sábado, 20 de julho de 2024

Maurício Abdalla: ‘Trump e a bala que pode acertar a democracia’

No plano das opiniões e impressões pessoais, todos têm o direito de suspeitar da veracidade dos fatos relacionados ao atentado contra Donald Trump. Afinal, a vítima, que saiu ilesa e mais viva do que antes, é uma pessoa mentirosa, pertencente a um campo político que tem a mentira e a simulação de realidade como método e o ocorrido foi no país em que as conspirações são práticas históricas e não meras teorias.

Logo apareceram vários analistas profissionais da imprensa (corporativa ou independente) e amadores das redes sociais debatendo sobre a veracidade ou não do atentado. Curioso ver como muitos da esquerda davam ares de superioridade à sua análise por recusar qualquer suspeita de forjamento de realidade e acusar os que duvidavam de sustentar “teorias da conspiração”. E seguiam com declarações de repúdio à violência e ao atentado, quase como uma moção de solidariedade ao candidato republicano.

Ora, por que menosprezar ou ridicularizar as opiniões e suspeitas pessoais de que o atentado pode ter sido armação, se só temos informações fragmentadas, indiretas, produzidas por agências estadunidenses e colhidas na grande mídia? Engana-se quem faz isso na certeza de apresentar uma análise racional em contraste com meras opiniões, pois o que faz é apenas sustentar uma opinião mais crédula, apresentada com ares de superioridade analítica, em contraste com as opiniões mais incrédulas, que se mesclam com certos exageros e afirmações apressadas.

Se me permitem uma quebra de estilo, a questão é que não é essa a questão. Discutir se o atentado é fato ou fake é debater no plano das opiniões e desviar do foco principal para o qual nossas preocupações e análises deveriam estar voltadas. Sobre isso, eu também tenho a minha opinião para consumo próprio e para animar conversas de boteco. Mas não vou compartilhar aqui, pois não tenho elementos que permitam uma análise. Prefiro os pontos de vista baseados em análises. Ao final, eles não deixam de ser opiniões, mas do tipo que se sustentam em coisas que podemos ter como certas e não em palpites.

Embora não tenhamos condição de saber se o atentado foi uma armação ou não, podemos saber que a disputa eleitoral nos EUA não é entre direta e esquerda, no sentido tradicional. As duas candidaturas apoiam o genocídio palestino, mantém o embargo criminoso a Cuba, são favoráveis à invasão e intervenção em outros países, são submissas aos interesses das petrolíferas, dos bancos, indústria de armas, big pharmas etc. O fato de o Partido Democrata se abrir para temas identitários não o torna um partido de esquerda para o qual valha a pena torcer como se fosse nosso. Não importa se a bomba que cai sobre a cabeça dos palestinos e o embargo que mata de fome os cubanos venham com o slogan Black Lives Matter ou com o arco-íris da diversidade, pois eles doem e matam da mesma forma e com a mesma intensidade.

Embora com tons diferentes, Biden e Trump defendem os EUA como império. Os que manipulam as linhas invisíveis que controlam o poder aceitam de bom grado ambas as candidaturas. Não dá para confiar plenamente em nenhuma informação que venha dos EUA. E nem podemos cair na armadilha de uma “polarização” em que precisamos estar de um lado. Eles abusam da falácia do falso dilema para que creiamos que somos obrigados a apoiar e reproduzir apenas as duas opções apresentadas, como se não houvesse outras forças políticas no mundo. Assim, temos uma direita no Brasil que acha que deve imitar o trumpismo e uma esquerda que está se transformando em réplica dos democratas estadunidenses.

Contudo, os que têm maior poder e mais dinheiro podem ver em Trump um atalho para passar por cima das discussões sobre direitos humanos, democracia, ecologia, direito internacional e autodeterminação dos povos. Um presidente sem escrúpulos, negacionista da ciência e dos valores democráticos e republicanos pode atropelar essas coisas que atrasam ou estorvam os interesses dos donos mais poderosos do capital. E são esses que realmente definem a política nos EUA e na maior parte do planeta. É isso que cria um risco enorme para o mundo.

