Luiz Martins de Melo: ‘A pregação rentista’
O governo brasileiro,
como qualquer governo que emite moeda soberana, não pode ficar sem dinheiro. A
ideia de que qualquer governo pode quebrar é todo dia disseminada na grande
mídia por artigos de opinião pregando o ajuste fiscal para evitar risco de calote
da dívida pública em moeda nacional. É interessante tornar claros os principais
pressupostos que formam a base dessas teorias.
O primeiro erro é
afirmar que o governo deve tomar empréstimos para financiar seus déficits,
porque imprimir dinheiro causa inflação. Todos os gastos do governo assumem a
forma de um crédito, portanto aumentam a oferta de dinheiro. Se isso causasse
hiperinflação, teríamos hiperinflação o tempo todo.
O segundo pressuposto
errado é o da existência de uma lei que governos devem tomar empréstimos para
financiar déficits. Existem regras relevantes que regem os procedimentos
operacionais. O Tesouro está proibido de sacar a descoberto em sua conta de
depósito no Banco Central e este, por sua vez, não pode comprar títulos
diretamente do Tesouro (nova emissão). Para simplificar, podemos dizer que o
Tesouro não pode “emprestar” diretamente do Bacen (com algumas ressalvas, pois
as regras às vezes são relaxadas).
Já o terceiro
pressuposto está correto. Mas é aqui que as coisas ficam difíceis. O Bacen é o
banco do Tesouro Nacional. Assim como recebe ou faz um pagamento eletrônico, o
Bacen credita as reservas do banco do destinatário, e esse banco credita a
conta de depósito de seu cliente. Quando o Tesouro recebe um pagamento, como,
por exemplo, o pagamento de algum imposto de um ente privado, o Bacen debita as
reservas do banco do pagador, e esse banco debita a conta do cliente. Se o
Tesouro faz mais pagamentos do que recebe, o Bacen acumula reservas bancárias
líquidas e esses bancos criam dinheiro líquido de novos depósitos. Aqui surge
um problema.
Os créditos de reserva
líquida exercem pressão descendente sobre as taxas de juros, à medida que os
bancos com reservas extras os emprestam no mercado de títulos públicos. O Bacen
paga juros sobre as reservas, mas com a menor taxa do país. Os bancos que buscam
lucro esperam melhores retornos, mas preferem manter ativos seguros e líquidos.
Títulos do Tesouro Nacional se encaixam na operação.
Se o Tesouro está
sacando da sua conta no Bacen, gastando mais do que arrecada em impostos, ele
vende títulos. O Bacen lida com as vendas. Quando os títulos são vendidos
diretamente aos bancos, eles usam reservas em pagamento. Se um fundo de pensão,
empresa ou família comprar um título, as reservas de seu banco serão debitadas
e seu banco debitará seus depósitos. Quando o Bacen debita reservas bancárias,
ele credita na conta do Tesouro. A conta de depósito do Tesouro no Bacen é
recomposta, para que possa fazer pagamentos sem violar a proibição de sacar a
descoberto, tipo cheque especial, ou venda direta de títulos ao Bacen.
Se os banqueiros
mudarem de ideia e decidirem que preferem ter reservas, o Bacen compra títulos
que o Tesouro acabou de vender. Essa é uma compra de mercado secundário,
perfeitamente legal, e algo que o Bacen vem fazendo para evitar ter que elevar
os juros.
Esta é a verdadeira
razão pela qual o Bacen define as taxas de juros, não pelo déficit fiscal ou
por risco de calote da dívida. Ele a mantém alta por causa da taxa do banco
central americano (FED) de 5,5% ao ano. Essa é a variável central de decisão da
taxa de juros pelo Bacen. Juros altos não têm nada a ver com a questão fiscal.
O choque da inflação
pós-Covid, que fez a taxa de juros subir não foi o fiscal. Foi o choque exógeno
da inflação e o nosso Bacen “independente” se antecipou ao FED e ao Banco
Central Europeu e elevou estratosfericamente a taxa de juros. Ninguém reclamou dessa
violenta subida dos juros. Porém, quando chega a hora de baixar, começa
recorrentemente o mimimi fiscalista.
Com a taxa de juros
americana de curto prazo em 5,5% ao ano, baixar a taxa de juros no Brasil tem o
risco de uma fuga de capitais, da desvalorização do Real e geração de uma
pressão inflacionária. Mas para que servem as reservas de US$ 335 bilhões? No
momento não existe nenhum problema de crise de balanço de pagamentos, a balança
comercial é altamente superavitária e o déficit em transações correntes, 1,79%
do PIB, perfeitamente financiável. Sob este aspecto, a economia brasileira vive
situação confortável, de baixo endividamento externo, inflação controlada e
grandes reservas internacionais. Por que é necessário ter superávit primário e
juros tão altos? Isso não tem lógica.
