Maurício Abdalla: ‘Trump e a bala que pode
acertar a democracia’
No plano das opiniões
e impressões pessoais, todos têm o direito de suspeitar da veracidade dos fatos
relacionados ao atentado contra Donald Trump. Afinal, a vítima, que saiu ilesa
e mais viva do que antes, é uma pessoa mentirosa, pertencente a um campo político
que tem a mentira e a simulação de realidade como método e o ocorrido foi no
país em que as conspirações são práticas históricas e não meras teorias.
Logo apareceram vários
analistas profissionais da imprensa (corporativa ou independente) e amadores
das redes sociais debatendo sobre a veracidade ou não do atentado. Curioso ver
como muitos da esquerda davam ares de superioridade à sua análise por recusar
qualquer suspeita de forjamento de realidade e acusar os que duvidavam de
sustentar “teorias da conspiração”. E seguiam com declarações de repúdio à
violência e ao atentado, quase como uma moção de solidariedade ao candidato
republicano.
Ora, por que
menosprezar ou ridicularizar as opiniões e suspeitas pessoais de que o atentado
pode ter sido armação, se só temos informações fragmentadas, indiretas,
produzidas por agências estadunidenses e colhidas na grande mídia? Engana-se
quem faz isso na certeza de apresentar uma análise racional em contraste com
meras opiniões, pois o que faz é apenas sustentar uma opinião mais crédula,
apresentada com ares de superioridade analítica, em contraste com as opiniões
mais incrédulas, que se mesclam com certos exageros e afirmações apressadas.
Se me permitem uma
quebra de estilo, a questão é que não é essa a questão.
Discutir se o atentado é fato ou fake é debater no plano das opiniões e desviar
do foco principal para o qual nossas preocupações e análises deveriam estar
voltadas. Sobre isso, eu também tenho a minha opinião para consumo próprio e
para animar conversas de boteco. Mas não vou compartilhar aqui, pois não tenho
elementos que permitam uma análise. Prefiro os pontos de vista baseados em
análises. Ao final, eles não deixam de ser opiniões, mas do tipo que se
sustentam em coisas que podemos ter como certas e não em palpites.
Embora não tenhamos
condição de saber se o atentado foi uma armação ou não, podemos saber que a
disputa eleitoral nos EUA não é entre direta e esquerda, no sentido
tradicional. As duas candidaturas apoiam o genocídio palestino, mantém o
embargo criminoso a Cuba, são favoráveis à invasão e intervenção em outros
países, são submissas aos interesses das petrolíferas, dos bancos, indústria de
armas, big pharmas etc. O fato de o Partido Democrata se abrir para temas
identitários não o torna um partido de esquerda para o qual valha a pena torcer
como se fosse nosso. Não importa se a bomba que cai sobre a cabeça dos
palestinos e o embargo que mata de fome os cubanos venham com o slogan Black
Lives Matter ou com o arco-íris da diversidade, pois eles doem e matam
da mesma forma e com a mesma intensidade.
Embora com tons
diferentes, Biden e Trump defendem os EUA como império. Os que manipulam as
linhas invisíveis que controlam o poder aceitam de bom grado ambas as
candidaturas. Não dá para confiar plenamente em nenhuma informação que venha
dos EUA. E nem podemos cair na armadilha de uma “polarização” em que precisamos
estar de um lado. Eles abusam da falácia do falso dilema para que creiamos que
somos obrigados a apoiar e reproduzir apenas as duas opções apresentadas, como
se não houvesse outras forças políticas no mundo. Assim, temos uma direita no
Brasil que acha que deve imitar o trumpismo e uma esquerda que está se
transformando em réplica dos democratas estadunidenses.
Contudo, os que têm
maior poder e mais dinheiro podem ver em Trump um atalho para passar por cima
das discussões sobre direitos humanos, democracia, ecologia, direito
internacional e autodeterminação dos povos. Um presidente sem escrúpulos,
negacionista da ciência e dos valores democráticos e republicanos pode
atropelar essas coisas que atrasam ou estorvam os interesses dos donos mais
poderosos do capital. E são esses que realmente definem a política nos EUA e na
maior parte do planeta. É isso que cria um risco enorme para o mundo.
