Desinformação: A desconsolidação da
democracia
Há pelo menos uma
década, o mundo tem testemunhado uma série de eventos que apontam para uma nova
configuração política, seja tratada em âmbito local, nacional ou global. O
declínio da confiança nas instituições democráticas, a autocratização, o
populismo e o autoritarismo em ascensão, a ameaça à liberdade de determinados
grupos, o espalhamento de desinformação em massa, entre outros fatores, indica
que a democracia sofre um processo de desconsolidação. Esse espectro ronda
configurações políticas diversas: da Ásia aos Estados Unidos, de Leste a Oeste
da Europa, atingindo, ainda, a América Latina.
Nas últimas semanas o
tema esteve em alta em diferentes ocasiões: nas eleições presidenciais
norte-americanas, com um Donald Trump forte e ainda mais radical em
determinados pontos; na vitória de Reunião Nacional (RN), partido de
ultradireita, no 1º turno da eleição legislativa na França (até a data de
redação deste texto); na segunda condenação de Björn Höcke, líder do partido de
ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD), por utilizar slogan nazista em
evento; e na declaração de Javier Milei, afirmando ser ele quem “destrói o
Estado por dentro”, e que isso se aproxima do sentimento de estar “infiltrado
nas fileiras inimigas”.
Diferentes autores das
variadas áreas das Ciências Humanas vêm estudando o tema. Dentre múltiplos
fatores abordados, é possível delimitar quatro dimensões que potencializam a
atual desconsolidação da democracia enquanto regime político hegemônico. Há uma
econômica, a partir de desdobramentos do próprio capitalismo e dos mais
recentes efeitos do neoliberalismo, que desencadeiam altas de desemprego,
ampliação da desigualdade e maior concentração de renda, em que os mais ricos
se tornam cada vez mais ricos e os mais pobres cada vez mais pobres. Essas
questões tornam-se ainda mais alarmantes durante crises econômicas, sendo a de
2008 a mais recente e de maior magnitude.
Outra dimensão decorre
da globalização, em laços político-econômicos internacionais, seja por meio das
grandes corporações multinacionais ou acordos e políticas globais, que incidem
em múltiplas decisões, colocando, em certos cenários, a soberania em risco. De
maneira subsequente, há uma esfera sociocultural, em que, pela decorrente
abrangência da conectividade global e da emancipação de minorias e grupos
marginalizados por meio da conquista de direitos, eclodem conflitos que dizem
respeito à imigração e preservação de tradições nacionais, valores culturais e
religiosos.
Por fim, há a
tecnológica, que atua a partir do desenvolvimento das big techs como empresas
centrais do capitalismo do século XXI e da digitalização do acesso à
informações e veiculação de discursos, tendo como paradigmas o espalhamento de
peças desinformativas e do discurso de ódio em velocidade e abrangência nunca
antes vistas.
Quando a internet se
popularizou, aos poucos foi introduzida em diferentes atividades da vida
humana. A política não ficou de fora. Por um lado, o meio é apreendido como
novas arenas discursivas, um local capaz de unir contestação, debates e fóruns
argumentativos e de deliberação, conectar pessoas e ampliar o acesso à
informação — basta alguns cliques e podemos ter acesso a relatos e notícias do
mundo todo. Desse modo, movimentos sociais, grupos minoritários e sujeitos até
então com pouca inserção nos debates públicos poderiam utilizar esse meio com o
intuito de ordenar suas reivindicações, descontentamentos e demandas. Logo, um
canal para os “sem voz” obterem “voz”.
Nesse espaço, há uma
comunicação autônoma entre os usuários, os quais não dependem dos meios de
comunicação de massa, muitas vezes relacionados às elites econômicas ou
governos. Dessa forma, os próprios usuários são capazes de formar e expandir
laços sociais, assim como produzir e veicular conteúdos, e, consequentemente,
dialogar e compartilhar valores e perspectivas com uma audiência.
