Luiz Eutáquio Soares: ‘A cultura emergente
nacional-multipolar’
Para iniciar este
ensaio, cito os versos a seguir do poema “Cenário”, presente no
livro Romanceiro da Inconfidência (1953), da poeta carioca,
Cecília Meireles:
“vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.
Eloquência da simples despedida:
“Adeus! que trabalhar vou para todos!…”
(Esse adeus estremece
a minha vida.)” (MEIRELES, 1979, p. 15)
Comparativamente,
considerem o fragmento abaixo de Otelo, uma tragédia de
Shakespeare, 1º ato, Cena I, escrito trezentos e cinquenta anos antes de Romanceiro
da inconfidência:
“O céu é testemunha:
não me move o dever nem a amizade,
mas, sem o revelar, só o interesse
Se as mostras exteriores de meus atos
me traduzissem os motivos próprios
do coração em traços manifestos,
carregaria o coração na manga,
para atirá-lo às gralhas. Ficai certo:
não sou o que sou
(SHAKESPEARE, p. 19-20, s/d)).
Antes de analisar a
relação que farei entre os dois fragmentos citados, proponho uma interlocução
com dois teóricos, a saber: com Raymond Willians, de Tragédia Moderna (2002);
e com o intelectual palestino, Edward Said, de Cultura e
imperialismo (1993).
Do primeiro, tomo
emprestado o seu conceito de tragédia, assim concebido: a tragédia vem antes do
acontecimento trágico, o seu efeito, pois é imanente a arranjos institucionais,
com suas convenções e experiências, estruturados pelo signo da exclusão e da
violência. Por exemplo, o capitalismo é um modo de produção de arranjo
estrutural-institucional absolutamente trágico porque nele o capital acumula
poder e riqueza às custas do trabalho coletivo e individual, inclusive do
trabalho escravizado (não pago) da natureza.
A consequência dessa
arquitetura de dominação, para fazer uma referência a um trecho da letra da
Internacional Comunista, é a seguinte: o modo de produção capitalista é um
trágico “antro estreito”, para burgueses e para operários, com a diferença
substantiva relacionada ao fato de que, no âmbito das relações sociais de
produção, é sempre a classe trabalhadora que se apresenta como o objeto
convencional das experiências trágicas, por ser classe explorada, desumanizada.
Do segundo, com Said
de Cultura e imperialismo, a questão central a ser desenvolvida é
relativa à existência de uma cultura imperialista, da qual não escapou nem
mesmo autores como Shakespeare, por duas razões: (i) pelo fato puro e simples
de escrever em língua inglesa, tornou-se um representante do imperialismo
britânico em formação, mesmo que não soubesse ou quisesse; (ii) porque, não
obstante a qualidade estética de sua produção literária, plasmou em suas peças
a estrutura trágica dos impérios oligárquicas ocidentais, projetando-os a um
tempo como inconsciente estético e político para a constituição e formação do
imperialismo britânico.
No que diz respeito ao
ponto ii, exemplar é a peça Hamlet (1599), a mais conhecida e
de maior projeção do dramaturgo inglês. Seu enredo trágico gira em torno do
assassinato do pai de Hamlet realizado por seu tio, Claudio, a fim de lhe
usurpar o trono, em consórcio com ninguém menos que a própria rainha.
Assassinado, o pai se
torna o Fantasma, personagem que, no Ato I, Cena V, implora vingança ao filho
nos seguintes termos: “Não permitas que o leito real da Dinamarca fique como
catre de incesto e de luxúria” (SHAKESPERE, 1992, p. 61), ressaltando no final
da passagem esta cobrança afetiva: “Lembra-te de mim” (SHAKESPERE, 1992, p.6).
Se, em interlocução
com Sigmund Freud, há, no sonho, o conteúdo manifesto, aquilo que é sonhado; e
o conteúdo primário, aquilo que é recalcado e ocultado pelo primeiro, por meio
de processos de deslocamento e condensação, defendo a existência de uma arquitetura
trágica em Hamlet constituída por dois planos: (a) o edípico e
manifesto, marcado pelo apelo afetivo do pai ( lembra-te de mim) ; (b) o do
conteúdo primário relativo às guerras de conquista e expansão de reinos,
impérios, imperialismos, representado por Fortimbrás, o príncipe da Noruega e
os embaixadores da Inglaterra.