O problema, para nós,
é que Trump é proto-fascista e pode ser eleito presidente da maior potência
bélica e econômica do Ocidente. Não faz sentido perdermos tempo na discussão
palpiteira se o atentado foi real ou simulado. Fato ou fake, o ocorrido contribui
para o sentimento de coesão dos reacionários e adesão a uma liderança que traz
os valores mais perigosos e ameaçadores para a civilização mundial. Essa é a
ameaça que nos diz respeito.
Não há tempo para
perder com notas de solidariedade a um proto-fascista ou para tornar-se
especialista em segurança e serviço secreto estadunidense. Podemos estar diante
de uma vitória com a qual Hitler sonhou, mas não conquistou: o império mundial
do nazi-fascismo conduzido por uma potência bélica nuclear. Isso nos traz
outras questões para a reflexão.
A direta liberal
democrática será minimante sensata para entender o que a extrema-direita
representa para os valores que dizem defender? Os profissionais da mídia
corporativa entenderão que a simulação de uma neutralidade diante do que chamam
de “polarização” é na verdade uma aceitação do fascismo como alternativa
política? O Judiciário vai entender que suas decisões sobre os golpistas devem
ser independentes das opiniões políticas e que o “cálculo político” pode dar
tempo para a extrema-direita crescer? O diversificado campo da esquerda vai
entender que o identitarismo liberal e a militância performática, linguística e
virtual, cuja artilharia só tem acertado quem dela deseja se aproximar, não
definem realmente um campo eficaz de resistência ao fascismo?
É sobre isso que as
forças democráticas, progressistas e de esquerda deveriam estar refletindo. O
sangue do povo palestino, o sofrimento do povo cubano, as eleições do Brasil em
2026 (com articulação da extrema-direita local para tomar o Senado), a sombra
que pode se estender sobre os países do Sul global com o avanço do fascismo
mundial são coisas que me preocupam muito mais do que saber se o sangue na
orelha de Trump era ketchup.
¨ O que a crença na conspiração esconde? Por Thais Klein e Érico
Andrade
Uma das
características da violência é que ela é o poder do árbitro. Poder de decidir
sobre a eliminação daquilo que se opõe ao que desejamos, daquilo que ameaça o
frágil narcisismo. Nesse sentido, a violência está marcada pela atribuição de
poder sobre a vida pela reafirmação da capacidade de lhe destituir.
Talvez, por isso, a
violência possa ser um impulso mortífero dirigido ao outro, mas com vistas à
afirmação de si mesmo. Afirmação do lugar daquele que é responsável por
destinar a violência sem a qual não é possível reconhecer o outro como aquele
que é fraco e objeto da violência. A violência afirma o lugar daquele que
realiza a violência.
A extrema direita tem
na violência o seu modo de operar, se reproduzir e se firmar como uma massa.
Isso é notável na apologia das armas e das fantasias de onipotência – os homens
que não brocham. Essa construção se ergue como se todas as pessoas fossem invencíveis
e imunes à violência que elas mesmas produzem. Como se o pacto da força bruta
pudesse retirar do campo qualquer possibilidade de que esta se volte contra
quem a fomenta no nível ideológico e na práxis social.
Com efeito, parece que
é mais fácil acreditar numa conspiração com a qual a própria extrema direita se
alimenta do que na compreensão de que a violência se define pelo seu não
controle. Parece que conferimos mais poder ainda à extrema direita quando não consideramos
que, apesar do seu discurso de onipotência, eles são tão humanos e vulneráveis
como nós todos somos.
Tomar a violência
dirigida aos líderes de extrema direita como casos isolados ou tomá-la como uma
grande conspiração é seguir de mãos dadas com o discurso de onipotência. É não
perceber que promover a violência é também ser atravessado por ela. Sustentar
um discurso que prega a violência é fomentar seus efeitos pelo mundo como se a
violência não tivesse a participação de agentes intencionais.
