quarta-feira, 10 de julho de 2024

Luke Savage: ‘O caminho para a servidão capitalista’

Há uma caricatura de longa data da direita sobre como seria a vida em uma sociedade socialista, geralmente algo que lembra Escuridão ao Meio-Dia, de Arthur Koestler, ou 1984, de George Orwell: a vida diária é altamente regrada; o estado é centralizado e onipresente; a dissidência e a liberdade de expressão são severamente restritas; a vigilância é panóptica e constante; a lealdade absoluta é esperada dos cidadãos, que são disciplinados no caso de se afastarem do programa do partido; e as eleições, se realizadas, são uma farsa.

A grande ironia desse esboço distópico, considerando quem ele tende a invocar, é que seu análogo mais próximo hoje é, na verdade, encontrado na corporação multinacional moderna.

Por design, a corporação não é uma empresa democrática. Sua gestão é hierárquica, seus imperativos são crescimento e lucro, e sua estrutura é um sistema de classes composto por proprietários, gerentes e trabalhadores. Você poderia argumentar que, nos primeiros dias do capitalismo, algo como o conceito da livre iniciativa realmente existia: empresas de vários tamanhos competiam, sendo que mesmo as maiores eram inferiores em dimensão e influência à maioria dos Estados-nação. Hoje, as maiores empresas do mundo não apenas exercem poder monopolista e influência política considerável, mas, em muitos casos, têm capitalizações de mercado que excedem o PIB de países inteiros.

Um motivo pelo qual isso é significativo: se muitas empresas multinacionais fossem realmente países, seriam ditaduras autoritárias mais impiedosamente eficientes do que qualquer outra existente. Em muitas dessas empresas, os gerentes exercem poder praticamente irrestrito sobre os subordinados e, graças à tecnologia moderna, praticam, cada vez mais, técnicas avançadas de monitoramento e vigilância.

Considere a Amazon, onde, como relatou Ken Klippenstein do The Intercept em 2021, alguns funcionários dizem que seu desempenho é “monitorado tão de perto pelo vasto arsenal de vigilância de funcionários da empresa que estão constantemente com medo de não atingirem suas cotas de produtividade.” Vários relatórios confirmaram que as cotas da empresa são tão rigorosas que os trabalhadores frequentemente urinam em garrafas por medo de perder tempo e enfrentar punições ou até mesmo demissão. No ano passado, Klippenstein relatou ainda que funcionários superiores da empresa estavam promovendo um novo aplicativo de mídia social interna para trabalhadores, feito com um sistema embutido de recompensas por comportamento correto e uma série de palavras associadas ao descontentamento ou dissidência bloqueadas por design — entre elas “queixa”, “aumento salarial”, “compensação”, “diversidade”, “injustiça”, “justiça”, “sindicato” e até mesmo a palavra “liberdade”.

Os sindicatos podem atuar como contrapesos ao poder às vezes aterrorizante exercido pela administração. Infelizmente, a maioria dos trabalhadores não têm a sorte de pertencer a eles. Graças à legislação trabalhista atual dos EUA, muitas eleições sindicais são tão democráticas quanto aquelas realizadas em “repúblicas de bananas” — isso se os trabalhadores conseguirem iniciar uma campanha sindicalista em primeiro lugar.

Graças às vastas prerrogativas concedidas à administração, algumas empresas não se contentam em controlar o comportamento dos trabalhadores no trabalho e agora buscam controlar também seus corações e mentes. Um livro de 2012, escrito pelo presidente do Metro Bank, com sede no Reino Unido, descreve essa abordagem psicológica das relações de emprego em detalhes distópicos, observando como a empresa tenta “desprogramar” os novos contratados e afirmando, sem qualquer ironia, que “não demora muito para que [eles] vejam que nossa filosofia é muito mais do que uma declaração da missão corporativa: é um modo de vida.”

Como Abi Wilkinson escreveu em 2016, o resultado típico é uma enxurrada de “propaganda carregada de jargões sobre ‘valores corporativos’ e atividades humilhantes e infantilizantes” através das quais “gerentes seniores tentam moldar máquinas de serviço ao cliente, obedientes e dedicadas, cujo trabalho se torna o propósito central de suas vidas.”

A réplica inevitável a tudo isso é que o emprego é, em última análise, voluntário: um funcionário da Amazon que não gosta de cotas de trabalho rigorosas ou um caixa de supermercado que se recusa a realizar a dança do espírito da empresa sempre pode encontrar um emprego remunerado em outro lugar. No entanto, quando a regulamentação trabalhista é reduzida ao mínimo e um número cada vez menor de conglomerados corporativos em expansão domina o mercado de trabalho, o “outro lugar” muitas vezes parece incrivelmente familiar.

Para a vasta maioria das sociedades, a escolha entre ter um emprego e não, não é realmente uma escolha. Sociedades de mercado são, por essência, também sociedades de classes nas quais uma minoria possui os meios de produção e extrai o valor excedente dos trabalhadores, enquanto um grupo muito maior produz para ganhar a subsistência através do trabalho assalariado. Diante da escolha de passar fome e ser sem-teto ou passar a maior parte de nossas vidas adultas ganhando um salário, a maioria de nós optará pelo último, mesmo que as condições impostas sejam absolutamente horríveis. Alguns poucos podem ascender na escala de classes ou até se tornarem proprietários, mas a estrutura básica permanecerá inalterada.