Ora, considerando que
primeiro plano se constitui como um “antro estreito’, suas convenções e
experiências trágicas são o campo fértil para ocorrências de tragédias baseadas
na culpa, no castigo, no ciúme, no engano e autoengano confessionais, limitados
pelo triângulo edípico pai, mãe, filho e suas redundâncias não menos edípicas
que rodopiam a partir da miragem de um sistema de filiação que replica o pai (
nos substitutos Cláudio, Hamlet, pai e potencial rei), a mãe ( a rainha infiel
e sua virtual substituta etária, Ofélia), no futuro de novos herdeiros,
considerando a perspectiva do casamento de Hamlet com Ofélia.
Em seus processos
intimistas e familistas de deslocamento e condensação, a trama edipianamente
vingativa da peça produz seus efeitos trágicos com assassinato involuntário de
Polônio, pai de Ofélia, realizado por Hamlet, com o suicídio de Ofélia, com a
fúria, em nome da honra, de Laertes, até alcançar o desfecho da trama, no Ato
V, com a cena de morticínio em que todos se vingam e se matam, evidenciando o
triunfo do segundo plano trágico com a seguinte ordem do quase morto Hamlet a
Horácio: “Morro, Horácio; o veneno me domina já quase todo o espírito; não
posso viver para saber o que nos chega da Inglaterra. Contudo, profetizo que há
de ser escolhido Fortimbras. Meu voto moribundo é também dele” (SHAKESPEARE,
1992, p.400).
O plano edípico da
peça, desse modo, funciona como o seu conteúdo manifesto trágico, de modo que o
primário não é outro senão este: o reino da Inglaterra expandida, que inclui
também Dinamarca e Noruega, será tanto mais vitorioso e imbatível quanto mais for
à guerra contra outros impérios e nações, não podendo perder tempo com intrigas
palacianas. Suas instituições e convenções estruturalmente trágicas devem estar
arregimentadas para ampliar territórios, colonizar, saquear, exterminar e
escravizar povos. Não há espaço para aporias metafísicas ao estilo do monólogo
Hamlet de “ser ou não, eis a questão”.
Com Raymond Williams,
com Said e com Freud, o arranjo trágico da cultura imperial ou imperialista é o
conteúdo primário da civilização ocidental, baseado na expansão e na guerra de
saqueio e colonização, esse (im)puro ato de violência, como argumentou Franz
Fanon em Os condenados da Terra (1961). É nesse sentido que é
possível afirmar que Shakespeare foi um dramaturgo do protoimperialismo inglês
e se tornou o autor irrepetível e extraordinário que é porque soube expressar
singularmente e de forma realista a dialética entre o conteúdo manifesto e o
conteúdo primário da tragédia moderna, convergindo, à flor do socius,
cultura e política imperialistas anglo-saxônicas em muitos atos e suas
múltiplas cenas a um tempo edípicas e bélicas, e sempre trágicas.
Apresentado o cenário
teórico de análise, chego ao objetivo deste ensaio: analisar três formas de
cultura, a imperialista, com foco no unipolar ultraimperialismo estadunidense;
a anti-imperialista, assentada na soberania nacional, necessariamente multipolar;
e finalmente a cultura edípica, resultado de manipulação oligárquica e herdeira
da formação do patriarcado ocidental, com seu axioma trágico vinculado à
criação da propriedade privada, do Estado das relações privadas de produção; e
da família monogâmica, efeito não menos neurótico-trágico da privatização
patrilinear da sexualidade e da procriação da prole, argumento elaborado em
diálogo com o livro As origens da família, da propriedade privada e do
Estado (1884), de Friedrich Engels.
