terça-feira, 9 de julho de 2024

Força Alpha: Como atua o grupo criado para combater tráfico de imigrantes na fronteira dos EUA

Um acontecimento fora do comum ocorreu na Guatemala, 15 meses depois que Marta Raymundo – uma mulher de 22 anos, procedente daquele país – foi encontrada morta perto de uma estrada no Texas, nos Estados Unidos.

Na manhã do dia 2 de agosto de 2022, policiais e fiscais guatemaltecos, com o apoio de agências do governo norte-americano, prenderam 19 pessoas em diversas operações surpresa, em diferentes locais da Guatemala. As buscas incluíram uma área montanhosa perto da fronteira com o México, com agentes protegidos por helicópteros.

Os detidos eram suspeitos de integrar uma organização de "coiotes" que levava migrantes sem documentos para os Estados Unidos através do México. Eles cobravam cerca de US$ 10 mil (cerca de R$ 54,7 mil) de cada pessoa pela travessia terrestre.

Entre os detidos, havia quatro homens procurados pelos Estados Unidos, acusados de serem membros da organização criminosa e responsáveis pela morte de Marta Raymundo. Eles a levaram pelo deserto até o Texas com outros migrantes sem documentos, até que ela morreu em condições sub-humanas. O corpo de Raymundo foi abandonado pelo caminho.

Washington classificou como "histórica" a extradição dos quatro guatemaltecos para os Estados Unidos, em março do ano passado. Foram as primeiras extradições realizadas na Guatemala por acusações de contrabando de pessoas seguido de morte.

Todos eles se declararam culpados em um tribunal do Texas e condenados a penas de 10 a 30 anos de prisão. Outros dois indivíduos também foram presos e condenados em relação ao mesmo caso.

Todo o processo, do apoio às autoridades guatemaltecas até a prisão dos suspeitos, sua extradição e julgamento, contou com a participação de um grupo especial dos Estados Unidos, criado pelo governo Joe Biden para perseguir as redes de transporte clandestino de migrantes na América Central e no México.

Seu nome é Força-Tarefa Conjunta Alpha (JTFA, na sigla em inglês).

Agora, a missão do grupo é expandir seu trabalho até a fronteira entre a Colômbia e o Panamá, por onde passa um fluxo cada vez maior de migrantes da América do Sul para os Estados Unidos, através da floresta de Darién.

"Decidimos que realmente precisamos levar esta luta mais ao sul", declarou à BBC News Mundo – o serviço em espanhol da BBC – um dos diretores da JTFA, Jim Hepburn.

Mas o que é este grupo operativo e quais resultados ele conseguiu até agora?

·        'Perseguir o comando'

Hepburn explica que a força-tarefa Alpha se concentra em organizações que operam ao sul da fronteira dos Estados Unidos, para levar imigrantes clandestinos até o país.

"Nosso objetivo é perseguir o comando, os líderes das organizações", afirma ele.

O grupo foi formado em junho de 2021, para reunir as investigações e acusações dos departamentos de Justiça e de Segurança Interna dos Estados Unidos contra essas organizações. Ele envolve desde fiscais federais no sul do país até agentes da Patrulha de Fronteira, do FBI e da agência antidrogas (DEA).

Além disso, em coordenação com o Departamento de Estado, o grupo procura, desde o início, melhorar a coordenação com os governos do México, Guatemala, Honduras e El Salvador para desarticular redes de tráfico ilícito de migrantes.

A novidade é que eles começaram a trabalhar "sob um único propósito, do ponto de vista de uma organização que pode recolher provas e inteligência, encaminhando os casos para o processo civil", explica o outro diretor da JTFA, Ian Hanna. Ele e Hepburn são funcionários do Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

O grupo foi criado pelo governo americano em um momento em que a detenção de estrangeiros na fronteira com o México atingia níveis nunca vistos em mais de uma década e a imigração se firmava como um dos temas políticos mais sensíveis em Washington.

Nos seus três primeiros anos de existência, a JTFA conseguiu realizar mais de 300 prisões nacionais e internacionais, além de mais de 240 condenações nos Estados Unidos, segundo um recente balanço oficial.

