sábado, 20 de julho de 2024

Há tempo para mudar o sistema?

Em outubro de 2018, o alerta emitido pelo relatório do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC), informando que o mundo teria 12 anos para evitar o desastre climático, certamente foi o fator mais importante para o fortalecimento da onda de ativismo global contra as mudanças climáticas, particularmente nos moldes de Greta Thunberg, das Greves Escolares em massa e do movimento Rebelião da Extinção. Ao mesmo tempo, é claro que esse alerta poderia ser e foi “ouvido” e interpretado de diferentes maneiras por diferentes pessoas. Neste artigo, pretendo examinar algumas dessas interpretações e suas implicações, particularmente em relação à seguinte questão: há tempo para suscitar uma mudança de sistema ou, dado o curto espaço de tempo, é necessário se concentrar e contentar-se com mudanças que possam ser implementadas no âmbito do capitalismo?

Contudo, antes de chegarmos lá, quero indicar que muitos políticos oportunistas ouvirão esse alerta de 12 anos de um modo bem diferente de Greta e seus seguidores. Para eles, 12 anos é muito tempo: três mandatos presidenciais nos EUA, dois mandatos parlamentares completos na Grã-Bretanha e em muitos países; em outras palavras, mais do que o tempo necessário para satisfazerem suas ambições e assegurarem um lugar nos livros de história, ou, pelo menos, suas pensões e cargos de diretoria, antes que algo realmente sério precise ser feito. A única implicação prática do alerta de 12 anos seria a necessidade de criar várias comissões, elaborar alguns planos de ação, participar de algumas poucas conferências e, de modo geral, engajar-se em certa dose de greenwashing[i]. Seja você o CEO de uma grande companhia de petróleo, de gás ou de automóveis, exatamente o mesmo se aplicaria.

No extremo oposto do espectro, há um número muito grande de pessoas, especialmente indivíduos mais jovens, que entenderam o alerta no sentido de que restariam, literalmente, apenas 12 anos para evitar a extinção total. Esses erros de interpretação não são equivalentes: o primeiro é profundamente cínico e extremamente nefasto, tanto para os seres humanos como para a natureza; o segundo é bem-intencionado, mas ingênuo. Ambos, no entanto, são leituras incorretas. As mudanças climáticas não são um evento que pode, ou não, acontecer em 2030, tampouco um evento do qual seja possível desviar por meio de ações emergenciais de última hora, mas sim um processo que já está em andamento. Cada semana, mês ou ano de atraso na redução das emissões de carbono agrava o problema e faz com que seja muito mais difícil enfrentá-lo. Por outro lado, não há uma data limite absoluta após a qual seria tarde demais para fazer qualquer coisa e, então, pudéssemos abandonar as esperanças.

O relatório do IPCC não se concentrou na questão da “extinção”, mas sim, e essencialmente, naquilo que seria necessário para limitar o aquecimento global em 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, e nos efeitos mais prováveis caso a marca de 2°C seja alcançada. O que exatamente está escrito no Sumário Para Formuladores de Políticas do relatório é:

“A.1. Estima-se que as atividades humanas tenham causado cerca de 1,0°C de aquecimento global acima dos níveis pré-industriais, com uma provável variação de 0,8°C a 1,2°C. É provável que o aquecimento global atinja 1,5°C entre 2030 e 2052, caso continue a aumentar no ritmo atual. (Alta confiança)”.

E acrescenta, pode-se dizer, o óbvio:

“B.5. Projeta-se que os riscos para a saúde, meios de subsistência, segurança alimentar, abastecimento de água, segurança humana e crescimento econômico relacionados ao clima, aumentem com o aquecimento global de 1,5°C, e aumentem ainda mais com a marca de 2°C”.

Não destaquei estes trechos por considerar o relatório do IPCC um texto sagrado, muito menos a última palavra no assunto. Pelo contrário, parece-me bem claro que o relatório foi conservador em suas previsões – o que não é surpresa, já que seu método requer o consenso entre milhares de cientistas. Na realidade, o aquecimento global, principalmente seus efeitos, estão avançando em ritmo mais acelerado do que o IPCC esperava (cf. John Molyneux, “How fast is the climate changing?”, Climate & Capitalism, 02/08/2019). Meu propósito aqui é mostrar que, de acordo com o IPCC, e com toda compreensão séria a respeito das mudanças climáticas, o que estamos enfrentando não é o limite de um penhasco, de cuja beirada iremos despencar em 2030 ou em qualquer outra data previsível, mas sim um processo que vem se intensificando rapidamente, com efeitos catastróficos crescentes. O mais provável, no decorrer desse processo, é que ocorram pontos de rupturas a partir dos quais o ritmo das mudanças acelere de forma muito rápida, e certas alterações se tornem irreversíveis, mas ninguém sabe exatamente quando eles ocorrerão e se, até lá, ainda estaremos falando de um processo, e não de uma imediata e completa extinção.