Isso é particularmente significativo, dado que atualmente algumas empresas são genuinamente globais em escopo e efetivamente operam como ditaduras privadas, cujos líderes viajam em super iates e habitam Xanadus pós-modernos, enquanto os cidadãos trabalhadores são forçados a jurar lealdade e urinar em garrafas. O Grande Irmão está de fato observando você — e ele está fazendo isso em um escritório com ar-condicionado, antes de ir ao piquenique da empresa.

 

•        A especulação com o dólar e a autonomia do BC. Por Merlong Solano

O Brasil tem sofrido nos últimos 2 meses um forte ataque especulativo contra o real, que levou o dólar de R$ 5,11 para mais de R$ 5,60.  Fatores externos à parte, com sua grande influência nos fluxos de câmbio, chama a atenção a postura do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Numa mistura de omissão e ação de sabotagem contra o Brasil, tem sido determinante sua contribuição para a onda especulativa, embora setores da mídia, complacentes com o presidente do BC, prefiram atribuir a situação ao presidente Lula em razão de suas críticas à atuação da autarquia.

O Brasil tem condições de enfrentar o ataque ao real. Em 2 meses, as reservas cambiais do país saltaram de US$ 352 bilhões para US$ 357 bilhões, recursos que podem ser utilizados para conter a especulação. Mas, ao contrário do que ocorreu no governo Bolsonaro, Campos Neto –indicado pelo ex-presidente– ficou estranhamente imobilizado, não atuando no mercado de câmbio para segurar a cotação.

No governo anterior, quando surgia um movimento de especulação cambial, Campos Neto usava as reservas internacionais –que, aliás, foram acumuladas nos governos Lula e Dilma. No governo militarista passado, o presidente do BC usou US$ 65,8 bilhões a fim de manter o câmbio sob controle. Só na véspera das eleições de 2022, Campos Neto vendeu US$ 20,85 bilhões.

Agora, não só ficou inerte como fez declarações que contribuíram para agravar a crise cambial. Ao comentar a questão fiscal, disse que não era da sua conta –mas ajudou a encher as burras de quem especula com o dólar no Brasil. Participou de convescote com banqueiros e integrantes da oposição ao governo Lula. Há algo estranho no ar que precisa ser investigado.

Na prática, a fala do presidente do BC, e não as de Lula, impulsionou a apreciação do dólar, muito mais do que em outros países latino-americanos. Campos Neto ajudou quem apostou na ausência de intervenção do BC. Uma investigação é necessária para se saber os nomes das empresas e dos rentistas que ganharam com a paralisia do BC frontalmente contrária aos interesses nacionais. O presidente Lula está certo: um presidente do BC não pode se achar mais importante que o chefe do Executivo federal, eleito por mais de 60 milhões de brasileiros.

Ora, o próprio site do BC mostra: “O Banco Central regulamenta o mercado de câmbio e autoriza e supervisiona as instituições que nele operam. O Banco Central tem atribuição para executar a política cambial, podendo atuar diretamente no mercado, comprando e vendendo moeda estrangeira de forma ocasional e limitada, com o objetivo de conter movimentos desordenados da taxa de câmbio”. O presidente bolsonarista do BC ignora o papel legal da entidade que preside. Aposta ostensivamente no enfraquecimento do real e, para consolidar essa atitude antinacional, não interfere no câmbio. Com a certeza da impunidade, Campos Neto sinaliza para o mercado inação completa, o que estimula um ataque especulativo ao real. Trata-se de uma verdadeira sabotagem contra o Brasil.

Mais grave é que esse estímulo à desvalorização do Real também estimula uma alta das expectativas inflacionárias. Com isso, Campos Neto reforça seu próprio argumento em prol da alta nas taxas de juros, atendendo aos especuladores, rentistas e ao “mercado”.  Não tem perfil técnico, mas sim, o de um opositor ao governo Lula.

Todo esse cenário remete a uma questão: a tão falada autonomia plena do Banco Central.  Engavetado por quase 30 anos, o projeto que concede autonomia formal ao Banco Central foi aprovado no governo passado, capturado pelo sistema financeiro. Como a bancada do PT na Câmara denunciou há 10 anos, tratava-se, na prática, da permissão para que um órgão estratégico ficasse descolado das plataformas dos governos escolhidos pelos brasileiros nas urnas.

Antes da mudança, nunca faltou ao Banco Central a autonomia operacional necessária para executar a política monetária, ou seja, a capacidade de fazer suas escolhas para perseguir as metas de inflação fixadas pelo Poder Executivo por intermédio do Conselho Monetário Nacional. A autonomia, como vemos agora com Campos Neto, assegurou a um segmento burocrático do Estado –submetido à forte influência do já privilegiado sistema financeiro– o poder de agir independentemente do Executivo e do programa do governo eleito para promover a retomada do caminho do desenvolvimento com justiça social e do combate às desigualdades sociais e regionais. A autonomia do BC significou aprofundamento do secular modelo elitista do Brasil.

 

Fonte: Tradução de Sofia Schurig, para Jacobin Brasil/Brasil 247

 

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