Em relação a 2020, as acusações por tráfico ilícito de estrangeiros nos Estados Unidos aumentaram em cerca de 25%.

Os diretores do grupo Alpha destacam que estes casos, em sua maioria, envolveram líderes de organizações criminosas, não os migrantes que cruzaram a fronteira ilegalmente.

Outros resultados atribuídos ao trabalho da JTFA chamaram a atenção, além da extradição dos quatro guatemaltecos acusados da morte de Marta Raymundo.

Um exemplo é o da hondurenha María Mendoza-Mendoza, conhecida como "A Patroa" ou "A Loira".

Ela foi extraditada para os Estados Unidos por comandar uma organização que levou cerca de uma centena de migrantes sem documentos do seu país para os Estados Unidos, incluindo menores de idade sem acompanhantes.

Em maio, Mendoza-Mendoza foi condenada a 10 anos de prisão por contrabando de seres humanos.

"A JTFA é um esforço que vale a pena", segundo Adam Isacson, diretor de Supervisão de Defesa do Escritório de Washington para Assuntos Latino-Americanos (WOLA, na sigla em inglês), uma organização que promove os direitos humanos no continente.

"É sempre preferível perseguir o crime organizado que se beneficia dos migrantes a dedicar recursos para bloquear as pessoas que buscam proteção ou uma vida melhor", explica ele.

Mas Isacson acredita que os resultados demonstrados pela JTFA envolvem, em sua maioria, "pequenos operadores", não os líderes do tráfico de migrantes, como se indica.

"O que me leva a acreditar nisso é a falta de detenções e processos de funcionários do governo e agentes de segurança corruptos, ao longo de toda a rota migratória até os Estados Unidos, pelo menos desde o Equador até o México", declarou ele à BBC News Mundo.

"As grandes operações de contrabando [humano] dependem de relações com funcionários corruptos."

·        O desafio de Darién

A expansão do trabalho do grupo Alpha para a Colômbia e o Panamá é um sinal da importância cada vez maior dedicada por Washington ao Tampão de Darién, que fica entre os dois países latino-americanos.

O novo presidente do Panamá, Raúl Mulino, assumiu o cargo no dia 1º de julho com a promessa de deter a travessia de migrantes sem documentos através de Darién. E os Estados Unidos anunciaram um acordo com o país centro-americano para cobrir os custos de transporte dos detidos de volta para os seus países de origem.

Darién se tornou, há muito tempo, o caminho preferido por cada vez mais migrantes sul-americanos que atravessam a América Central rumo aos Estados Unidos. Muitas vezes, eles contam com a ajuda de guias contratados, devido aos perigos ali existentes – desde a inóspita floresta até todos os tipos de criminosos.

"Nos últimos anos, temos observado um enorme fluxo de migrantes da Colômbia, Venezuela e Equador" na fronteira sul dos Estados Unidos, afirma Hanna.

"A maioria viaja através do Tampão de Darién, o que é algo recente e muito preocupante, não pelas pessoas que vêm, mas pelos perigos associados à travessia daquele pedaço de terra."

Seu colega Hepburn destaca que a força conjunta dos Estados Unidos tentará estabelecer com os governos da Colômbia e do Panamá o mesmo tipo de apoio firmado com o México e os países do norte da América Central. O objetivo é combater as redes que lucram com o transporte de migrantes.

"Existem muitos grupos que se beneficiam do contrabando de pessoas na região", explica Hepburn. Ele afirma que "o Clã do Golfo desempenha um papel de grande destaque na região".

O Departamento de Estado dos Estados Unidos ofereceu recentemente diversas recompensas, de até US$ 5 milhões (cerca de R$ 27,3 milhões), para quem fornecer informações sobre os negócios de transporte de migrantes por aquela organização criminosa colombiana.

Mas os especialistas são cautelosos em relação aos sucessos que Washington poderá alcançar no seu novo desafio em Darién.

"Se esta mesma dinâmica de prisão de pequenos contrabandistas continuar no Tampão de Darién, os únicos resultados envolverão indivíduos que os grupos criminosos não terão problemas para substituir", alerta Isacson.