Esse caráter
disruptivo se estende, inclusive, para a atividade jornalística. Os portais
jornalísticos independentes, que reportam grupos e paradigmas da sociedade
através de uma perspectiva distinta da cobertura da “grande imprensa”, ganham
espaço, assim como novas técnicas de comunicação e reportagem, e outras formas
de gestão de produtos noticiosos digitais se estabelecem. Um bom exemplo disso
é a associação Gênero e Número, que realiza reportagens multimídia baseadas em
investigação por meio de dados a respeito de pautas que abrangem o tripé
gênero, raça e sexualidade, a fim de apoiar a luta pela garantia dos direitos
das mulheres, das populações negra, indígena e LGBTQIA+.
Por outro lado, essas
novas mídias provenientes da digitalização da informação podem ser terrenos
férteis para a disseminação de peças desinformativas e notícias fraudulentas.
Definidos como conteúdos propositalmente criados para enganar, estremecem o debate
público, minam a confiança e a credibilidade da imprensa tradicional e, mais do
que isso, fomentam uma forma paralela de se fazer política — sobretudo no
caráter simbólico da relação entre representantes e representados.
A maneira com que
Donald Trump se comporta durante sua campanha é um exemplo interessante disso
tudo. Nas três corridas que disputou até hoje aplica um modus operandi similar:
diz-se alvo da imprensa democrata (ligada ao partido) e das instituições políticas,
as quais, segundo ele, são corrompidas. Nesse sentido, uma narrativa de que as
mídias sociais são ferramentas em que ele consegue dialogar com seu eleitorado
e expor suas ideias sem as amarras perniciosas de um sistema que quer frear sua
campanha e de seus seguidores. Alimenta-se, então, a ideia de que a liberdade
de escolha dos eleitores está sendo ameaçada pois o candidato não possui
liberdade formal suficiente para se comunicar com eles. Ambos os valores —
liberdade de escolha e de expressão — são fundamentais para qualquer
democracia. Na norte-americana não é diferente.
Todavia, nessas
mídias, pela mesma natureza disruptiva que favorece a formação de uma arena
pública capaz de impulsionar abordagens emancipatórias e soluções democráticas
sobre determinados temas, Trump é capaz de dispor de uma ecologia midiática a
seu favor. Na ciberesfera, possui uma “imprensa” paralela capaz de distorcer
dados, criar teorias da conspiração e notícias fraudulentas; se aproxima de
seus seguidores/eleitores por meio de conteúdos que ele mesmo publica,
incluindo desinformações, memes (os mais recentes envolvem ironizar a saúde
física e mental de Joe Biden) e vídeos com trechos de seus discursos em
campanhas e debates. Chama a atenção que esses discursos tentam cada vez mais
unir diferentes pautas — economia, imigração, costumes, por exemplo — e ataques
a seu concorrente em curtos espaços de tempo. Em seguida, são fragmentados em
cortes e publicados via reels.
O exemplo de Trump é
um dentre vários que sinalizam como a pós-verdade atua em parceria com a
desinformação e juntas atribuem riscos categóricos ao exercício político,
sobretudo de uma saúde democrática. Segundo o dicionário Oxford, “pós-verdade”
indica “circunstâncias em que os indivíduos respondem mais aos sentimentos e
crenças pessoais do que aos fatos”. Portanto, o desejo e as emoções se
sobressaem em relação a abordagens críticas que podem ferir tais crenças e
preceitos.
Vale ressaltar que
mentiras e charlatões que se tornam populares a partir da manipulação de massas
e da opinião pública existem na política há muito tempo — antes da internet, da
televisão e do rádio, para se ter uma ideia. Diferentemente do que havia nos
outros meios de comunicação, nas mídias digitais, como citado anteriormente, a
audiência distribui o conteúdo e “gera engajamento”, sendo responsável por
colocar determinada figura ou discurso em evidência. Ora, partindo do ponto que
há uma conjuntura de vulnerabilidade econômica e desconfiança em relação às
instituições políticas e pessoas que deveriam representar o povo, Trump e
outros de sua estirpe, que dizem ter soluções simples e fáceis para os
problemas enfrentados e, junto a isso, trabalham a comunicação midiática a fim
de atuarem de acordo com a lógica e linguagem dos novos meios, tendem a ganhar
prospecção.