O problema, para nós, é que Trump é proto-fascista e pode ser eleito presidente da maior potência bélica e econômica do Ocidente. Não faz sentido perdermos tempo na discussão palpiteira se o atentado foi real ou simulado. Fato ou fake, o ocorrido contribui para o sentimento de coesão dos reacionários e adesão a uma liderança que traz os valores mais perigosos e ameaçadores para a civilização mundial. Essa é a ameaça que nos diz respeito.

Não há tempo para perder com notas de solidariedade a um proto-fascista ou para tornar-se especialista em segurança e serviço secreto estadunidense. Podemos estar diante de uma vitória com a qual Hitler sonhou, mas não conquistou: o império mundial do nazi-fascismo conduzido por uma potência bélica nuclear. Isso nos traz outras questões para a reflexão.

A direta liberal democrática será minimante sensata para entender o que a extrema-direita representa para os valores que dizem defender? Os profissionais da mídia corporativa entenderão que a simulação de uma neutralidade diante do que chamam de “polarização” é na verdade uma aceitação do fascismo como alternativa política? O Judiciário vai entender que suas decisões sobre os golpistas devem ser independentes das opiniões políticas e que o “cálculo político” pode dar tempo para a extrema-direita crescer? O diversificado campo da esquerda vai entender que o identitarismo liberal e a militância performática, linguística e virtual, cuja artilharia só tem acertado quem dela deseja se aproximar, não definem realmente um campo eficaz de resistência ao fascismo?

É sobre isso que as forças democráticas, progressistas e de esquerda deveriam estar refletindo. O sangue do povo palestino, o sofrimento do povo cubano, as eleições do Brasil em 2026 (com articulação da extrema-direita local para tomar o Senado), a sombra que pode se estender sobre os países do Sul global com o avanço do fascismo mundial são coisas que me preocupam muito mais do que saber se o sangue na orelha de Trump era ketchup.

 

¨      O que a crença na conspiração esconde? Por Thais Klein e Érico Andrade

Uma das características da violência é que ela é o poder do árbitro. Poder de decidir sobre a eliminação daquilo que se opõe ao que desejamos, daquilo que ameaça o frágil narcisismo. Nesse sentido, a violência está marcada pela atribuição de poder sobre a vida pela reafirmação da capacidade de lhe destituir.

Talvez, por isso, a violência possa ser um impulso mortífero dirigido ao outro, mas com vistas à afirmação de si mesmo. Afirmação do lugar daquele que é responsável por destinar a violência sem a qual não é possível reconhecer o outro como aquele que é fraco e objeto da violência. A violência afirma o lugar daquele que realiza a violência.

A extrema direita tem na violência o seu modo de operar, se reproduzir e se firmar como uma massa. Isso é notável na apologia das armas e das fantasias de onipotência – os homens que não brocham. Essa construção se ergue como se todas as pessoas fossem invencíveis e imunes à violência que elas mesmas produzem. Como se o pacto da força bruta pudesse retirar do campo qualquer possibilidade de que esta se volte contra quem a fomenta no nível ideológico e na práxis social.

Com efeito, parece que é mais fácil acreditar numa conspiração com a qual a própria extrema direita se alimenta do que na compreensão de que a violência se define pelo seu não controle. Parece que conferimos mais poder ainda à extrema direita quando não consideramos que, apesar do seu discurso de onipotência, eles são tão humanos e vulneráveis como nós todos somos.

Tomar a violência dirigida aos líderes de extrema direita como casos isolados ou tomá-la como uma grande conspiração é seguir de mãos dadas com o discurso de onipotência. É não perceber que promover a violência é também ser atravessado por ela. Sustentar um discurso que prega a violência é fomentar seus efeitos pelo mundo como se a violência não tivesse a participação de agentes intencionais.

