segunda-feira, 8 de julho de 2024

Luiz Martins de Melo: ‘A pregação rentista’

O governo brasileiro, como qualquer governo que emite moeda soberana, não pode ficar sem dinheiro. A ideia de que qualquer governo pode quebrar é todo dia disseminada na grande mídia por artigos de opinião pregando o ajuste fiscal para evitar risco de calote da dívida pública em moeda nacional. É interessante tornar claros os principais pressupostos que formam a base dessas teorias.

O primeiro erro é afirmar que o governo deve tomar empréstimos para financiar seus déficits, porque imprimir dinheiro causa inflação. Todos os gastos do governo assumem a forma de um crédito, portanto aumentam a oferta de dinheiro. Se isso causasse hiperinflação, teríamos hiperinflação o tempo todo.

O segundo pressuposto errado é o da existência de uma lei que governos devem tomar empréstimos para financiar déficits. Existem regras relevantes que regem os procedimentos operacionais. O Tesouro está proibido de sacar a descoberto em sua conta de depósito no Banco Central e este, por sua vez, não pode comprar títulos diretamente do Tesouro (nova emissão). Para simplificar, podemos dizer que o Tesouro não pode “emprestar” diretamente do Bacen (com algumas ressalvas, pois as regras às vezes são relaxadas).

Já o terceiro pressuposto está correto. Mas é aqui que as coisas ficam difíceis. O Bacen é o banco do Tesouro Nacional. Assim como recebe ou faz um pagamento eletrônico, o Bacen credita as reservas do banco do destinatário, e esse banco credita a conta de depósito de seu cliente. Quando o Tesouro recebe um pagamento, como, por exemplo, o pagamento de algum imposto de um ente privado, o Bacen debita as reservas do banco do pagador, e esse banco debita a conta do cliente. Se o Tesouro faz mais pagamentos do que recebe, o Bacen acumula reservas bancárias líquidas e esses bancos criam dinheiro líquido de novos depósitos. Aqui surge um problema.

Os créditos de reserva líquida exercem pressão descendente sobre as taxas de juros, à medida que os bancos com reservas extras os emprestam no mercado de títulos públicos. O Bacen paga juros sobre as reservas, mas com a menor taxa do país. Os bancos que buscam lucro esperam melhores retornos, mas preferem manter ativos seguros e líquidos. Títulos do Tesouro Nacional se encaixam na operação.

Se o Tesouro está sacando da sua conta no Bacen, gastando mais do que arrecada em impostos, ele vende títulos. O Bacen lida com as vendas. Quando os títulos são vendidos diretamente aos bancos, eles usam reservas em pagamento. Se um fundo de pensão, empresa ou família comprar um título, as reservas de seu banco serão debitadas e seu banco debitará seus depósitos. Quando o Bacen debita reservas bancárias, ele credita na conta do Tesouro. A conta de depósito do Tesouro no Bacen é recomposta, para que possa fazer pagamentos sem violar a proibição de sacar a descoberto, tipo cheque especial, ou venda direta de títulos ao Bacen.

Se os banqueiros mudarem de ideia e decidirem que preferem ter reservas, o Bacen compra títulos que o Tesouro acabou de vender. Essa é uma compra de mercado secundário, perfeitamente legal, e algo que o Bacen vem fazendo para evitar ter que elevar os juros.

Esta é a verdadeira razão pela qual o Bacen define as taxas de juros, não pelo déficit fiscal ou por risco de calote da dívida. Ele a mantém alta por causa da taxa do banco central americano (FED) de 5,5% ao ano. Essa é a variável central de decisão da taxa de juros pelo Bacen. Juros altos não têm nada a ver com a questão fiscal.

O choque da inflação pós-Covid, que fez a taxa de juros subir não foi o fiscal. Foi o choque exógeno da inflação e o nosso Bacen “independente” se antecipou ao FED e ao Banco Central Europeu e elevou estratosfericamente a taxa de juros. Ninguém reclamou dessa violenta subida dos juros. Porém, quando chega a hora de baixar, começa recorrentemente o mimimi fiscalista.

Com a taxa de juros americana de curto prazo em 5,5% ao ano, baixar a taxa de juros no Brasil tem o risco de uma fuga de capitais, da desvalorização do Real e geração de uma pressão inflacionária. Mas para que servem as reservas de US$ 335 bilhões? No momento não existe nenhum problema de crise de balanço de pagamentos, a balança comercial é altamente superavitária e o déficit em transações correntes, 1,79% do PIB, perfeitamente financiável. Sob este aspecto, a economia brasileira vive situação confortável, de baixo endividamento externo, inflação controlada e grandes reservas internacionais. Por que é necessário ter superávit primário e juros tão altos? Isso não tem lógica.

