sábado, 20 de julho de 2024

Marcelo Zero: Trump e o agravamento da crise mundial

Na crise de 1929, o presidente estadunidense Hoover insistiu numa política conservadora de austeridade no plano interno, ao mesmo tempo em que, no plano externo, implantou as famigeradas tarifas Smoot-Hawley, as quais quadruplicaram, da noite para o dia, as taxas de importação de 3.200 produtos.

Os demais países avançados da época, também imersos na impotência do paradigma conservador, retaliaram da mesma maneira, o que fez com que o comércio mundial caísse de US$ 18 bilhões, em 1929, para cerca de US$ 6 bilhões, em 1933.

Tivemos, como consequência, a grande Depressão e uma crise mundial que só foi realmente superada com o esforço econômico da Segunda Guerra Mundial.

Hoje, as circunstâncias são diferentes. Há muitos mais atores econômicos relevantes e o comércio mundial é bem mais diversificado.

Naquela época, por exemplo, a Ásia respondia por apenas cerca de 10% das importações mundiais. O comércio mundial estava muito concentrado no Atlântico Norte, entre a América do Norte e a Europa.

Atualmente, porém, o continente asiático responde por praticamente um terço do total das importações mundiais. O Pacífico tornou-se um grande polo dinâmico da economia mundial.

Mesmo assim, os EUA continuam a ser, segundo dados da OMC, o primeiro importador mundial, absorvendo 13,2% do comércio internacional.

Em segundo lugar, está a China, com 10,6%. Num distante terceiro lugar, está a Alemanha, com cerca de 6%.

Por conseguinte, as promessas protecionistas de Trump, somadas às ameaças de uma desvinculação significativa entre as economias dos EUA e a da China, poderão causar dano considerável.

As tarifas de importação médias dos EUA estão em torno 3,4%. Aumentá-las linearmente para 10%, em todos os produtos vindos do mundo, e em 60% especificamente para os produtos chineses, como promete Trump, teria um impacto muito grande, uma vez que ocorreriam as correspondentes retaliações.

É difícil quantificar o impacto geral, pois há muitos fatores envolvidos. Mas não há dúvida de que medidas protecionistas de tal monta e um agravamento do conflito geoeconômico entre as duas principais economias do mundo ameaçariam toda a economia mundial, que mal se recupera dos efeitos negativos da pandemia.

Como fator complicador, há de se salientar que os EUA inviabilizaram, desde 2018, o sistema de solução de controvérsias da OMC, ao não designarem juízes para o Appellate Body, a segunda e definitiva instância do sistema.

Desde então, o comércio mundial virou terra de ninguém. Cada um faz o que quer.

O Brasil poderia não ser muito afetado diretamente, uma vez que não depende mais tanto das exportações para os EUA.

Hoje, os EUA absorvem 10,86 % das exportações do Brasil. Mesmo assim, eles ainda são o segundo importador de produtos brasileiros, embora bem atrás da China, que absorve 31% das exportações brasileiras.

Nossas principais exportações para lá, como as de produtos metalúrgicos, aviões e suas partes, suco de laranja, combustíveis etc. poderiam, é claro, sofrer um efeito direto do protecionismo trumpista.

O efeito negativo maior seria, contudo, o indireto, via o provável desaquecimento e desorganização da economia global.

Entretanto, é provável que a própria economia estadunidense e a população daquele país sofram o dano maior.

Cálculos indicam que, se Trump cumprir o que promete, cada lar americano terá um prejuízo de US$ 1.500,00 anuais, por causa dos custos adicionais dos produtos.

Além disso, muitas indústrias dos EUA poderiam ser afetadas, já que componentes importados fazem parte de seus produtos finais. Produtos que dependem de insumos vindo da China e do México seriam especialmente afetados.

Não é a primeira vez que isso aconteceria. Um estudo de janeiro de 2021, encomendado pelo Conselho Empresarial EUA-China (USCBC), afirma que as políticas comerciais do ex-presidente Donald Trump custaram aos Estados Unidos 245.000 empregos, em seu primeiro mandato.

Dessa vez, contudo, o dano poderia ser bem maior. Não apenas no plano econômico, mas também no plano político-diplomático.