A professora de política e governo Guadalupe Correa-Cabrera, da Universidade George Mason, nos Estados Unidos, é especialista em assuntos relativos ao tráfico de seres humanos. Ela acredita que o anúncio da extensão da JTFA para Darién "parece mais uma questão eleitoral".

"Aparentemente, todas as ações realizadas pelo governo dos Estados Unidos para desmantelar as redes de tráfego fracassaram", declarou ela à BBC News Mundo. "Existem cada vez mais pessoas entrando, de mais países de todo o mundo."

"É oferecido trabalho aos imigrantes sem documentos nos Estados Unidos, mas não existem vias legais para a migração de trabalho não qualificado", explica a professora. "O sistema migratório norte-americano foi rompido e não parece haver um esforço para consertá-lo."

 

¨      O impacto devastador do tráfico da droga na fronteira entre México e EUA

A cena vista pelos paramédicos de Tijuana ao entrar no bar 'La Perla', nas primeiras horas da manhã, foi pesada.

Dois homens estavam inconscientes - um homem corpulento esparramado no chão, seu amigo caído em uma cadeira - e com a vida por um fio.

Mais uma vez, os serviços de emergência da cidade tinham sido chamados após uma suspeita de overdose de fentanil – algo cada vez mais comum nos turnos noturnos, segundo o paramédico Gabriel Valladares.

"Está piorando. Estamos vendo cada vez mais, e é sempre fentanil", diz ele.

O opioide sintético é 50 vezes mais forte que a heroína e tem dificultado bastante o trabalho dos paramédicos.

“Geralmente vemos duas ou três overdoses por noite. Mas já tivemos seis ou sete casos em uma única ligação – provavelmente porque todos consumiram a mesma substância”, acrescenta Gabriel.

Integrantes da equipe de paramédicos rapidamente iniciaram a massagem cardíaca nos dois pacientes, enquanto outros prepararam doses de Narcan, o medicamento mais eficaz para reverter uma overdose de fentanil.

Os dois homens talvez não soubessem que estavam tomando fentanil. Como o opioide é barato e fácil de produzir e transportar, os cartéis de drogas mexicanos começaram a misturá-lo a drogas recreativas como a cocaína.

·        Uma ‘epidemia’

A cidade fronteiriça mexicana sofre com uma grande epidemia de drogas. Mas o presidente do país, Andrés Manuel López Obrador, minimiza a extensão do problema.

“Não produzimos fentanil aqui. Não consumimos fentanil aqui”, disse ele no ano passado. Após a fala polêmica, ele prometeu apresentar nova legislação ao Congresso para proibir o consumo de fentanil e outros opiáceos sintéticos.

Os que trabalham na linha de frente de Tijuana temem que isso seja pouco ou chegue tarde demais.

O diretor dos serviços forenses do Estado, César González Vaca, conta que há mais de um ano seu departamento testa todos os cadáveres que chegam aos necrotérios em duas cidades fronteiriças, Mexicali e Tijuana, para detectar a presença de fentanil.

O estudo mostrou que cerca de um em cada quatro corpos em Mexicali continha fentanil, diz ele, e em julho passado, as estatísticas para Tijuana eram de um em cada três.

“Parece que quanto mais perto estamos da fronteira, mais vemos o consumo dessa droga”, explica González Vaca. “Infelizmente, não podemos comparar com outros Estados da República, pois, na Baixa Califórnia, somos o primeiro Estado a realizar esse estudo”, acrescenta, incentivando os seus pares de todo o país a ajudarem a construir um quadro nacional mais claro.

·        Crise subestimada

Quem trabalha com os vivos em Tijuana também acha que o presidente subestimou a escala da crise no México.

Prevencasa é um centro de redução de danos da cidade que oferece troca de seringas e atendimento médico para dependentes químicos. A diretora, Lily Pacheco, seleciona aleatoriamente duas agulhas usadas e dois frascos de medicamentos vazios de sua unidade de descarte.

Todos os quatro itens testam positivo para fentanil. A cidade está inundada com a droga, diz Pacheco.

"É claro que o fentanil existe. Sugerir o contrário é uma falta de reconhecimento dessa realidade. Temos as provas aqui mesmo", diz ela, apontando para as tiras de teste.