O único sentido é que visa imobilizar o governo e culpar uma suposta “gastança”, cuja origem está no preço pago pelas altas taxas de juros. Esse é o discurso conservador da Faria Lima reproduzido pela grande mídia. A defesa do arrocho fiscal, com cortes na educação e na saúde, desvinculação dos benefícios previdenciários do salário mínimo, como propõem os articulistas liberais conservadores, é a pregação rentista.

Porém, essa convenção macroeconômica neoliberal tem outras implicações políticas. Ela conseguiu juntar interesses distintos de parte do grande capital industrial com o capital financeiro. A taxa de juros é a cola desta reunião de interesses.

Se os juros estiverem baixos, a economia fica aquecida, aumenta o emprego. Nesta situação, o empresariado reclama de demanda aquecida e da pressão por aumento de salários, mesmo que a taxa de desemprego esteja em 7,5% ao ano e metade da população em condições de trabalhar esteja em condições de precarização no mercado de trabalho. Muito longe do pleno emprego, que poderia pressionar a demanda e gerar inflação.

Quando aumenta a taxa de juros, começa outra reclamação: a valorização cambial do Real, que causa a perda de competividade internacional dos produtos brasileiros, e logo surgem as pressões por subsídios e incentivos fiscais. O resultado é uma perda de arrecadação fiscal e déficit fiscal.

Ainda que em alguma conjuntura específica os blocos de rentistas e o de industriais possam ter divergências em relação à política monetária e fiscal, desde o Plano Real foi se consolidando uma união rentista/industrial. Os balanços das grandes empresas industriais mostram claramente a importância dos ganhos financeiros para a valorização do capital e como eles se transformaram na atividade fundamental nessas empresas.

Esse processo de financeirização brasileiro, com as aplicações em renda fixa rendendo 11 vezes mais do que a inflação e os juros reais de 6,5% ao ano (média anual dos últimos 30 anos pós Plano Real), o capital aplicado dobra em apenas dez anos. Nesse quadro, quem vai investir em produção e inovação? Como exemplo, nos países desenvolvidos com juros reais de 0,5% a 1% ao ano, são necessários mais de 150 anos para dobrar o capital.

Os juros estratosféricos cumprem a sua missão política. Ao invés de fomentar o investimento em aumento da capacidade produtiva, em inovação, em infraestrutura, em saúde e educação, o objetivo é o ajuste fiscal. O alto diferencial de juros em relação aos internacionais estimula o rentismo generalizado e as empresas industriais se transformam em operadoras de tesouraria. Sem demanda e perspectiva de rentabilidade para o investimento produtivo e inovador, o pacto do rentismo é vencedor.

Quaisquer que sejam as explicações para os juros astronômicos, o fato é que sob o falso pretexto de ajudar a controlar a inflação, eles deixam sequelas devastadoras para a sociedade: baixo crescimento, aumento da dívida pública e ampliação da desigualdade de renda e riqueza.

 

¨      A economia das privatizações e parcerias público-privadas. Por Pedro Forquesato

Está atualmente em andamento a privatização da Sabesp, que foi aprovada pela Assembleia Legislativa de São Paulo em dezembro do ano passado, e permite a venda do controle acionário da empresa de economia mista pelo governo estadual para a iniciativa privada. Essa privatização se soma à da Eletrobras, em 2022, em um movimento recente de remoção do Estado da gerência sobre a atividade econômica em setores estratégicos, e que reacende um debate antigo no Brasil sobre os limites e papéis do governo na economia.

Por que internacionalmente alguns setores têm relevante presença estatal enquanto outros não? Em geral, a viabilidade da concessão ao setor privado de atividades econômicas tem relação com as características do mercado específico em análise. Mercados em que o governo intervém de forma relevante são aqueles em que os custos fixos são significativos, limitando que apenas algumas empresas atuem neles e restringindo, assim, o poder da concorrência de controlar os preços cobrados pelas firmas privadas sem alguma regulação explícita do Estado.

Já se esta regulação é eficaz, ou se é mais eficiente a provisão pública direta, depende de uma série de fatores. Primeiro, depende de quão contratáveis são a qualidade da provisão do serviço e o valor dos ativos aplicados. Nesse sentido, mercados em que a qualidade do serviço é fácil de contratar, como rodovias, em que todos observamos se têm buracos, são muito mais propensos à provisão privada que serviços em que é difícil observar a qualidade, como a educação, ou que não conseguimos verificar a infraestrutura, como o setor de água e esgoto (por estar debaixo da terra).