O único sentido é que
visa imobilizar o governo e culpar uma suposta “gastança”, cuja origem está no
preço pago pelas altas taxas de juros. Esse é o discurso conservador da Faria
Lima reproduzido pela grande mídia. A defesa do arrocho fiscal, com cortes na
educação e na saúde, desvinculação dos benefícios previdenciários do salário
mínimo, como propõem os articulistas liberais conservadores, é a pregação
rentista.
Porém, essa convenção
macroeconômica neoliberal tem outras implicações políticas. Ela conseguiu
juntar interesses distintos de parte do grande capital industrial com o capital
financeiro. A taxa de juros é a cola desta reunião de interesses.
Se os juros estiverem
baixos, a economia fica aquecida, aumenta o emprego. Nesta situação, o
empresariado reclama de demanda aquecida e da pressão por aumento de salários,
mesmo que a taxa de desemprego esteja em 7,5% ao ano e metade da população em
condições de trabalhar esteja em condições de precarização no mercado de
trabalho. Muito longe do pleno emprego, que poderia pressionar a demanda e
gerar inflação.
Quando aumenta a taxa
de juros, começa outra reclamação: a valorização cambial do Real, que causa a
perda de competividade internacional dos produtos brasileiros, e logo surgem as
pressões por subsídios e incentivos fiscais. O resultado é uma perda de arrecadação
fiscal e déficit fiscal.
Ainda que em alguma
conjuntura específica os blocos de rentistas e o de industriais possam ter
divergências em relação à política monetária e fiscal, desde o Plano Real foi
se consolidando uma união rentista/industrial. Os balanços das grandes empresas
industriais mostram claramente a importância dos ganhos financeiros para a
valorização do capital e como eles se transformaram na atividade fundamental
nessas empresas.
Esse processo de
financeirização brasileiro, com as aplicações em renda fixa rendendo 11 vezes
mais do que a inflação e os juros reais de 6,5% ao ano (média anual dos últimos
30 anos pós Plano Real), o capital aplicado dobra em apenas dez anos. Nesse quadro,
quem vai investir em produção e inovação? Como exemplo, nos países
desenvolvidos com juros reais de 0,5% a 1% ao ano, são necessários mais de 150
anos para dobrar o capital.
Os juros
estratosféricos cumprem a sua missão política. Ao invés de fomentar o
investimento em aumento da capacidade produtiva, em inovação, em
infraestrutura, em saúde e educação, o objetivo é o ajuste fiscal. O alto
diferencial de juros em relação aos internacionais estimula o rentismo
generalizado e as empresas industriais se transformam em operadoras de
tesouraria. Sem demanda e perspectiva de rentabilidade para o investimento
produtivo e inovador, o pacto do rentismo é vencedor.
Quaisquer que sejam as
explicações para os juros astronômicos, o fato é que sob o falso pretexto de
ajudar a controlar a inflação, eles deixam sequelas devastadoras para a
sociedade: baixo crescimento, aumento da dívida pública e ampliação da
desigualdade de renda e riqueza.
¨
A economia das
privatizações e parcerias público-privadas. Por Pedro Forquesato
Está atualmente em
andamento a privatização da Sabesp, que foi aprovada pela Assembleia
Legislativa de São Paulo em dezembro do ano passado, e permite a venda do
controle acionário da empresa de economia mista pelo governo estadual para a
iniciativa privada. Essa privatização se soma à da Eletrobras, em 2022, em um
movimento recente de remoção do Estado da gerência sobre a atividade econômica
em setores estratégicos, e que reacende um debate antigo no Brasil sobre os
limites e papéis do governo na economia.
Por que
internacionalmente alguns setores têm relevante presença estatal enquanto
outros não? Em geral, a viabilidade da concessão ao setor privado de atividades
econômicas tem relação com as características do mercado específico em análise.
Mercados em que o governo intervém de forma relevante são aqueles em que os
custos fixos são significativos, limitando que apenas algumas empresas atuem
neles e restringindo, assim, o poder da concorrência de controlar os preços
cobrados pelas firmas privadas sem alguma regulação explícita do Estado.
Já se esta regulação é
eficaz, ou se é mais eficiente a provisão pública direta, depende de uma série
de fatores. Primeiro, depende de quão contratáveis são a qualidade da provisão
do serviço e o valor dos ativos aplicados. Nesse sentido, mercados em que a
qualidade do serviço é fácil de contratar, como rodovias, em que todos
observamos se têm buracos, são muito mais propensos à provisão privada que
serviços em que é difícil observar a qualidade, como a educação, ou que não
conseguimos verificar a infraestrutura, como o setor de água e esgoto (por
estar debaixo da terra).