Haveria também de se computar os danos à cooperação centrada na descarbonização das economias, algo vital para o futuro do planeta.

O primeiro governo Trump foi o do American First, a América em primeiro lugar. Agora, Trump parece propor a America Alone, a América isolacionista.

O prejuízo maior, não obstante, seria à democracia. A nova eleição de Trump dará fôlego político ao preocupante crescimento da extrema-direita mundial, inclusive ao bolsonarismo.

Trump, que prometeu retaliação (retribution) caso chegue ao poder, poderá afetar mortalmente as instituições democráticas dos EUA.

Seu projeto político, o “Projeto 2025”, propõe que toda a burocracia federal, incluindo agências independentes, como o Departamento de Justiça, seja colocada sob controle presidencial direto – uma ideia controversa conhecida como “teoria do executivo unitário”.

Na prática, isso agilizaria a tomada de decisões, permitindo ao presidente implementar diretamente políticas numa série de áreas.

A proposta também inclui à eliminação das proteções laborais para funcionários públicos, que poderiam então ser substituídos por nomeados políticos.

Ou seja, propõe-se um aparelhamento total do Estado norte-americano, que faria Bolsonaro corar.

Os danos à economia poderiam ser revertidos. Mas os danos à democracia podem ser irreversíveis.

A vitória de Trump poderá se constituir num atentado à democracia no mundo inteiro.

 

¨      Democracia está enfraquecida nos EUA. Por Ana Maria Oliveira

Em pleno período eleitoral, que vai definir nos Estados Unidos o modelo de governabilidade para os próximos quatro anos, diversos acontecimentos chamam a atenção das pessoas que se preocupam com a estabilidade e o fortalecimento das democracias no mundo.

Por um lado, a candidatura de Joe Biden, do Partido Democrata, vem sofrendo abalos recentes, sob a alegação de que o candidato sofre problemas cognitivos, dada sua idade avançada.

Por outro, a tentativa de Donald Trump, do Partido Republicano, de chegar ao poder representa riscos às instituições democráticas, pelo exemplo que ele deixou quando governou, de 2017 a 2020.

Uma pergunta se apresenta: a democracia estadunidense está em perigo ou já vive uma crise sem precedentes?

É necessário refletir sobre esse contexto, pois, a menos de quatro meses das eleições presidenciais de novembro, incertezas rondam os dois maiores partidos políticos do país.

Para acrescentar um ingrediente negativo, Donald Trump foi alvejado num atentado, durante comício realizado na Pensilvânia, no sábado, 13 de julho.

O tiro atingiu o candidato republicano de raspão, mas, se o tivesse atingido fatalmente, os republicanos iriam reagir, provavelmente, tratando Trump como um herói, colocando-se como vítimas e culpando os oponentes do Partido Democrata, por aparentemente terem planejado ou, pelo menos, contribuído para o acirramento dos ânimos, que teria propiciado o atentado.

Para Donald Trump e seus eleitores, os Democratas são inimigos.

Esse segmento mais radicalizado do eleitorado republicano não compartilha a visão da política democrática, de que estão em disputa projetos políticos diferentes, o que exige respeito, mas reforça um sentimento de vingança e ódio. Além disso, tenta desacreditar as instituições e burlar normas.

A invasão do Capitólio, no dia 6 de janeiro de 2021, foi uma prova disso. Incentivados por Trump, foram convocados a se reunir em Washington, para questionarem o resultado eleitoral que deu vitória a Biden.

Baseados na falsa alegação – nunca comprovada – de que houve fraude na votação, queriam forçar o então vice-presidente Mike Pence a não validar a contagem dos votos.

Além de representar um atentado à democracia, a ação resultou em cinco mortes, prisões e a depredação do interior do Congresso.

Esses episódios mobilizaram a opinião pública nos EUA e em outros países.

Apesar de nas últimas décadas os governos não estarem contemplando, devidamente, as demandas da população, com políticas sociais robustas, voltadas à saúde, educação e moradia, a democracia estadunidense é uma das mais antigas do mundo e serve, com frequência, como um modelo a ser seguido.