A onipotência da
extrema direita constrói um discurso que lhe retira de qualquer possibilidade
de ser responsável pelos efeitos nefastos de seus atos violentos, na medida em
que intenta escamotear a vulnerabilidade que também lhe atinge. É somente na
posição de vítima que a extrema direita pode se apropriar do que ela mesmo
fomenta, uma vez que é na condição de vítima que ela justifica o uso da força.
A lógica é cindida,
produz o equívoco: a vitimização enquanto única forma de figurar a agência da
violência acaba por servir de motor para o próprio discurso de ódio que é
sempre dirigido ao outro que não compõe o grupo. O paradoxo é que a violência
almeja destruir o outro, mas depende do outro para se afirmar enquanto
atribuição de poder sobre a vida e reafirmação da capacidade de lhe destituir.
O que está no centro
dos ataques a Jair Bolsonaro e a Donald Trump não é uma armação coordenada de
uma internacional fascista, mas a constatação de que a violência não pode ser
controlada quando ela é a forma propagada para lidar com a diferença. A extrema
direita não apenas prova do seu próprio veneno como reforça a certeza de que o
discurso de ódio pode produzir mártires e agressores para manter a sociedade
refém de quem pretende a destruir.
¨ Donald Trump em uma experiência de quase-morte. Por Paulo
Martins
Kirk Freudenburg fez
sua graduação em Universidade Valparaiso e seu mestrado em Classics na
Universidade de Washington, em St. Louis. Ele obteve seu título de doutor na
Universidade de Wisconsin, onde escreveu sua tese doutoral sob a orientação de
Denis Feeney.
Antes de chegar a
Yale, ele lecionou na Universidade de Kent, na Universidade de Ohio, na qual
exerceu a função de Associate Dean of the Humanities, e na
Universidade de Illinois, onde foi chefe do Departamento de Classics.
Sua pesquisa tem se concentrado na vida social das letras romanas,
especialmente nas codificações culturais únicas que estruturam e informam as
ideias romanas sobre poesia, e a implantação prática dessas ideias em formas
poéticas específicas, especialmente na sátira.
Suas principais publicações incluem: The Walking Muse: Horace on
the Theory of Satire (Princeton, 1993), Satires of Rome:
Threatening Poses from Lucilius to Juvenal (Cambridge, 2001), The
Cambridge Companion to Roman Satire (Cambridge, 2005), Oxford
Readings in Classical Studies: Horace’s Satires and Epistles (Oxford
University Press, 2009), The Cambridge Companion to the Age of Nero (Cambridge,
2017), co-editado com Shadi Bartsch e Cedric Littlewood, The second
book of Horace’s Sermones (Cambridge, 2021) e Virgil’s
Cinematic Art: Vision as Narrative in the Aeneid (Oxford University
Press, 2022).
Além dessas atividades
acadêmicas, o professor Kirk Freudenburg não descura do cotidiano e costuma
fazer intervenções públicas, apresentando em sites e jornais artigos cuja
principal característica é o sarcasmo, ironia cáustica, cortante. A defesa da
democracia, onde quer que seja, é pedra de toque em seu texto. O artigo a
seguir, publicado no dia 15 de julho no site Common
Dreams e traduzido por mim, traz uma
avaliação mordaz acerca do malfadado atentado a Donald Trump.
<><>
Ao pé do ouvido: prevendo a resposta de Donald Trump a uma experiência quase
mortal
Eu escrevo apressado.
Num comício político na tarde de sábado, Donald Trump foi baleado na orelha por
um assassino em potencial. Até o momento, tudo o que sei é que, a não ser por
um buraco na orelha, Donald Trump está bem e seu agressor está morto. Também
sei que o comício ocorreu na Pensilvânia e que o atirador tinha 20 anos. Isso é
tudo o que sei sobre o incidente, porque é tudo o que escolhi saber.
Deixe-me explicar. No
sábado à noite, depois de ver as manchetes, fui para a cama determinado a não
saber mais nada, achando que tudo isso era simplesmente muito deprimente,
marcando mais um novo ponto baixo para o estado de coisas da nossa democracia.