Por outro lado, um dos principais argumentos para a provisão privada de serviços públicos é o potencial inovativo do setor privado, que juntamente com a concorrência de mercado pode melhorar a qualidade dos serviços e reduzir os seus preços. Aqui igualmente a aplicabilidade desses efeitos varia por setor. Na telefonia celular, por exemplo, tanto o potencial inovativo quanto a concorrência de mercado são elevados, fazendo com que em quase todo o mundo a provisão desses serviços seja privada. No setor de saneamento, entretanto, a capacidade de inovação é limitada (embora existente) e a concorrência de mercado é muito baixa, restringindo os ganhos potenciais da privatização nesse mercado.

Outro argumento frequentemente levantado em defesa da privatização e parcerias público-privadas (PPP) é de que estes mecanismos liberariam fundos para o governo, aliviando a sua restrição fiscal. Mas ao trocar um fluxo futuro de rendimentos (ou, o que é equivalente, taxas de uso sobre os consumidores) por um montante presente, a construção, por exemplo, de um aeroporto por PPP não altera a restrição orçamentária do governo frente à provisão pública, representando apenas uma troca intertemporal de comprometimentos, exatamente da mesma forma que um aumento na dívida pública para financiar a construção do aeroporto. Desconsiderando a divisão de riscos futuros, o mesmo argumento vale para privatizações como a da Sabesp, que ao alienar o capital do Estado tem exatamente o mesmo impacto na sua solvência fiscal que um aumento no passivo estatal.

A princípio, se poderia crer que países em desenvolvimento, por terem pior qualidade institucional, se beneficiariam mais de privatizações e PPP que países desenvolvidos. Essa relação, entretanto, não é clara na literatura. Se por um lado realmente a baixa qualidade institucional pode comprometer a provisão estatal direta de bens e serviços, a concessão e parcerias com o setor privado envolvem contratos extremamente complexos e de longo prazo, demandando igualmente um arcabouço institucional bem estabelecido para serem bem-sucedidas. Em relação à privatização, estas dependem de um arcabouço regulatório que funcione bem para garantir que os potenciais ganhos de produtividade das firmas privadas sejam de fato absorvidos pela população, e não apenas levem a aumentos dos lucros e remunerações dos executivos dessas firmas.

O mesmo argumento vale para a corrupção. É senso comum que países com maior incidência de corrupção, como o Brasil, se beneficiariam especialmente por este motivo da privatização de suas empresas e da provisão privada de bens públicos, limitando assim o escopo para a corrupção no governo. Esse argumento infelizmente esquece que, em setores regulados, a privatização das empresas públicas simplesmente transfere a vulnerabilidade à corrupção da gestão estatal direta para a relação entre a firma e a agência reguladora. Igualmente, em concessões se transfere tal suscetibilidade para o processo licitatório e o contrato de provisão entre o setor público e a concessionária privada.

Analisando o caso da Odebrecht, por exemplo, Nicolás Campos e coautores reportam que não foi encontrada incidência diferente de corrupção entre processos diretos de compras públicas e parcerias público-privadas. Em países mais corruptos, os contratos entre o governo e a iniciativa privada tendem a ser mais incompletos, abrindo espaço para o uso abusivo de renegociações posteriores de preços.

É importante também considerar o efeito das privatizações na desigualdade de renda e de riqueza, especialmente em um dos países mais desiguais do mundo como o Brasil. Mesmo que representem ganhos de eficiência, a redução de salários ou demissões que frequentemente são associadas às privatizações têm efeitos negativos sobre a parcela mais pobre da população, enquanto a eventual redução de tarifas ou aumento dos lucros favorece igualmente os mais ricos.

Estudos sobre o efeito das privatizações na América Latina acham efeitos negativos sobre os trabalhadores, o que pode aumentar a desigualdade de renda. Em outros continentes, as reduções significativas no capital estatal russo e chinês durante a década de 1990 são associadas a aumentos drásticos na proporção da riqueza nacional na mão dos 10% mais ricos, quase duplicando na China em vinte anos, ao mesmo passo em que a proporção da riqueza com os 40% mais pobres caiu significativamente nos dois países.

No Brasil, o debate sobre privatizações e PPP frequentemente se reduz a posições de que o setor privado seria sempre superior (ou inferior) ao setor público. Pensar de forma mais cuidadosa o tema é importante para entendermos melhor em que mercados e para quais objetivos cada modo de organização da atividade econômica é mais benéfico, além de desenhar políticas públicas que mitiguem os potenciais efeitos adversos do modo escolhido.

 

Fonte: Correio da Cidadania/Jornal da USP

 

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