Por outro lado, um dos
principais argumentos para a provisão privada de serviços públicos é o
potencial inovativo do setor privado, que juntamente com a concorrência de
mercado pode melhorar a qualidade dos serviços e reduzir os seus preços. Aqui
igualmente a aplicabilidade desses efeitos varia por setor. Na telefonia
celular, por exemplo, tanto o potencial inovativo quanto a concorrência de
mercado são elevados, fazendo com que em quase todo o mundo a provisão desses
serviços seja privada. No setor de saneamento, entretanto, a capacidade de
inovação é limitada (embora existente) e a concorrência de mercado é muito
baixa, restringindo os ganhos potenciais da privatização nesse mercado.
Outro argumento
frequentemente levantado em defesa da privatização e parcerias público-privadas
(PPP) é de que estes mecanismos liberariam fundos para o governo, aliviando a
sua restrição fiscal. Mas ao trocar um fluxo futuro de rendimentos (ou, o que é
equivalente, taxas de uso sobre os consumidores) por um montante presente, a
construção, por exemplo, de um aeroporto por PPP não altera a restrição
orçamentária do governo frente à provisão pública, representando apenas uma
troca intertemporal de comprometimentos, exatamente da mesma forma que um
aumento na dívida pública para financiar a construção do aeroporto.
Desconsiderando a divisão de riscos futuros, o mesmo argumento vale para
privatizações como a da Sabesp, que ao alienar o capital do Estado tem exatamente
o mesmo impacto na sua solvência fiscal que um aumento no passivo estatal.
A princípio, se
poderia crer que países em desenvolvimento, por terem pior qualidade
institucional, se beneficiariam mais de privatizações e PPP que países
desenvolvidos. Essa relação, entretanto, não é clara na literatura. Se por um
lado realmente a baixa qualidade institucional pode comprometer a provisão
estatal direta de bens e serviços, a concessão e parcerias com o setor privado
envolvem contratos extremamente complexos e de longo prazo, demandando
igualmente um arcabouço institucional bem estabelecido para serem
bem-sucedidas. Em relação à privatização, estas dependem de um arcabouço
regulatório que funcione bem para garantir que os potenciais ganhos de
produtividade das firmas privadas sejam de fato absorvidos pela população, e
não apenas levem a aumentos dos lucros e remunerações dos executivos dessas
firmas.
O mesmo argumento vale
para a corrupção. É senso comum que países com maior incidência de corrupção,
como o Brasil, se beneficiariam especialmente por este motivo da privatização
de suas empresas e da provisão privada de bens públicos, limitando assim o escopo
para a corrupção no governo. Esse argumento infelizmente esquece que, em
setores regulados, a privatização das empresas públicas simplesmente transfere
a vulnerabilidade à corrupção da gestão estatal direta para a relação entre a
firma e a agência reguladora. Igualmente, em concessões se transfere tal
suscetibilidade para o processo licitatório e o contrato de provisão entre o
setor público e a concessionária privada.
Analisando o caso da
Odebrecht, por exemplo, Nicolás Campos e coautores reportam que não foi
encontrada incidência diferente de corrupção entre processos diretos de compras
públicas e parcerias público-privadas. Em países mais corruptos, os contratos
entre o governo e a iniciativa privada tendem a ser mais incompletos, abrindo
espaço para o uso abusivo de renegociações posteriores de preços.
É importante também
considerar o efeito das privatizações na desigualdade de renda e de riqueza,
especialmente em um dos países mais desiguais do mundo como o Brasil. Mesmo que
representem ganhos de eficiência, a redução de salários ou demissões que frequentemente
são associadas às privatizações têm efeitos negativos sobre a parcela mais
pobre da população, enquanto a eventual redução de tarifas ou aumento dos
lucros favorece igualmente os mais ricos.
Estudos sobre o efeito
das privatizações na América Latina acham efeitos negativos sobre os
trabalhadores, o que pode aumentar a desigualdade de renda. Em outros
continentes, as reduções significativas no capital estatal russo e chinês
durante a década de 1990 são associadas a aumentos drásticos na proporção da
riqueza nacional na mão dos 10% mais ricos, quase duplicando na China em vinte
anos, ao mesmo passo em que a proporção da riqueza com os 40% mais pobres caiu
significativamente nos dois países.
No Brasil, o debate
sobre privatizações e PPP frequentemente se reduz a posições de que o setor
privado seria sempre superior (ou inferior) ao setor público. Pensar de forma
mais cuidadosa o tema é importante para entendermos melhor em que mercados e
para quais objetivos cada modo de organização da atividade econômica é mais
benéfico, além de desenhar políticas públicas que mitiguem os potenciais
efeitos adversos do modo escolhido.
Fonte: Correio da
Cidadania/Jornal da USP
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