·
Culturas e modos de
produção ocidentais
Não é, a cultura, um
segmento separado da economia e da política, porque, desse modo, em
convergência com Félix Guattari e Suely Rolnik de Micropolítica:
cartografia do desejo (1986, 15), será necessariamente uma cultura reacionária,
inclusive quando experienciada no interior de uma cultura erudita, popular ou
de massa, porque, uma vez separada da totalidade do ser social, torna-se,
necessariamente, impotente, facilmente manipulável pela cultura da classe que
detém o poder material e, assim, espiritual. Também não se confunde com a
sociedade civil, conceituada por Terry Eagleton de Ideia de cultura (2011)
como aquilo pelo qual se vive, porque, de igual modo, está também subsumida,
segmentada.
Há, sim, culturas
(populares, eruditas, de massa, identitarista, de resistência, alternativas,
emergentes) e todas elas estão em relação dialética com a cultura dominante de
uma época, que é a cultura imanente às formações socioeconômicas situadas no
espaço e no tempo; uma cultura da economia política e, assim, das tipologias
das relações sociais de produção concretas, reais. A civilização greco-romana
engendrou, em processo, uma cultura oligárquica que, com o passar do tempo,
tornou-se aristocrática, efeito que não deixa de ser trágico do ócio propiciado
pela expansão militarista e pela imposição de relações escravistas de produção.
A chamada cultura
erudita em linhas gerais se constituiu como um sistema de prosódia (fala
supostamente culta, entonação, ritmo) e gestos que amalgamaram, com o advento
da escrita alfabética, o modelo mistificado da cultura letrada.
A formação
socioeconômica do reino do capital é a base de um materialismo
histórico-cultural da universalização do fetichismo da mercadoria, assim como
da economia política da cultura das relações sociais de produção lastreadas nos
valores de troca, cuja palavra de ordem, pelo fato mesmo de existir,
hegemonicamente, é: ocultar, subsumir, inviabilizar a cultura dos valores de
uso da classe trabalhadora e da natureza, essa tragédia das tragédias da
civilização burguesa, afetando, com uma infinidade de ocorrências trágicas,
toda a humanidade e os ecossistemas do planeta, uma vez que é sempre o trabalho
alienado de sua produção social-econômica individual e coletiva que é
invisibilizado, incluindo o trabalho da natureza – e trabalho é cultura
natural-social.
Finalmente há a
cultura da fase imperialista do capital e sobretudo do colonialismo,
capitalismo e imperialismo anglo-saxões, dominantes há quatrocentos anos; o
inglês, num primeiro momento; e o norte-americano a partir do século XX,
principalmente após a 2GM. Essa cultura é inseparável da irracionalidade do
capital monopólico e da oligarquia/aristocracia financeira. Seu traço
distintivo, em termos de cultura imperialista, está relacionado com a subsunção
que realiza das culturas oligárquicas ocidentais precedentes, sendo ao mesmo
tempo metacapitalista, metacolonal e meta-greco-romana.
É, pois, uma cultura
plástico-mercantil, fundamentalmente revisionista e artificiosa, valendo-se,
para tal, tanto dos fluxos de dominação, como o racismo, o machismo, o nazismo,
o fascismo, quanto dos fluxos relativos às lutas pela emancipação dos povos,
dos fluxos antipatriarcais, antimachistas, da soberania corporal, da autonomia
de gênero, porque, com Octavio Ianni de Imperialismo y cultura de la
violencia en América Latina (1970), “o imperialismo se exerce por meio
das mais variadas técnicas de violência” (IANNI, 1974, p. 96), por ser um
“sistema que realiza os estágios mais avançados das estruturas de dominação e
apropriação do capitalismo” (IANNI,1974, p.96).
·
Cultura/cultus do
ultraimperialismo estadunidense
Segundo Alfredo Bosi
em Dialética da colonização (1992, p. 11), a palavra cultura
tem como origem etimológica o “verbo latino colo, cujo particípio passado
é cultus e o particípio futuro é culturus”. O
primeiro está relacionado ao passado e ao culto, também, dos mortos; o segundo,
por sua vez, ao processo real do desenvolvimento da cultura, implicando,
dialeticamente, passado, presente e futuro, sobretudo considerando cultura
como práxis, como dimensão constituída e constituinte, tendo em
vista aquilo pelo qual se luta, como assinalou Antonio Gramsci em Literatura
e vida nacional (1950), com a finalidade de afirmar que a literatura
nacional, se nova, em termos de culturus, necessita estar
relacionada com a luta por uma cultura nacional e popular, implicada com a
história do povo, seus desafios em termos de autossuficiência expressiva,
inseparável da dimensão econômica e política, cotidianamente.
