Maíra Vasconcelos: Confrontar com Lula é
útil para Milei se fortalecer como líder da ultradireita
A atuação política
quase palhacesca de Javier Milei nas relações com o Brasil tem um caráter
duplo. Ao confrontar com o presidente Lula da Silva, Milei marca uma diferença
para poder se posicionar como referência da extrema-direita na América Latina.
Por isso, é possível que prossiga com os ataques e provocações ao “comunista”
Lula, como tem se dirigido Milei ao ex-metalúrgico em tom depreciativo. Além do
mais, assim também reafirma sua relação com o ultradireitista Jair Bolsonaro. A
interrogativa é até que ponto Bolsonaro irá tolerar essa ascensão, caso Milei
se torne o porta-voz da extrema-direita na região. Ambos poderiam passar de
colaboradores a competidores. A seguinte análise foi feita pelo politólogo
argentino Alejandro Frenkel, e doutor em Ciências Políticas pela Universidad de
Buenos Aires (UBA), durante entrevista para o Jornal GGN, em um café no bairro
portenho de Villa Crespo.
A política do jogo
duplo se dá também na forma como o chefe do Executivo e a chancelaria têm
atuado. Milei tem confrontado e insultado para enfatizar a polarização. Não fez
ainda uma visita diplomática ao presidente Lula, também se ausentou do encontro
do Mercosul, em Assunção, Paraguai, na semana passada, e foi ao Brasil para um
evento da ultradireita, em Camboriú, junto a Bolsonaro. Enquanto a chanceler
Diana Mondino participou de modo cordial da reunião do Mercosul, na capital
paraguaia.
A chancelaria atuaria
para reduzir os danos dos confrontos gerados por Milei, e manter uma relação
cordial e amistosa com o Brasil, visando a manutenção dos acordos comerciais.
Frenkel acredita que esse tipo de diplomacia dos “libertários”, onde um governo
atua de forma tão díspare, talvez, não seja algo sustentável: “um chanceler não
pode desarmar tudo o que um presidente faz”, disse. A tudo isso, Frenkel também
destacou como “uma política de desinteresse” de Milei em relação à América
Latina, algo inédito nas relações exteriores da Argentina.
Além do mais, o
politólogo e pesquisador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e
Técnicas (Conicet), acredita que a médio prazo, esse tipo de constante tensão e
ruptura política, provocada por Milei, pode interferir nas relações econômicas
entre os dois países.
A conversa com o
politólogo também derivou nas comparações entre o governo do ex-presidente
neoliberal Carlos Menem, nos anos 90, e o atual governo. Já que Milei é o
primeiro presidente, desde então, a reivindicar o chamado menemismo. Mas as
diferenças na condução da política internacional se dão, principalmente, em
relação à América do Sul. Já que, por outro lado, Milei, assim como Menem,
expressa apoio incondicional aos Estados Unidos.
Sobre esses insultos e
ataques do presidente argentino, muito constantes, dirigidos ao presidente Lula
da Silva. Além do mais, Javier Milei não realizou ainda uma visita diplomática,
comum na agenda exterior de qualquer presidente. Você acredita que há uma
estratégia nessa atuação agressiva e confrontativa? Estaria apontado a algo
específico?
Não sei se diria
estratégia, mas, sim, acho que responde a uma lógica. Uma forma sobre a qual se
desenvolve ou que Milei age politicamente. Não sei se responde a um plano
desenhado estrategicamente, o que poderíamos dizer uma estratégia. Não me
parece um modo isolado frente às outras formas que ele tem de atuar
politicamente. Que está muito atravessado pela antagonização, pela polarização,
pelo conflito, por construir inimigos e posicionar-se sempre do lado oposto.
Nesse sentido, acredito que Lula é uma figura que é útil para Milei, que serve
para isso. Apontá-lo como comunista, como socialista, marca um contraponto
também em termos de… Brasil e Argentina, os dois países mais importantes da
América do Sul. Marcar uma contraposição aí.
Também, duvido até que
ponto o Milei esteja falando ao público argentino. Na minha opinião, não
acredito que seja algo que condicione tanto. Dizendo, vou atacar o Lula para
fidelizar meu próprio eleitorado. Não acredito tanto nessas leituras. Acho que
Milei não precisa disso. Seus próprios seguidores continuarão a segui-lo de
qualquer jeito. Não é que Lula sirva para isso. Acredito que, sim, serve mais
para fortalecer o papel que ele tenta ocupar de um referente ou um líder da
extrema-direita em nível global.
E nisso acho que há um
caráter um duplo. Por um lado, alinhar-se com Bolsonaro. Confrontar com Lula
também fortalece seu vínculo com Bolsonaro. E, ao mesmo tempo, e isso é uma
hipótese, não sei até que ponto Bolsonaro acharia bom a ascensão de Milei ou que
Milei se transforme em “o referente” latino-americano da extrema direita.