Junto a isso, não
podemos deixar de lado que o algoritmo se baseia no tipo de conteúdo que mais
lhe agrada — ou seja, aqueles que ele gasta mais tempo consumindo ou reage
(curte ou compartilha) — e em dados pessoais cedidos ao longo da navegação,
como estado civil, faixa etária, ocupação, gostos e classe social. Ou seja, o
caráter de romper barreiras e expandir o círculo de relacionamentos pode ser
visto como verdadeiro até certo ponto; por outro, apenas aglutina indivíduos de
valores e pensamentos comuns em torno de bolhas nas quais o “outro” não
penetra.
Por fim, vem a
questão: qual o lugar das desinformações e da pós-verdade no atual cenário de
desconsolidação da democracia?
Joseph Schumpeter,
importante teórico da democracia, entende este regime enquanto um arranjo que
coloca as pessoas no centro da escolha de quem irá representá-las. Para se
exercer tal centralidade de maneira efetiva, é necessário que informações
íntegras circulem na arena pública. Nesse sentido, Hannah Arendt entende que o
jornalismo possui um papel fundamental para que esse exercício seja realizado,
pois orienta-se pela verdade factual — ou seja, fatos objetivos e verificáveis
que ocorrem de maneira incontestável, atuando de maneira independente em
relação às opiniões. Arendt ainda argumenta que a política se apropria dos
fatos a partir de outros meios, elaborados em outros domínios, não sendo ela
capaz de difundir e apontar a verdade.
Na desconsolidação da
democracia, esse exercício de apropriação dos fatos não se dá na esfera do
jornalismo, mas dos veiculadores de desinformação — seja a “imprensa” paralela,
o próprio líder político, influenciadores ou mesmo usuários que compartilham
esse tipo de conteúdo. Os efeitos disso são variados: polarização política
radical, interesses específicos sendo veiculados como fatos, fomento a
narrativas baseadas em uma lógica “nós” contra “eles”, criação de crises e
estado de desordem social e fundamentação de argumentos e perspectivas tendo
como base mentiras.
Em suma, a banalização
dos conceitos de “verdade”, “informação” e “fato” se aproxima de uma visão
crítica acerca da inserção das redes sociais como esferas de mediação do
conflito social e político. Talvez seja um tanto petulante pensar que o
jornalismo é, por si só, o veículo da verdade — que é diferente da verdade
factual. Em essência, seu exercício se baseia em fomentar e construir uma
mediação crítica entre os indivíduos e a sociedade, baseando-se em um grau de
periodicidade. Em contrapartida, nas redes sociais a mediação perde relevância,
sobrepondo-se convicções subjetivas, crenças e valores, cada vez menos
proporcionando acesso à pluralidade de ideias, trazendo como consequências a
ojeriza ao “outro” e a dificuldade de se construir consensos, valor essencial
das democracias modernas.
• fábula dos 2000 mortos. Por Céli Pinto
Observando as
discussões sobre as grandes organizações que promovem fakenews, deepnews, fotos
e vídeos criados pela inteligência artificial, me preocupa um outro lado da
moeda e uma pergunta aparece como central: por que as pessoas em geral estão
tão predispostas a aceitar qualquer absurdo que as mídias sociais espalham?
Afinal, com todos os problemas que enfrentamos, nunca fomos tão formalmente
educados como somos hoje, nunca tivemos acesso a tantas informações de boa
qualidade como temos atualmente. A despeito
de tudo, por que estamos completamente disponíveis a aceitar qualquer
estultice?
Hoje tive uma
experiência que me fez pensar que talvez estejamos tratando este problema de
maneira equivocada. De forma alguma estou minimizando o complexo problema das
mídias em mãos de conglomerados de extrema-direita, do fanatismo religioso, do
fundamentalismo ideológico, mas quero trazer a questão para um nível bem mais
simples.