É vital que haja um entendimento correto, cientificamente embasado, desse processo. Na condição de ativistas, nosso engajamento em algum tipo de contagem regressiva (restam agora apenas 10, 9, 8… anos para salvar o planeta, como se houvesse uma linha temporal bem fixada) provavelmente não ajudará – e nem queremos ser chamados de falsos alarmistas quando o mundo não acabar. Um entendimento correto é importante para dar fundamentação à questão crucial: há tempo para uma mudança de sistema?

O argumento que diz não haver tempo suficiente para mudar o sistema (refiro-me aqui à derrubada do capitalismo) tem acompanhado o movimento ambientalista há muito tempo, antecedendo bastante o alerta de 12 anos. Lembro-me do argumento sendo usado com firmeza (e agressivamente) contra um trotskista bem desafortunado durante a Campanha Contra as Mudanças Climáticas, na qual me envolvi pela primeira vez no início da década de 2000. “Não há tempo para esperar sua revolução”, disseram a ele. É claro que agora este argumento pode ser usado de forma dissimulada por pessoas que, na verdade, são pró-capitalistas, mas também de forma honesta por pessoas que saudariam o fim do capitalismo se o considerassem uma possibilidade prática. Como testemunho disso, cito Alan Thornett, socialista de longa data:

“A solução padrão, levantada pela maior parte da esquerda radical […] é a derrubada revolucionária do capitalismo global – implicitamente nos próximos 12 anos, porque esse é todo o tempo que temos para isso […] Tal abordagem é maximalista, esquerdista e inútil. Enquanto socialistas, podemos votar com as duas mãos pela abolição do capitalismo e, sem dúvida, esse é o objetivo a longo prazo. Mas, como resposta ao aquecimento global, considerando o prazo de 12 anos, não faz sentido.

Haveria uma ‘vácuo de credibilidade’. Embora os efeitos catastróficos das mudanças climáticas estejam batendo à porta, dificilmente o mesmo pode ser dito, com alguma credibilidade, a respeito de uma revolução socialista mundial – a menos que eu tenha perdido algo. Não digo que seja impossível, mas é uma possibilidade remota demais para servir de resposta ao aquecimento global e às mudanças climáticas […]

Sendo bem direto, se a derrubada do capitalismo, a nível mundial, for a única solução para o aquecimento global e as mudanças climáticas nos 12 anos que restam, então não há solução” (Alan Thornett, Facing the Apocalypse: Arguments for Ecosocialism, Resistance Books 2019, p. 95).

Alan expressa aqui, de forma bem clara, o argumento que eu quero contestar.

A primeira coisa a ser dita é que, para marxistas e socialistas sérios (a começar por Marx, Engels e Rosa Luxemburgo), a luta revolucionária não se contrapõe à luta por reformas. Ao invés disso, a revolução é algo que cresce a partir da luta por demandas concretas. Assim, da mesma forma que os marxistas reúnem, de um lado, a convicção de que a única solução para a exploração é a abolição do sistema de salários, e, de outro, o apoio à luta sindical por aumento salarial e melhores condições de trabalho, pode-se lutar por demandas imediatas, tais como transporte público gratuito, abandono do uso de combustíveis fósseis e investimentos massivos em energias renováveis, ao mesmo tempo em que se defende a revolução ecossocialista. Dessa forma, a possibilidade de um capitalismo ecologicamente sustentável é submetida a um teste prático.

Contudo, essa resposta, por necessária que seja, não esgota a questão. Se a revolução parece demasiadamente remota e improvável como solução, então os ativistas climáticos deveriam praticamente concentrar todos os seus esforços na luta por reformas, ao invés de discutir e organizar a revolução – e mais, concentrar-se majoritariamente em reformas apenas nessa questão [das mudanças climáticas]. Afinal, qual seria o ponto, exceto por uma moralidade abstrata, de se concentrar em questões como o direito dos trabalhadores, a luta antirracismo, os direitos reprodutivos da mulher, os direitos LGBTQ, etc., quando a sobrevivência da humanidade está em jogo nos próximos poucos anos? Se, no entanto, a expectativa for a de que o capitalismo se prove não reformável, ou reformável de forma insuficiente, então será necessário combinar a campanha ecossocialista com o ativismo revolucionário, a propaganda e a organização em uma frente mais ampla, reconhecendo que a revolução exige a mobilização em massa da classe trabalhadora em torno de várias questões, assim como sua união para enfrentar as inúmeras estratégias de dividir para governar.