Talvez, seja algo que não lhe agrade muito. Porque, até pouco tempo, Bolsonaro
era o principal interlocutor da ultradireita na América Latina. Então, pode
haver uma competição que não sei como pode resultar. Até agora, parece que está
tudo bem. Outro dia, lhe deram uma medalha.
Então, se
considerarmos essa ideia de Milei, de colocar-se como um líder da extrema
direita, essa postura teria que ser sustentada a longo prazo.
Eu acho que sim. Por
um lado, sim. Por outro lado, também é necessário reconhecer que, geralmente,
tanto Bolsonaro, como Trump também, muitos líderes de extrema direita têm
mostrado certa flexibilidade, em alguns aspectos. Digo, penso em Bolsonaro em
relação à China, por exemplo. Não imagino Milei abraçando o Lula, mas não
descartaria que em algum momento Milei pudesse ter maior aproximação a um
encontro formal. Vejo difícil, hoje em dia. Não descartaria, porque acho que há
antecedentes, que mostram que esses líderes de extrema direita podem ser
flexíveis. Por mais que, em alguns momentos, pareçam muito rígidos
ideologicamente, têm mostrado em alguns aspectos, certa flexibilidade.
Respondendo a sua pergunta, acredito que irá manter essa postura, não acredito
que Milei adote uma postura muito amistosa com o Brasil. Mas pode ser que, em
alguns momentos, essa conflitividade passe por momentos de distensão.
Também acho que a
política exterior de Milei tem uma característica que, talvez, se mantenha.
Milei tem uma posição mais confrontativa e depois aparece Diana Mondino e a
Chancelaria fazendo uma espécie de política de redução de danos. Mais para
apaziguar. Acho que sim. Mas não acredito que seja sustentável manter uma
política exterior dessa maneira. Não se pode dividir tão categoricamente, o que
faz o presidente e o que faz a chanceler. Um chanceler não pode desarmar tudo o
que um presidente faz. Mas acho que, até agora, a Argentina vem se
administrando nesses termos. O que acho que pode acontecer é que seja mantido
esse mesmo nível de conflito, mas que, ao mesmo tempo, esteja a chancelaria ou
outros atores tentando reduzir o conflito.
Aí você já entrou no
que minha próxima pergunta, justamente, sobre essa postura tão marcada e
diferente entre Diana Mondino e Javier Milei.
Até agora, o que se
está vendo, é um pouco isso. E foi o que se viu na cúpula do Mercosul. Milei
não foi, voltou a atacar o Lula, e se reuniu com o Bolsonaro. Mondino foi à
reunião do Mercosul, manteve uma posição cooperativa, citou o Lula em seu
discurso várias vezes, “como disse Lula”. Parece que foi vista uma atitude mais
amistosa por parte de Mondino, o que também vimos em outros momentos. Mondino
viajou ao Brasil, quando Milei assumiu, e depois de algumas agressões por parte
de Milei. Ou seja, acho que a diplomacia argentina, uma das características que
está tendo, é um presidente muito confrontativo e uma chanceler, que, em alguns
aspectos, tentar fazer uma redução de danos. De mostrar, tudo isso é parte de
um show e eu faço a verdadeira política. Repito, eu acredito que não se pode
dividir a política exterior nesses termos. E não é grátis. Não é que existem
dois trilhos… ou seja, muitas vezes, a diplomacia se ativa por vários trilhos.
Mas ao ser tão contraditório, gera uma incongruência e uma incoerência na
política exterior que não é muito sustentável.
Não se pode dividir
tão categoricamente, o que faz o presidente e o que faz a chanceler. Um
chanceler não pode desarmar tudo o que um presidente faz.
Agora que você abriu
essa leitura, Diana Mondino também tem uma postura na política doméstica e
outra em política exterior. Internamente, ela fez declarações muito radicais,
conservadoras, e também discriminatórias sobre questões sociais nacionais…
Aí tem duas coisas
para assinalar. Por um lado, eu suspeito que essa… para além do que ela
particularmente pense, esse discurso radical na política local, suspeito que
pode ter a ver com o fato de Mondino querer consolidar-se internamente, no
gabinete. Como para conseguir apoio nos setores mileistas. Suspeito que, uma
parte, pode ter a ver com isso. Mas, por outro lado, também, para assinalar
quase um contraponto, é que Mondino deixou um pouco de fazer declarações
políticas sobre questões nacionais. Acho que, pelo o que vejo nos últimos
tempos, ela está mais calada. Está se dedicando mais ao seu cargo de chanceler
e não anda opinando tanto sobre questões políticas argentinas.