Precisamente no
período de lutas pela independência dos países latino-americanos e se
aproveitando dessa efervescência emancipadora, nas primeiras décadas do século
XIX, como unidade da contradição, na América Latina há mais de duzentos anos
esses desafios têm relação com a seguinte sentença de morte imposta pela
Doutrina Monroe de 1823: “As Américas são dos norte-americanos!” Após a 2GM,
Harry Truman globalizou-a, numa Grécia arrasada pela guerra, ao declarar “O
mundo é dos EUA!” Esse é o cenário do complexo estratégico da dimensão cultural
do contemporâneo, razão de ser do valor simbólico dos versos de Romanceiro
da Inconfidência de Cecília Meireles “É a mão do Alferes, que de longe
acena. Eloquência da simples despedida: Adeus! que trabalhar vou par todos!”
O arranjo
institucional e convencional trágico inaugurado pela Doutrina Truman exige dos
povos e países foco anti-imperialista, a fim de, como o Alferes Tiradentes de
Cecília Meireles, posicionar-se na hora do dia, trabalhando para todos. A luta,
pois, pela cultura da soberania nacional há de ser necessariamente
anti-imperialista e especialmente antianque, até porque o capitalismo realmente
existente, neoliberal, tem a imagem e semelhança do ultraimperialismo
estadunidense.
Com isso gostaria de
dizer que não se pode falar de capitalismo de forma abstrata, nem de burgueses
e trabalhadores. Se o que define o capitalismo é a propriedade privada de meios
de produção, para a confecção de bens e serviços fetichizados, com seu primus
inter pares, o dinheiro, isso de forma alguma quer dizer que haja um
único capitalismo possível. Há, pelo contrário, n possibilidades
de culturas trágicas do capital, considerando os limites finitos da Terra no
metabolismo com a natureza e a tradição oligárquica ocidental, da qual derivou
o Monsieur capital.
O capitalismo que
realmente existe, editado a partir da 2GM, é o do fóssil capital-dólar-m-dólar`
(dólar, petróleo, dólar), com um pé na indústria cultural da mentira e da
intriga sem fim; e o outro no seu complexo industrial-militar, tendo em vista o
deslocamento da Revolução Técnico-Científica-Informacional (a Terceira), para a
Quarta, relativa aos avanços científicos em torno da nanotecnologia e da
engenharia genética, com a projeção compossível de constituição, de fato, do
pós-humano, chipado, com cada qual com seu próprio código de
barras.
Adjetivei “o
capitalismo que realmente existe”, o estadunidense, com particípio passado do
verbo editar, editado, no parágrafo precedente, porque queria que se tornasse o
gancho para a retomada do diálogo perspectivado com Otelo de
Shakespeare, principalmente considerando o alferes Iago, da peça, personagem em
tudo distinta do alferes Tiradentes, de Cecília Meireles. Se este é o que diz
“trabalhar vou para todos”, no poema heroico-épico da poeta carioca; aquele é o
que confessa “não me move nem o dever/nem a amizade”, alertando ao fidalgo
Rodrigo, seu interlocutor, “ficai certo:/ não sou o que sou”.
Herdeiro do
imperialismo inglês, o ultra (estadunidense) pode ser definido como o Iago ao
infinitésimo, completamente cínico, intrigueiro, artificioso, jamais sendo o
que diz ser ou faz, usando o dever e a amizade como pretextos editáveis ao
infinito porque efetivamente não cumpre acordos e tampouco tem amigos.
Puxando os fios da
forma como Raymond Williams define a plasticidade real, em processo, de uma
cultura efetivamente dominante, em diálogo com o seu ensaio “Base e
superestrutura na teoria da cultura marxista”, a estadunidense atua “no
processo social real do qual ela depende” (WILLIAMS, 2005, p. 53) e esse
processo incorpora sem cessar os significados, os valores e as experiências de
diferentes culturas, absorvendo-as, editando-as, reelaborando-as, como um filme
em tempo real, da própria vida confabulada, semelhantemente ao início do IV Ato
de Otelo, tendo em vista a passagem a seguir em que Iago incute ciúmes no
mouro, Otelo, instigando-o a acreditar que Cássio, seu tenente, seria amante de
Desdêmona, sua mulher: “Trabalha, meu veneno! Trabalha! Desse modo é que
pegamos os idiotas crédulos. E é assim, também, que muitas damas dignas e
castas, sem senão, ficam faladas” (SHAKESPEARE, s/d, p. 108-109).