A onipotência da extrema direita constrói um discurso que lhe retira de qualquer possibilidade de ser responsável pelos efeitos nefastos de seus atos violentos, na medida em que intenta escamotear a vulnerabilidade que também lhe atinge. É somente na posição de vítima que a extrema direita pode se apropriar do que ela mesmo fomenta, uma vez que é na condição de vítima que ela justifica o uso da força.

A lógica é cindida, produz o equívoco: a vitimização enquanto única forma de figurar a agência da violência acaba por servir de motor para o próprio discurso de ódio que é sempre dirigido ao outro que não compõe o grupo. O paradoxo é que a violência almeja destruir o outro, mas depende do outro para se afirmar enquanto atribuição de poder sobre a vida e reafirmação da capacidade de lhe destituir.

O que está no centro dos ataques a Jair Bolsonaro e a Donald Trump não é uma armação coordenada de uma internacional fascista, mas a constatação de que a violência não pode ser controlada quando ela é a forma propagada para lidar com a diferença. A extrema direita não apenas prova do seu próprio veneno como reforça a certeza de que o discurso de ódio pode produzir mártires e agressores para manter a sociedade refém de quem pretende a destruir.

 

¨      Donald Trump em uma experiência de quase-morte. Por Paulo Martins

Kirk Freudenburg fez sua graduação em Universidade Valparaiso e seu mestrado em Classics na Universidade de Washington, em St. Louis. Ele obteve seu título de doutor na Universidade de Wisconsin, onde escreveu sua tese doutoral sob a orientação de Denis Feeney.

Antes de chegar a Yale, ele lecionou na Universidade de Kent, na Universidade de Ohio, na qual exerceu a função de Associate Dean of the Humanities, e na Universidade de Illinois, onde foi chefe do Departamento de Classics. Sua pesquisa tem se concentrado na vida social das letras romanas, especialmente nas codificações culturais únicas que estruturam e informam as ideias romanas sobre poesia, e a implantação prática dessas ideias em formas poéticas específicas, especialmente na sátira.

Suas principais publicações incluem: The Walking Muse: Horace on the Theory of Satire (Princeton, 1993), Satires of Rome: Threatening Poses from Lucilius to Juvenal (Cambridge, 2001), The Cambridge Companion to Roman Satire (Cambridge, 2005), Oxford Readings in Classical Studies: Horace’s Satires and Epistles (Oxford University Press, 2009), The Cambridge Companion to the Age of Nero (Cambridge, 2017), co-editado com Shadi Bartsch e Cedric Littlewood, The second book of Horace’s Sermones (Cambridge, 2021) e Virgil’s Cinematic Art: Vision as Narrative in the Aeneid (Oxford University Press, 2022).

Além dessas atividades acadêmicas, o professor Kirk Freudenburg não descura do cotidiano e costuma fazer intervenções públicas, apresentando em sites e jornais artigos cuja principal característica é o sarcasmo, ironia cáustica, cortante. A defesa da democracia, onde quer que seja, é pedra de toque em seu texto. O artigo a seguir, publicado no dia 15 de julho no site Common Dreams e traduzido por mim, traz uma avaliação mordaz acerca do malfadado atentado a Donald Trump.

<><> Ao pé do ouvido: prevendo a resposta de Donald Trump a uma experiência quase mortal

Eu escrevo apressado. Num comício político na tarde de sábado, Donald Trump foi baleado na orelha por um assassino em potencial. Até o momento, tudo o que sei é que, a não ser por um buraco na orelha, Donald Trump está bem e seu agressor está morto. Também sei que o comício ocorreu na Pensilvânia e que o atirador tinha 20 anos. Isso é tudo o que sei sobre o incidente, porque é tudo o que escolhi saber.

Deixe-me explicar. No sábado à noite, depois de ver as manchetes, fui para a cama determinado a não saber mais nada, achando que tudo isso era simplesmente muito deprimente, marcando mais um novo ponto baixo para o estado de coisas da nossa democracia. Ouvir especialistas, enquanto eles comentavam sobre o assunto, teria me deixado à beira de um abismo e em desespero ainda maior. Pensei que minha vida era muito curta para dedicar mais tempo a um tolo que agora se faz de mártir.