Consequentemente, surgem três questões legítimas:

1.       Quais são as chances de se interromper ou restringir as mudanças climáticas com reformas em uma base capitalista?

2.       Quão “remota” é a possibilidade da revolução socialista?

3.       Há alternativas a essa escolha binária?

Sobre a primeira questão, eu e outros ecossocialistas (destacadamente John Bellamy Foster, Ian Angus, Michael Löwy, Martin Empson, Amy Leather, etc.) temos defendido, longa e repetidamente, que a possibilidade de enfrentamento às mudanças climáticas sobre uma base capitalista é extremamente remota, seja em 12, 20 ou 40 anos. Não vou listar aqui todos os argumentos, mas simplesmente dizer que o capitalismo é um sistema inerente e inexoravelmente orientado à acumulação competitiva de capital, em rota de colisão com a natureza, e a função que as indústrias de combustíveis fósseis (petróleo, gás, carvão) desempenham nessa acumulação é tão crucial que não existe uma perspectiva realista na qual o capitalismo seja capaz de superar sua dependência em relação a essas indústrias.

Sobre a segunda questão, eu admitiria que se o futuro, digamos, os próximos 12 anos, for semelhante ao passado recente, ou seja, os últimos 50 anos, a possibilidade de uma revolução socialista internacional de fato parece muito remota. Mas precisamente a realidade das mudanças climáticas garante que a próxima década não será como no passado. Muito pelo contrário, as condições colocadas pelo aquecimento global (o aumento insuportável do calor, as secas, incêndios, tempestades e inundações, etc.) transformarão o nível de consciência entre as massas quanto à necessidade de dar fim ao capitalismo e à possibilidade da revolução. O fato de que o agravamento da crise climática será acompanhado por uma crise ambiental mais ampla e multiforme, com o aprofundamento e recorrência de crises econômicas (como é bem evidente agora), somando ao aumento da tensão militar e geopolítica internacional (por exemplo, com a China e a Rússia), tornará tudo mais complexo.

Aqui, o que foi estabelecido no início deste artigo, de que os “12 anos” não são e nem podem ser um prazo exato ou definitivo, é muito importante. Se, como acredito ser extremamente provável, o capitalismo for incapaz de conter o aquecimento em 1,5°C, isso não significará que o jogo acabou, que a luta terminou, como sugere Thornett, mas que todas as condições e desastres sublinhados acima irão se intensificar, e, no processo, a propensão para revoltas em massa e para a revolução também será maior.

Muitas pessoas acham possível imaginar a revolução em um só país, mas não acham verossímil a ideia de uma revolução mundial ou internacional. Bem, se a revolução internacional significar uma rebelião coordenada e simultânea a nível mundial, de fato, é extremamente improvável, mas este nunca foi o cenário imaginado pelos defensores de uma revolução internacional. Pelo contrário, iniciada em um só país, seja no Brasil ou no Egito, na Irlanda ou na Itália, a revolução poderia (e iria) se espalhar para outros países, numa longa e contínua sequência de lutas. Essa perspectiva é reforçada pela experiência das ondas de embates mais recentes: primeiro houve a Primavera Árabe, em 2011, que testemunhou uma reação em cadeia de insurreições, indo da Tunísia ao Egito, Líbia, Barein e Síria, antes de inspirar revoltas menores, porém significativas, como o Movimento dos Indignados na Espanha, e o Occupy [Wall Street] nos Estados Unidos; logo sobreveio uma onda de rebeliões em massa que atravessou o mundo em 2019 – os Coletes Amarelos na França, [as rebeliões] no Sudão, Haiti, Hong Kong, Argélia, Porto Rico, Chile, Equador, Iraque, Líbano, etc. (veja John Molyneux, “A New Wave of Global Revolt?”). Houve ainda a propagação mundial das Greves Estudantis e, este ano [2020], mesmo em meio à pandemia de Covid-19, o movimento Black Lives Matter. Isso deixa bem claro que, no atual mundo globalizado, revoltas podem se espalhar mundialmente com velocidade e alcance incríveis. O impacto internacional de uma revolução socialista em qualquer país seria gigantesco. E será ainda maior se houver um forte elemento ecológico anti-mudanças climáticas presente na revolução – como haverá. Porque, independentemente de qualquer debate sobre o socialismo em um só país no passado, estará perfeitamente claro que nenhuma revolução na África do Sul ou na França, Indonésia ou Chile, será capaz de enfrentar as mudanças climáticas enquanto os Estados Unidos, a China, a Rússia e a Índia continuarem realizando seus negócios do modo como têm feito. As mudanças climáticas são uma questão internacional como nenhuma outra na história.