A diplomacia
argentina, uma das características que está tendo, é um presidente muito
confrontativo e uma chanceler, que, em alguns aspectos, tenta fazer uma redução
de danos.
Por um lado, diria que
quando ela opinou, acho que tem a ver com isso, com fortalecer sua posição
dentro do grupo mileista, do governo. E, por outro lado, nos últimos tempos, a
vejo mais calada, então, talvez esteja buscando um perfil mais humilde. Há poucas
semanas, houve rumores de que ela seria afastada. Depois disso, acho que ela
assumiu um perfil mais humilde. E o que dizem, também, é que Karina Milei, a
irmã de Javier, colocou uma pessoa de sua confiança para controlar o que
Mondino faz. Acho que também aí tem uma interna que não está claro para onde
vai.
Voltando a Bolsonaro.
Até onde pode chegar esses laços com o ex-presidente e sua família? Por
exemplo, o filho de Bolsonaro, Eduardo, esteve no bunker de Milei, nas eleições
do ano passado.
Eu leria isso de uma
maneira mais como dissemos ao princípio. Tem se construído uma rede de extrema
direita em nível global, pelo menos no Ocidente. Onde há partidos políticos,
movimentos sociais, atores econômicos, “think tanks”, e o chamado Fórum de Madrid,
organizado pelo Vox, que até agora, tem sido um dos grandes fóruns que nucleiam
a ultradireita, ao menos em nível ibero-americano. Então, aí acho que confluem
com Bolsonaro, como parte dessa rede internacional de extrema direita. Acredito
que compartilham esse espaço e, nesse sentido, têm alguns objetivos e inimigos
comuns. Depois, bom, há algo que não sabemos, é até que ponto Bolsonaro chegou
a apoiar Milei, não sabemos se teve algum financiamento. Aí há uma incógnita.
Como você disse, Eduardo Bolsonaro, se reuniu antes, durante a campanha.
Claramente, tem um apoio político. Provavelmente, em algum momento, Milei irá
retribuir. Então, além das afinidades pessoais, que desconheço se existem ou
não, mas diria que sim, me parece que são parte do mesmo ecossistema político.
E nesse ponto, você vê
algo muito diferente do que acontece na centro-esquerda? Esse tipo de
intercâmbio, de laço que a ultradireita global tem buscado estabelecer?
A centro-esquerda que
governa ou você fala em termos… ?
De modo geral, os que
estão no governo e também os que atuam fora da governabilidade. Digo,
comparando a ultradireita com a centro-esquerda.
Você diz se eu vejo
que acontece a mesma coisa com a centro-esquerda? Bom…parece que não estão no
mesmo nível como está acontecendo com a extrema direita. Tem ainda, na América
Latina, ao menos pensando em termos regionais… em dado momento, o “Grupo de Puebla”,
que nucleava figuras da esquerda, da centro-esquerda. Hoje, parece que
continuam presentes, mas bastante relegados, o mesmo diria sobre o Fórum de São
Paulo. Acredito que tem acontecido um declive, mas acho que se explica também
um pouco, ou tem sido ao mesmo tempo dessa certa crise das esquerdas na região.
O que aconteceu na Venezuela, no Equador, na Bolívia, por mais que governe um
partido de esquerda, está submergido em uma crise interna; na Argentina, no
governo de Alberto Fernández, tampouco houve um impulso muito grande dos
partidos políticos e movimentos sociais. Então, acredito que aí sim. Continua
havendo algumas instâncias, mas estão muito mais fragmentados do que parece
acontecer com a extrema direita.
Há algo que não
sabemos, e é até que ponto Bolsonaro chegou a apoiar Milei. Não sabemos se teve
algum financiamento. Aí há uma incógnita.
Voltando um pouco na
história. Milei reivindica a figura do ex-presidente Carlos Menem, e na mídia
local costuma-se fazer comparações entre o que foi o governo Menem, com Milei,
hoje em dia. Mas nas relações exteriores há diferenças? Quais são? Pois Menem
impulsionou o tratado para fundação do Mercosul.
Talvez, o ponto mais
comum com a política exterior de Menem, seja a relação com os Estados Unidos. O
alinhamento irrestrito com os Estados Unidos. E, até agora, mesmo que no caso
de Milei ainda não tenham implementado muito, mas acho que esse é um dos seus
objetivos, uma agenda de maior liberalização comercial ou econômica, em nível
externo. Abrir a economia argentina. Acho que esses são os dois pontos mais
importantes. Em nível político e de segurança, a relação com os Estados Unidos,
e com a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), pertencer ao
Ocidente. E na parte econômica, abrir a economia argentina, quase também de
maneira irrestrita, abruptamente. Até agora, não há políticas tão concretas,
mas é o rumo que propõe Milei.