"As overdoses que vemos, e todos aqueles que morreram por causa do fentanil também fazem parte dessa evidência. Ignorar o problema não o resolverá. Pelo contrário, as pessoas continuarão morrendo."

No final da nossa entrevista, surge subitamente uma imagem ainda mais visceral que os testes de fentanil em seringas descartadas.

Lily Pacheco é levada às pressas para fora, onde alguém está tendo uma overdose na rua. Ela também carrega Narcan doado por uma instituição de caridade dos Estados Unidos, após ter tido seu financiamento federal cortado, e salva a vida do homem.

Ele teve a sorte que muitos não tiveram.

·        Impacto nos EUA

A epidemia de fentanil atingiu o país vizinho, os Estados Unidos – o maior mercado mundial de drogas ilegais –, de forma especialmente dura. Lá, cerca de 70 mil pessoas morreram de overdose no ano passado.

Elijah Gonzales foi um deles.

Ele tinha apenas 15 anos quando acidentalmente teve uma overdose por uma pílula de Xanax falsificada do México. Ele não fazia ideia de que a pílula continha fentanil. Mensagens de texto que a mãe de Elijah, Nellie Morales, encontrou depois, sugerem que foi a primeira vez que ele usou drogas.

Seu corpo simplesmente não aguentou.

“Sinto falta dele todos os dias”, diz Nellie em seu apartamento em El Paso, Texas, enfeitado com fotos do filho. "Ele iria se formar em junho. Um pedaço de mim morreu no dia em que ele morreu."

Infelizmente, essas mortes são comuns nos EUA. Mais de cinco texanos morrem todos os dias por causa do fentanil, dizem as autoridades estaduais, e somente no condado de El Paso, o fentanil esteve em 85% das overdoses acidentais como a de Elijah.

A polícia municipal compara a situação à epidemia de crack da década de 1980.

El Paso fica do outro lado da fronteira de uma das cidades mais perigosas do México, Ciudad Juárez. Quando visitamos, os funcionários da alfândega dos EUA tinha apreendido 33 kg de fentanil num único dia, o suficiente para matar duas vezes todas a população de El Paso.

As discussões em torno da droga fizeram com que alguns republicanos defendessem o envio de tropas ao México para combater os cartéis. Não há dúvida de que esses debates terão um lugar de destaque na campanha eleitoral dos EUA. Na verdade, dada a facilidade com que pode ser transportado, é quase impossível conter o fluxo de fentanil para os EUA.

·        O tráfico

Em Ciudad Juárez, encontro Kevin (nome fictício), um traficante de drogas de 17 anos e matador do cartel La Empresa. Ele me mostra vídeos de sua gangue transportando a droga pelos túneis debaixo da fronteira entre os EUA e México.

“Um quilo de fentanil rende ao cartel cerca de US$ 200 mil (cerca de R$ 1 milhão) nos EUA”, diz ele, “Eu ganho cerca de US$ 1 mil (aproximadamente R$ 5 mil) para levar para o norte”.

Kevin trabalha com o cartel desde os nove anos, mas nunca viu nada parecido com fentanil. E acredita que a droga seja o futuro do comércio ilegal de drogas:

“É a droga mais forte que já vi. Quimicamente tão poderosa que as pessoas precisam de cada vez mais. Vai continuar explodindo”, diz ele.

Perguntei se ele sentia algum remorso pela morte de adolescentes americanos como Elijah.

“Não, é tudo parte de uma corrente”, ele dá de ombros. "Eles enviam armas para o sul, nós enviamos fentanil para o norte. Cada um é responsável pelos seus próprios atos."

De volta a Tijuana, foram necessárias três doses de Narcan, mas os paramédicos conseguiram trazer de volta um paciente no bar 'La Perla'.

Para amigo dele, porém, era tarde demais. Ele morreu entre garrafas de cerveja e copos vazios no chão do bar.

O silêncio dos paramédicos, em respeito, é interrompido pelo terrível som de lamentos. A mãe chegou ao bar apenas para saber que o seu filho, de 27 anos, é mais uma vítima do mais poderoso dos narcóticos, sendo a morte dele apenas uma nota de rodapé em um ano eleitoral em ambos os lados da fronteira entre os EUA e o México.

 

Fonte: BBC News Mundo

 

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