Na manhã de domingo, como sempre, fui correr, ainda sabendo apenas o “quase nada” de que falei. E enquanto corria, ocorreu-me que não apenas minha quase total ignorância era emocionalmente salutar, como também me dava certa vantagem sobre a maioria dos americanos. Isso me permitia antecipar como Donald Trump reagiria ao incidente. Eu poderia especular sobre essa reação sem qualquer conhecimento prévio, seja vindo dele mesmo ou pontificado por qualquer outra pessoa.

A lacuna no meu conhecimento significava que eu poderia tentar prever a resposta de Donald Trump, dado o que penso sobre ele, para ver se realmente o conheço. O que ele fará com isso? Pensei ensimesmado. Mais importante: como ele usará isso para tirar vantagem? – É claro, é óbvio! – Para o bem do nosso mundo? – Ri comigo mesmo.

Uma experiência quase mortal é assustadora. Muda vidas. As bibliotecas estão cheias de histórias de pessoas que milagrosamente sobreviveram a encontros quase fatais: acidentes de avião, overdoses, guerras, a lista é interminável.

Nessas histórias que os sobreviventes contam, tais encontros os abalam profundamente, ensinando-lhes coisas sobre o mundo e sobre si mesmos. Como se fossem renascidos e tivessem uma segunda chance, eles refletem sobre seus valores, tornam-se mais compreensivos e bondosos. São Paulo foi derrubado por uma luz celeste a caminho de Damasco, ficou cego e uma experiência que abalou seu interior e o transformou de alguém que matava cristãos em alguém que os amava e abraçava sua causa.

É por isso que até hoje (segunda-feira), escolhi permanecer ignorante sobre a reação de Donald Trump. Persisti em não ler as manchetes (embora tenha ouvido há alguns minutos que o atirador era um republicano filiado). Quero ver o que sei sobre o homem. Seu quase encontro com a morte é o material do qual novas vidas são feitas e novos valores são adquiridos, e ainda assim não consigo de maneira alguma acreditar que ele usará a experiência da reflexão sobre si mesmo ou a transformação numa pessoa mais gentil e compreensiva.

Ainda tomando conhecimento do assunto, aqui está minha previsão. O que ele fará com isso? Posso prever com alto nível de confiança que ele irá explorar isso ao máximo como uma oportunidade política excepcional, ao invés de ser o momento de reconsideração sobre algo que já tenha pensado. Se ele refletir internamente, não irá ver nada além do egoísta, de um ser infantilizado que sempre esteve lá. Como resultado, ele não recorrerá à sua Bíblia, mas aos seus gibis. Ele exigirá ser venerado como um super-herói, um homem de aço que desvia balas que lhe foram miradas na sua orelha.

Lembre-se, este é um homem-criança que, como presidente dos Estados Unidos, queria sair em uma sacada do Hospital Walter Reed vestindo uma camiseta do Superman. Ele teve que ser convencido do contrário. Das dezenas de milhões de americanos infectados pela covid-19, conheço apenas um acima de sete anos de idade que quis se fazer de super-herói por causa disso.

Donald Trump fará muitas coisas terríveis com esta oportunidade, reforçando suas certezas de ódio e mentiras. Mas o pior disso tudo será o seguinte: bajulando sua base evangélica, Donald Trump afirmará que os demônios Democratas queriam que ele morresse, porém que Jesus o manteve vivo como sua única esperança e salvador.

Quebrando o primeiro mandamento, seus adoradores irão elogiá-lo por isso, e ao mesmo tempo em que ele se banha na sua glória, seus conselheiros irão entrar em ação para ajudá-lo a ajustar sua Bíblia, A Versão Revisada de Donald Trump, para que ele não a segure de maneira constrangedora. Assim previ.

 

Fonte: Outras Palavras/A Terra é Redonda

 

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