histórico
contra os povos originários, a destruição da esperança dos jovens, o
crescimento assustador do irracionalismo religioso e/ou fascista, tudo enfim,
está articulado de uma maneira ou de outra às quatro crises aqui apontadas.
Voltando a Caio Prado
Jr., uma estratégia revolucionária e seu programa, devem se fundamentar nas
“questões pendentes e as soluções possíveis”, tendo como critério o fato que
certas ações agem no sentido de reforçar a conservação do quadro em que estas questões
estão presentes, ou, ao contrário, possam significar a “aceleração do processo
histórico, sua marcha para frente”. Dito de outra forma, o programa é a
maneira pela qual o objetivo estratégico de uma vanguarda pode converter-se em
motor de luta concreta de toda uma classe.
Nesta
direção, devemos começar por constatar que as crises descritas e suas
determinações, assim como as diversas questões que delas derivam, são expressão
do capitalismo plenamente desenvolvido nas condições da subordinação
imperialista e dependente. Neste sentido, o que hoje se apresenta como
especulações abstratas e metafísicas, nos termos de Caio Prado Jr., são as
ações que visam o desenvolvimento do capitalismo como solução para as questões
apresentadas. Desenvolver o capitalismo agravará a crise do trabalho, a crise
agrária, a crise urbana e a crise ecológica.
Neste sentido é que
definimos a estratégia e a natureza de nosso programa como socialistas, não
apenas como uma meta aberta ao devir, mas por que se ele quiser responder às
questões objetivamente colocadas tanto uma como o outro devem ser,
necessariamente, anticapitalistas. Diante disto, as mediações táticas e a
objetivação do programa se tornam, ou deveriam se tornar, o centro de nossa
preocupação.
Um dos problemas,
talvez o central, é que a conjuntura atual fez romper a conexão entre a
constatação anticapitalista e a meta estratégica socialista, o que em outros
momentos da história estava mais evidente. Isto se deve, em grande medida por
causa das experiências em transição socialista e seus revezes, a ofensiva
ideológica das classes dominantes e a desconstrução da classe trabalhadora
diante de suas derrotas.
Isto posto, o
plano tático deve ter por centro o árduo trabalho de reconstrução da classe
como sujeito, entendida na sua pluralidade e diversidade. Uma vez que o capital
se apresenta como força negativa universal, está dada a possibilidade da humanidade,
tendo por núcleo os trabalhadores, unificar todos os segmentos que vivem a
crise do capital nas mais diferentes formas particulares. Mas, para isso, é
necessário que se apresentem respostas às questões objetivas colocadas pelas
crises e é neste aspecto que o caráter anticapitalista deve se apresentar no
corpo das demandas concretas daqueles que compõe nosso sujeito em construção.
Não podemos neste
espaço listar exaustivamente cada uma destas questões, uma vez que estamos
convictos que programas revolucionários não são feitos nas redes sociais. O
caráter geral deve denotar nossa direção de desmercantilizar a vida em todas as
esferas essenciais, indicando os pontos concretos nos quais o capital subordina
a vida e as necessidades humanas ao processo de valorização e ameaça a
existência da humanidade. Cada ponto do programa deve ser entendido como o
impulso às lutas concretas dos diferentes segmentos que se chocam com o capital
em uma de suas facetas, um impulso que aponte para o futuro contra as amarras
aparentemente insuperáveis do presente.
Em uma entrevista
recente, José Dirceu, afirmou que governar o Brasil já é revolucionário. Com a
devida consideração que o personagem merece, devo apresentar minha
discordância. Governar o Brasil é muito difícil e, sem dúvida, manter-se
no governo exige muita habilidade, mas o caráter revolucionário ou não de um
governo ou de qualquer ação política deve ser julgado pelo fato de reforçar o
existente ou ser um impulso às lutas que são germes das transformações
necessárias. O governo de conciliação de classes, seu programa e,
fundamentalmente, sua estratégia, respondem às questões colocadas pelas crises
indicadas com ações programáticas que tem por eixo central gerar as condições
para que a acumulação capitalista possa seguir, gerando crescimento de
arrecadação que uma vez descontados os recursos que mantêm esta acumulação
possam, paulatinamente, amenizar as manifestações mais agudas da miséria
e atenuar, como se fosse possível, os efeitos deletérios do capitalismo sobre a
sociedade e o meio ambiente.
No lado oposto do
acomodacionismo conciliador, vemos num amplo leque da esquerda, dentro e fora
do PT, a mera apresentação da meta socialista em contraste com a acomodação à
ordem do capital, num esforço eticamente louvável e politicamente pouco eficaz.
Para piorar, no momento em que são obrigadas a dar respostas táticas concretas,
acabam escorregando para o desvio oposto limitando suas propostas e respostas
aos limites do imediatamente possível. Por isso é que todo esquerdista tende a
ser um reformista frustrado e sua crítica é mais uma autocrítica daquilo que,
na prática, ele não consegue ir além.
Nosso desafio é
compreender que as dimensões diferentes exigem tanto a firmeza estratégica
quanto a flexibilidade tática, como defendia Lênin (tão citado e tão mal
compreendido). Fica, então, aqui a metáfora que Sílvio Rodriguez nos
apresenta em sua música Fábula de os três hermanos. Na canção,
meu mestre cubano, nos conta que o primeiro irmão, mais velho, com medo de
errar andava sempre olhando para o chão e as pedras do caminho, por isso ficou
“escravo da cautela” e não pode ir longe com sua visão curta. O segundo irmão,
tentando evitar o erro do mais velho, mirou longe no horizonte e,
inevitavelmente, tropeçou nas pedras e buracos do caminho, ficando revoltado
por não conseguir chegar onde via. O terceiro, o menor deles, tentou manter um
olho no horizonte e o outro na caminhada, mas por tentar ver tudo acabou não
sabendo o que via e ficou vesgo. E acabaram-se os irmãos. Silvio insiste
durante toda a canção: “dime lo que piensas tu”?
Eu penso que sozinho…
ninguém consegue.
Fonte: Blog da
Boitempo
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