Dito isso, me parece
que, em termos de diferença, primeiramente, o mundo é distinto. Menem propôs
uma política exterior em um mundo muito diferente ao atual. Tinha caído o muro
de Berlim, tinha terminado a Guerra Fria, os Estados Unidos eram a primeira potência,
indiscutivelmente. Havia muitos processos que incidiam muito na capacidade de
manobra que tinham os países, sobretudo, da América Latina. O que o governo de
Menem tentou, foi se moldar à ideia do mundo que está surgindo. Ou seja,
chegamos em um momento de “viver em sintonia com o mundo”. Havia também uma
visão muito otimista da globalização, de que se estava gerando uma onda ou uma
expansão dos investimentos, vindos do Norte ao Sul. Por isso, havia que se
mostrar como um país favorável para esses investimentos.
Nos anos 90, houve um
protagonismo argentino importante em questões regionais, coisa que no caso de
Milei não se vê de forma alguma. Até agora, o governo tem mostrado uma política
de desinteresse muito chamativo e inédito para as relações exteriores argentinas,
junto à região.
Bom, todo esse mundo
hoje não existe mais. Os Estados Unidos estão em processo de certo declive e de
forte competição com a China. Já não são indiscutivelmente a primeira potência.
Não há tampouco um processo de globalização e abertura econômica impulsionado
desde o Norte. De fato estamos vendo que na Europa e nos Estados Unidos está
ganhando cada vez mais lugar uma agenda e um discurso protecionista.
Justamente, não tanto de promover os investimentos ao exterior, mas para que os
investimentos fiquem dentro do país. Então, acredito que aí há um mundo muito
diferente, uma semelhança em algumas políticas, mas frente a um cenário
distinto.
E outra coisa que você
assinalava, que também me parece que é uma diferença importante, é que Menem
nunca deixou de ter uma política ativa frente à América Latina e frente ao
Brasil e ao Cone Sul. Participando da criação do Mercosul, envolvendo-se em diferentes
instância e questões regionais, inclusive mediando alguns conflitos, como foi a
guerra entre Perú e Equador, em 1995, junto com Fernando Henrique Cardoso. Ou
seja, um protagonismo argentino importante em questões regionais, coisa que no
caso de Milei não se vê de forma alguma. Até agora, o governo Milei tem
mostrado uma política de desinteresse muito chamativo e inédito para a política
exterior argentina, junto à região.
Nesse sentido, você
acha que esse tipo de política pode afetar a economia, essa ultraideologização
da postura diplomática de Milei? O governo dá sinais de que tratará os assuntos
econômicos e comerciais de uma maneira e de outra maneira as questões políticas?
Eu acho que… aliás,
tenho que escrever um artigo sobre algo assim. É muito difícil, até agora, não
há indícios muito concretos de que a conflitividade política, ou a posição mais
política do governo Milei, tenha uma consequência muito direta no econômico.
Até agora, não se tem visto isso. Mas eu faria duas advertências. Primeiro, tem
muito pouco tempo de governo, por isso, às vezes, os impactos não são
imediatos, do político sobre o econômico. Não é algo que se dá imediatamente.
Muitas vezes, pode acontecer como pode não acontecer. O que eu digo é que,
quando acontece, pode ser que não seja imediato. Não é como o Tsunami. Primeiro
tal coisa e depois chega a onda. Então, não temos muitos indícios que digam,
sim, esta é a posição política de Milei de confrontar, por exemplo, com Pedro
Sanchéz, ou com Lula, ou de não participar do Mercosul, não mostrar interesse
pela região. Não há indícios que digam que isso está tendo um impacto concreto
em termos econômicos, mas é algo que, às vezes, leva tempo.
E, voltando ao que
falávamos antes, do duplo papel que jogam Milei e Mondino, eu não acho que o
político e o econômico sejam duas esferas completamente separadas. Bom, eu
confronto no político, mas no comercial, não. Acredito que não é muito fácil
dividir as duas áreas. Então, acho que a mediano… talvez, não hoje,
imediatamente, mas um pouco mais no tempo, pode afetar em termos econômicos. Há
indícios que talvez podemos usar, que foi quando em maio, deste ano, teve uma
crise energética e a Argentina precisou da exportação de gás da Petrobrás. Bom,
não podemos saber o que teria acontecido se Milei tivesse um bom vínculo com o
governo, com o Lula. Talvez, tivesse acontecido a mesma coisa, e o barco
tivesse freado. Mas, bom, você pode dizer que talvez com uma relação política
mais fluída, não tivesse acontecido isso. E a Petrobrás não teria bloqueado a
exportação do barco, dizendo que as notas de crédito… Bom, então, não está mal,
ou não me parece estranho pensar que talvez isso não tivesse acontecido.
Fonte: Jornal GGN
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