A hegemonia
norte-americana é inseparável da apropriação privada do modo de produção
cultural da humanidade, via indústria cultural, articulando-a para que em seu
interior, vivendo-a como cultura própria, o trabalho que se realiza na própria
vida, porque cultura é a vida, é o trabalho de se envenenar, enredado em sua
trama edípica, que nada mais é que tragédia (auto)orquestrada. Foi analisando a
cultura como uma dimensão material da vida, a partir do materialismo histórico,
que Williams, destituindo a relação mecanicista entre “estrutura determinante e
superestrutura determinada”, definiu a cultura como a base porque, para o
crítico, “A base é a existência real do homem” (WILLIAMS, 2005, p.47); e o
homem é a sua cultura.
Reside nesse aspecto o
complexo estratégico do modo de produção cultural do ultraimperialismo
estadunidense, ávido e plástico, como Iago, para incorporar as mais diferentes
formas de cultura, transformando-as em matéria-prima das novas mercadorias e
artefatos culturais laboriosamente configurados, como Cavalos de Troia, para
instigar, pelo desejo, as pessoas, seus gêneros, suas etnias, suas religiões,
valores, perspectivas, classe, ancestralidades; os povos, a se trabalharem, na
dimensão concreta da existência, envenenados por suas intrigas e fake
news.
O autor de Tragédia
moderna conceituou e analisou dialeticamente, além dos aspectos
plásticos da cultura dominante, outras duas formas de cultura: a residual e a
emergente. Esta foi por ele descrita como marcada por novos significados,
valores, novas práticas; definindo aquela da seguinte maneira: “Por residual
quero dizer algumas experiências, significados e valores que não podem ser
expressos nos termos da cultura dominante, são, todavia, vividos e praticados
como resíduos – tanto culturais quanto sociais- de formações sociais
anteriores” (WILLIAMS, 2005, p. 56).
Argumento, a
propósito, que a chamada cultura de massa deva ser definida como um mosaico
nacional-global de culturas residuais e emergentes incorporadas pela indústria
cultural estadunidense, transformando-as em cultus de valores
de troca que (trabalha, meu veneno) simulam valores de uso ou comunitários,
como é o exemplo do neopentecostalismo na atualidade; e culturus,
considerando as segundas, as emergentes, igualmente capturadas pelas relações
fetichizadas (trabalha, aqui, também, meu veneno), de tudo que seja legítimo
desejo de autonomia corporal, emancipação, cuidado, como é o caso hoje da
cultura woke.
De qualquer forma, a
cultura dominante do ultraimperialismo ianque é de fato a cultura do conteúdo
primário que, como Iago, procura transformar as residuais e emergentes em
culturas edípicas ou do conteúdo manifesto (trabalha, meu veneno).
A cultura dominante de
EUA conseguiu o seu apogeu durante a Terceira Revolução Industrial, combatendo
lado a lado as culturas revolucionárias do eixo socialista, com a vanguarda da
URSS e de China. Uma cultura revolucionária é mais que uma cultura emergente,
sobretudo se marcada por êxitos históricos, como são o caso da Revolução de
Outubro de 1917 e a do Império Celeste de 1949.
Prova-se, por meio
dela, outra forma de veneno; o veneno da cultura do conteúdo primário como
aquilo pelo qual se luta a partir da racionalidade do trabalho coletivo, em
clave descolonizadora, vencendo o jugo dos opressores de seu presente histórico
e de todo o passado, embora a vida seja o agora, rumo ao depois; e o eterno
retorno da cultura edípica é a única coisa que se repete, com trejeitos
estilizados de antiguíssimas novidades.