Mas o sistema político parece não estar dando conta dos desafios e há a tendência ao crescimento da extrema-direita no país.

Recentemente, o processo das eleições parlamentares na França mostrou fragilidade. A extrema-direita quase chegou ao poder, não fosse a atuação de lideranças políticas experientes e o comprometimento do eleitorado democrático, que fizeram um acordo para que os franceses comparecessem em massa e votassem expressivamente nos candidatos de esquerda e do centro liberal.

O que está havendo com a democracia?

Para compreendermos o que está acontecendo, é importante nos remetermos ao tema da democracia.

Muitos estudos e pesquisas realizados em diferentes países têm se preocupado em examinar a qualidade das democracias atuais e a performance de governos democráticos.

Nos anos 80 e 90 do século passado, buscou-se analisar processos de transição democrática na América Latina, África, Leste Europeu e Ásia.

Mostrou-se que o número de países democráticos cresceu acentuadamente no período. Em 1985, havia 42 países democráticos, que abrigavam 20% da população mundial.

Já em 2015, esse número cresceu para 103, responsáveis por 56% da população mundial. Essas estatísticas foram produzidas pelo Polity Project e analisadas pelos pesquisadores.

O Projeto Polity, atualmente na versão Polity IV, é um medidor de democracia, desenvolvido pela corporação sem fins lucrativos Center for Systemic Peace (CSP), fundada em 1997, com sede em Viena.

O Polity gera relatórios anuais da situação dos principais estados-nações do mundo (com mais de 500.000 habitantes), que são publicados em seu site.

Dos anos 2000 em diante, passou-se a estudar a questão da qualidade das democracias e a performance dos governos democráticos.

Em função do fracasso da democratização em países que promoveram a Primavera Árabe, à exceção da Tunísia, Leste Europeu e Ásia, houve certo consenso em torno da ideia de uma “recessão democrática”.

Nos últimos anos, a preocupação passou a ser a crise das democracias consolidadas.

Um livro instigante que lança luz sobre a crise da democracia nos EUA é “Como as democracias morrem”, dos professores de Ciência Política de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.

Eles adotam como ponto central de análise a crise no sistema político estadunidense, sobretudo a partir da ascensão de Donald Trump, eleito no final de 2016, e que assumiu a presidência em 2017.

Os pesquisadores indicam fatores que contribuíram para essa crise, como mudanças nas regras de escolha dos candidatos a presidente, o que facilitou a entrada de outsiders como Trump; a adoção de regras informais em contraponto às regras escritas, que sobrevivem mais tempo; e uma menor atuação de líderes políticos e dos partidos para evitar que demagogos extremistas acumulassem poder e participassem das chapas eleitorais.

Sobre isso, Levitsky e Ziblatt afirmam: “Sem normas robustas, os freios e contrapesos constitucionais não servem como os bastiões da democracia que nós imaginamos que eles sejam”.

E destacam: “O paradoxo trágico da via eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia usam as próprias instituições da democracia – gradual, sutil e mesmo legalmente – para matá-la”.

Na visão desses cientistas políticos, a surpreendente vitória de Trump, em 2016, foi viabilizada não apenas pela insatisfação dos eleitores com a situação do país, mas também pelo fracasso do Partido Republicano em “impedir que um demagogo extremista em suas próprias fileiras conquistasse a indicação”.

O que podemos esperar da campanha de Trump nos próximos meses? Se ele vencer o pleito, o que será da democracia já em crise nos EUA?

Na semana que começou em 15 de julho, a Convenção do Partido Republicano em Wisconsin oficializou Donald Trump como candidato e o senador James David Vance como seu vice.

Vance tem se apresentado como um “conservador outsider, fuzileiro, empresário e autor”. Ao mesmo tempo, o programa de governo elaborado por Trump, que foi submetido à Convenção, baseia-se na ideia de que os Estados Unidos estão “em declínio” e o estilo de vida dos norte-americanos “sob ameaça”.

Sugere, entre outras medidas, o controle das fronteiras, a deportação em massa e o término da construção do muro na fronteira com o México como soluções para coibir o fluxo de imigrantes. Um roteiro típico da extrema-direita.

 

Fonte: Viomundo


 

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