Em relação à questão de outras alternativas além de tornar o capitalismo sustentável ou derrubá-lo revolucionariamente, duas se apresentam: existe a perspectiva/estratégia que busca transformar o capitalismo em socialismo por meio de vitórias em eleições parlamentares, o que poderia ser chamado de estratégia Corbyn; e existe a “alternativa” da barbárie fascista/autoritária. A primeira, infelizmente, é ilusória; a segunda, de forma ainda mais infeliz, é real até demais.

O que chamo de estratégia Corbyn (em sua mais recente versão) é de fato algo bem antigo, remonta pelo menos a Karl Kautsky e ao partido Social Democrata Alemão antes da Primeira Guerra Mundial, e tem sido submetida a numerosos testes práticos, com consequências desastrosas, seja na própria Alemanha, ou na Itália durante o Biênio Vermelho, no Chile, em 1970-73, ou com o Syriza na Grécia, e mesmo com Corbyn (exceto pelo fato de que Corbyn não conseguiu a necessária vitória eleitoral). Na superfície, essa estratégia parece imensamente mais prática e plausível do que uma revolução, mas, na realidade, ela é fundamentalmente falha. A classe dominante existente no capitalismo, seja em um determinado país ou internacionalmente, não abandonará o palco, i.e., não entregará o poder por causa de uma vitória eleitoral socialista. Pelo contrário, irá utilizar todo o seu poder econômico (“greves” de investimentos, fuga de capitais, desvalorização da moeda, etc.), sua hegemonia ideológica e social, sobretudo através da mídia, e, de forma ainda mais determinante, o controle que ela tem sobre o Estado, para subjugar um potencial governo socialista e, se necessário for, destruí-lo. Somente a mobilização revolucionária da classe trabalhadora poderia resistir a esse tipo de sabotagem e superá-la. É por isso que esta alternativa, por mais progressistas que sejam suas intenções, é uma ilusão; ou ela se tornará a revolução que pretendia evitar, ou desaparecerá no ar.

Quando se trata da opção fascista/autoritária, sabemos, através das amargas experiências da Itália, Alemanha, Espanha, Portugal, Chile, e outros lugares, que esta é uma possibilidade bem real e, em vários aspectos, o outro lado da moeda do fracasso da alternativa reformista. E quando olhamos para o sistema capitalista ao redor do mundo hoje, enredado em uma crise de múltiplas dimensões, podemos ver o crescimento da polarização política e as forças de extrema direita aumentando suas fileiras em muitos países. É um fato sombrio que três países estratégicos (EUA, Brasil e Índia) estejam sob governos de extrema direita, se não completamente controlados por fascistas, e que um número significativo de outros países sejam governados por regimes altamente autoritários. Na medida em que a crise climática se intensifica, e com ela o número de refugiados climáticos, a opção fascista/autoritária parecerá cada vez mais atraente para as classes dominantes em pânico e para alguns apoiadores de classe média. A longo prazo, o fascismo não vai impedir o aquecimento global, mas este fracasso pode estar na outra margem de um oceano de barbárie.

Retornando à questão sobre haver ou não tempo para uma mudança de sistema: ninguém pode prever o futuro com precisão, mas o cenário mais provável é, seguramente, que o agravamento da crise climática e ambiental vai intensificar a luta de classes e a polarização política, em todos os sentidos. Um processo que vai se dilatar à medida que o mundo se aproximar do limiar de 1,5°C, e continuará após tê-lo ultrapassado.

O movimento terá que se preocupar não apenas com o que será preciso fazer para evitarmos ou interrompermos as mudanças climáticas, mas também com a forma como iremos lidar com seus efeitos devastadores: por meio da solidariedade, ou da barbárie? O capitalismo, em todas as suas formas, cada vez mais irá recorrer à barbárie; apenas a mudança de sistema, a substituição do capitalismo pelo socialismo, permitirá uma resposta fundada na classe trabalhadora e na solidariedade humana.

 

Fonte: Por John Molyneux, na Global Socialist Network | Tradução: Ricardo d’Arêde, em Outras Palavras

 

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