Do período da Segunda
Revolução Industrial, de domínio britânico, para a emergência da Terceira, o
mundo se agitou com o surgimento da fase imperialista do capital, o advento da
1GM, como a um tempo conteúdo primário (no lado dos anglo-saxônicos) e dos soviéticos;
e conteúdo manifesto no lado dos impérios austro-húngaro, germânico e otomano.
O que se seguiu após
foi a intriga britânico-estadunidense (estilo Iago, trabalha, meu veneno) em
torno da cultura colonial dos perdedores, berço manipulado do fascismo, do
nazismo e do franquismo, levando à 2GM contra sobretudo a cultura
revolucionária de URSS que, tendo vencido não sem imensos custos humanos e
materiais, teve ato continuo que enfrentar a Primeira Guerra Fria
estadunidense, baseada totalmente na incorporada cultura emergente da juventude
rebelde, anarquista, supostamente emancipada do peso da tradição e do mundo
adulto.
Nesse contexto, os
soviéticos não suportaram a pressão. Foram finalmente derrotados pelo golpe de
Estado de 1991, com a traição de Gorbachev, motivada pela sedução
propagandística da cultura do american way of life. Por outro lado,
China também teve que ceder, afastando-se dos soviéticos e se aproximando de
EUA – período de hibernação do urso Panda– a partir da década de 70.
A história nem sempre
se repete, entretanto, como farsa da tragédia corriqueira, quando a revolução
emerge das crises ocasionadas com a emergência de novas forças produtivas.
China e Rússia (ex-URSS) recuperam o terreno perdido pela derrota no contexto da
Primeira Guerra Fria, disputando o alvorecer da Quarta Revolução Industrial,
com a vanguarda militar de Moscou e econômico-tecnológica de Pequim.
A cultura multipolar
se tornou emergente e disputa o porvir a partir da luta pela soberania nacional
plena, com base no processo de substituição de importações e no intercâmbio
entre países do Sul Global, com o destaque para o Brics +, para a Organização
de Cooperação de Shangai e para a União Econômica Euroasiática.
A cultura emergente da
Quarta Revolução Industrial está, obviamente, em disputa. O lado
ocidental-unipolar, liderado por EUA, está em desvantagem econômico-militar.
Entretanto, não se pode subestimar o Iago-ianque, que alcançou a hegemonia
global a partir da 2GM por meio do domínio do meio de produção cultural e,
assim, da captura das culturas residuais, emergentes e até revolucionárias dos
povos, reeditando-as de modo contrarrevolucionário e integralmente
revisionista.
Nesse contexto, ainda
detém duas vantagens acumuladas no interior do materialismo histórico da
Terceira Revolução Industrial, sobretudo considerando a sua especialidade, a
saber: editar e reeditar, ao sabor dos ventos da história, estilos de vida
dominantemente, hoje, reacionários, como aqueles que dizem respeito ao retorno
remasterizado do neofascismo e do neonazismo, no lado da cultura residual da
década de 30 do passado século; e do lado da incorporação da cultura emergente,
chamada de woke, reelaborando-as ( trabalha, meu veneno) e contraponteando-as
em tempo real, por meio do domínio de plataformas de fake news do
Vale do Silício, sobretudo considerando a GAFA, acrônimo de Google, Amazon,
Facebook, Appel, com a vanguarda da colonização do espaço protagonizada pela
SpaceX, de Musk, com seis mil satélites em órbita e outros seis mil a caminho,
seguido mais atrás pelo dono da Amazon, Jeff Bezos, conforme
analisou Silva Ribeiro no excelente artigo “Los terrícolas llegaron ya”.
A segunda vantagem
está diretamente relacionada com a primeira: a colonização material da cultura,
essa dimensão concreta da vida, seu desejo, no âmbito mesmo dos seres,
remanejando-os na interface entre o mundo físico, digital e biológico, sempre
confabulando contra os povos, contra a vida, no estilo guerra de espectro
completo, que inclui também o avanço sem precedentes da guerra biológica, como
tem evidenciado o Ministério de Defesa Russo a respeito das mais sinistras e
diversificadas experiências científicas no plano da bioguerra, eixo a partir do qual se pretende descartar a classe
trabalhadora mundial, substituindo-a pela robótica, a inteligência artificial e
pela conexão in/out dos humanos à Internet das coisas, para
não dizer internet planetária, uma espécie de geointernt da
virtualização e digitalização de espectro completo, online; em
nuvem atômica.