Ouvir especialistas, enquanto eles comentavam sobre o assunto, teria me deixado
à beira de um abismo e em desespero ainda maior. Pensei que minha vida era
muito curta para dedicar mais tempo a um tolo que agora se faz de mártir.
Na manhã de domingo,
como sempre, fui correr, ainda sabendo apenas o “quase nada” de que falei. E
enquanto corria, ocorreu-me que não apenas minha quase total ignorância era
emocionalmente salutar, como também me dava certa vantagem sobre a maioria dos
americanos. Isso me permitia antecipar como Donald Trump reagiria ao incidente.
Eu poderia especular sobre essa reação sem qualquer conhecimento prévio, seja
vindo dele mesmo ou pontificado por qualquer outra pessoa.
A lacuna no meu
conhecimento significava que eu poderia tentar prever a resposta de Donald
Trump, dado o que penso sobre ele, para ver se realmente o conheço. O que ele
fará com isso? Pensei ensimesmado. Mais importante: como ele usará isso para
tirar vantagem? – É claro, é óbvio! – Para o bem do nosso mundo? – Ri comigo
mesmo.
Uma experiência quase
mortal é assustadora. Muda vidas. As bibliotecas estão cheias de histórias de
pessoas que milagrosamente sobreviveram a encontros quase fatais: acidentes de
avião, overdoses, guerras, a lista é interminável.
Nessas histórias que
os sobreviventes contam, tais encontros os abalam profundamente, ensinando-lhes
coisas sobre o mundo e sobre si mesmos. Como se fossem renascidos e tivessem
uma segunda chance, eles refletem sobre seus valores, tornam-se mais compreensivos
e bondosos. São Paulo foi derrubado por uma luz celeste a caminho de Damasco,
ficou cego e uma experiência que abalou seu interior e o transformou de alguém
que matava cristãos em alguém que os amava e abraçava sua causa.
É por isso que até
hoje (segunda-feira), escolhi permanecer ignorante sobre a reação de Donald
Trump. Persisti em não ler as manchetes (embora tenha ouvido há alguns minutos
que o atirador era um republicano filiado). Quero ver o que sei sobre o homem.
Seu quase encontro com a morte é o material do qual novas vidas são feitas e
novos valores são adquiridos, e ainda assim não consigo de maneira alguma
acreditar que ele usará a experiência da reflexão sobre si mesmo ou a
transformação numa pessoa mais gentil e compreensiva.
Ainda tomando
conhecimento do assunto, aqui está minha previsão. O que ele fará com isso?
Posso prever com alto nível de confiança que ele irá explorar isso ao máximo
como uma oportunidade política excepcional, ao invés de ser o momento de
reconsideração sobre algo que já tenha pensado. Se ele refletir internamente,
não irá ver nada além do egoísta, de um ser infantilizado que sempre esteve lá.
Como resultado, ele não recorrerá à sua Bíblia, mas aos seus gibis.
Ele exigirá ser venerado como um super-herói, um homem de aço que desvia balas
que lhe foram miradas na sua orelha.
Lembre-se, este é um
homem-criança que, como presidente dos Estados Unidos, queria sair em uma
sacada do Hospital Walter Reed vestindo uma camiseta do Superman.
Ele teve que ser convencido do contrário. Das dezenas de milhões de americanos
infectados pela covid-19, conheço apenas um acima de sete anos de idade que
quis se fazer de super-herói por causa disso.
Donald Trump fará
muitas coisas terríveis com esta oportunidade, reforçando suas certezas de ódio
e mentiras. Mas o pior disso tudo será o seguinte: bajulando sua base
evangélica, Donald Trump afirmará que os demônios Democratas queriam que ele
morresse, porém que Jesus o manteve vivo como sua única esperança e salvador.
Quebrando o primeiro
mandamento, seus adoradores irão elogiá-lo por isso, e ao mesmo tempo em que
ele se banha na sua glória, seus conselheiros irão entrar em ação para ajudá-lo
a ajustar sua Bíblia, A Versão Revisada de Donald Trump, para que ele não a segure
de maneira constrangedora. Assim previ.
Fonte: Outras Palavras/A
Terra é Redonda
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