Volto à minha
experiência para seguir com meu argumento. Em uma viagem de Uber em Porto
Alegre, o motorista e eu começamos a falar do clima: está frio, está quente,
vai chover, não vai chover. Uma conversa típica nestes casos. Logo o motorista
passou a falar da enchente que assolou o estado em maio e contou: “Ontem, um
passageiro que foi voluntário na vizinha cidade de Canoas me disse que há mais
de 2000 mortos escondidos pelo governo, e que ele mesmo amarrou diversas
pessoas em postes para não desaparecerem. Falou ainda que o governo e a
imprensa escondem este fato e que o governo tem, por lei, dois anos para
identificar estas pessoas”.
Frente a tanto
desvario, retruquei: “o senhor sabe, eu não acredito nisto”. E o motorista
respondeu: “mas o meu passageiro viu!”. Então eu formulei algumas perguntas
para ele: “estas 2000 pessoas não teriam família, amigos, vizinhos que
sentissem falta deles?” E ele respondeu:
“mas a imprensa esconde!” Eu continuei: “será que alguém não teria denunciado
isso nas redes sociais? Afinal pouca gente no mundo não tem um pai, uma mãe, um
filho, uma irmã, um sobrinho, um colega de trabalho, um amigo…” Ele repetiu:
“mas governo escondeu”. Aí eu disse:
“veja bem, o governador do Estado, o Eduardo Leite, e o presidente da
República, Lula, são adversários políticos. Se o Leite tivesse escondido 2000
cadáveres, o governo Lula não denunciaria? E Se Lula tivesse escondido dois mil
cadáveres, o Leite não denunciaria?”
Então, pra minha
surpresa, o motorista falou: “sabe, a senhora tem toda razão! Que loucura, não
tem nem lugar para colocar tantos mortos! O governo precisaria alugar muitos
caminhões frigoríficos, e colocaria onde?
As pessoas dizem cada coisa e a gente acredita! Mas ele disse que viu…”
E respondi: “certamente seu passageiro ouviu falar”.
Eu já tinha ouvido
esta história, contada pelo funcionário de um estacionamento, só que, daquela
vez, um amigo dele tinha visto os cadáveres espalhados pelas ruas. Naquela
oportunidade, não tive tempo e/ou disponibilidade para desmanchar a história.
Mas hoje foi diferente, e não foi necessário fakenews, deepnews ou Elon Musk
para o motorista acreditar no absurdo, nem para eu convencê-lo de que aquilo
era um absurdo.
Este acontecimento
cotidiano e sem importância diz muita coisa do mundo em que estamos vivendo e
da fundamental e necessária reconstrução da esfera pública. As pessoas não
precisam de Elon Musk para acreditar em absurdos e nem é necessária uma tese acadêmica para retomarmos uma vida política que fale com as pessoas,
que escute, pergunte, dê possibilidade para elas pensarem.
A informação do
motorista do Uber foi construída por um discurso fundamentalista de
extrema-direita que joga contra os políticos e contra o sistema, que fala de
governo num sentido abstrato (que é sempre o governo federal), mas que toca em
coisas muito sensíveis a todos, como o abandono de pessoas mortas pelas ruas.
Urge que este discurso seja desconstruído, falando com as pessoas diretamente,
contrapondo argumentos, trazendo um mínimo de racionalidade para as suas vidas,
inundadas por imundícies, para ser leve.
Não é uma tarefa fácil
desconstruir discursos melodramáticos, assustadores, mas é preciso fazer isto,
temos de falar sobre o cotidiano das pessoas, interrogá-las. Não adianta ter
planos mirabolantes, não adianta prometer vida melhor, ninguém mais acredita
nisto. Precisamos reinventar a política. Nas eleições municipais, teremos
oportunidade de ser propositivos a partir da cotidianidade das pessoas.
Precisamos ser novos e novas. De nada adianta ficar falando no Instagram com
voz protocolar e olhar melodramático. Isto só colabora para que alguém acredite
em 2000 mortos flutuando pelas águas do Guaíba…
Fonte: Por Joao Pedro
Piza, no Observatório da Imprensa/Sul 21
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