·
Cultura revolucionária
do Sul Global versus cultus à morte
O Sul Global
necessita, a propósito, ser mais efetivamente propositivo no âmbito da batalha
cultural no interior da IV Revolução industrial. O complexo estratégico da
dimensão cultural dos povos deve entrar em ação de modo não apenas defensivo,
como tem sido o caso da Rússia hoje, com a valorização de sua cultura residual
anterior ao período soviético, mas principalmente emergente e mesmo
revolucionária. É preciso sempre estar na hora do dia, como à sua época esteve
Mao Tsé-Tung liderando a ousada Revolução Cultural chinesa de 1966-1976, em
tudo incomparável com a virada cultural de Maio de 68 francês-europeu, que, na
verdade, não passou de uma revolução colorida contra França do general Charles
de Gaulle, que acumulava estoques de ouro com objetivo de abandonar a ditadura
do sistema dólar-ouro de Bretton Woods.
Uma revolução cultural
do Sul-Global é, assim, absolutamente necessária. Deve ter como objetivo a
descolonização do Ocidente, sobretudo do sistema edípico (trabalha, meu veneno)
da dominação cultural estadunidense, que produziu uma esquerda pequeno-burguesa,
de dedo em riste, antimarxista e pró-imperialista; uma cultura de massa
trágica, que banaliza e infantiliza os povos; um sistema de ensino sem chão
nacional, assim como uma estrutura universitária dependente e de costas para os
desafios inadiáveis de seus verdadeiros financiadores, os povos, replicando
teorias demagógicas e divisionistas; sem contar a disseminação de
fundamentalismos religiosos que têm intoxicado parte significativa da
humanidade, tornando-a adepta de obscurantismos pré-modernos, paradoxalmente
conectados à GAFA, disparando psicopatias bíblicas sionistas e retornos a
terras prometidas, fora da história e, desse modo, arcádicas e vulneráveis aos
caprichos do soberano da vez, como bem descreveu Cecília Meireles no poema
intitulado “Romance XX ou Do país da Arcádia: “O país da Arcádia/jaz dentro de
um leque:/existe ou se acaba/conforme o decrete/a Dona que o entreabra/ a Sorte
que o feche” (MEIRELES,1979,63).
É preciso, assim, para
uma efetiva luta por uma cultura revolucionária nacional-multipolar, abandonar
“o país da Arcádia”, que, em termos deste ensaio, é o país do conteúdo
manifesto elaborado pela cultura dominante do ultraimperialismo estadunidense,
dividindo-se, para melhor nos dividir, em cultura woke pseudoemergente
e cultura neofascista. Essas duas culturas são opostos que se atraem; um
arranjo de valores, instituições e significados absolutamente trágicos por dois
motivos inseparáveis: (i) são duas culturas (trabalha, meu veneno) edípicas que
se alimentam e retroalimentam fomentando o ódio entre seus tramados militantes;
(ii) servem, quanto mais se agitam e trabalham ( com o veneno do Iago ianque)
para combater, em tempo real, a luta por uma cultura popular
nacional-multipolar, sem a qual a imagem do leque dos versos citados de Romanceiro
da inconfidência, em que o “país da Arcádia” jaz, será o jazigo ou fossa
comum de uma cultura, a do ultraimperialismo, que não mais consegue ser
emergente, culturus, por ter se tornado cultus à
morte da humanidade.
E essa cultura
nacional-multipolar revolucionária, como cultura emergente, como culturus,
não pode abandonar o cultus à épica de um Cunhambebe, um Zumbi
dos Palmares, uma Dandara, um Chico-Rei, uma Chica da Silva, um Tiradentes, um
Francisco Julião, um Frei Tito, uma Bete Mendes, um Chico Mendes e tantas
outras e outros cujos adeuses devem estremecer os desafios da alma de nosso
presente nacional-multipolar, a caminho do socialismo dos povos.
Fonte: A Terra é
Redonda
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