segunda-feira, 8 de julho de 2024

Como é viver com doença que causa 'pior dor do mundo'

Aos 16 anos, a estudante de veterinária Carolina Arruda sentiu uma dor de cabeça intensa enquanto estava deitada no sofá da casa dos avós.

Como a adolescente havia se curado de um quadro de dengue havia poucas semanas, acreditou que o episódio era uma sequela da infecção.

Na época, ela estava grávida de quatro meses e nunca havia tido problemas de saúde graves. Como a dor passou em alguns segundos, ela não deu importância àquela situação.

"Foi uma dor como eu nunca havia sentido antes. Eu gritava e chorava de dor. Minha família não entendeu nada daquela situação, até porque ela passou bem rápido", lembra.

A dor, segundo a estudante, parecia choques elétricos intensos na face, passou a acontecer outras vezes de maneira espaçada. Alguns meses depois, virou frequente.

"Chegou uma fase em que toda semana eu precisava ir ao hospital por causa dessas dores. Comecei a ir em diversos especialistas na tentativa de um diagnóstico. Fui em 27 profissionais diferentes", acrescenta a estudante.

Após quatro anos, centenas de idas e vindas ao hospital e diversos exames, Caroline foi diagnosticada com neuralgia do trigêmeo, doença conhecida por ter "a pior dor do mundo".

A neuralgia do trigêmeo é uma doença em que há uma disfunção do nervo trigêmeo, responsável pela sensibilidade do rosto.

Essa disfunção pode ser ocasionada por uma má formação no nervo ou devido a

"O nervo trigêmeo possui três ramificações, e vão para a região dos olhos, nariz e mandíbula. Quando uma artéria encosta ou comprime ele devido a uma má-formação ou doença, ele é ativado, causando as crises agudas de dor. Após o episódio, a pessoa ainda pode ficar com o rosto dormente, com formigamento e olhos lacrimejando", explica Vinícius Boaratti Ciarlariello, neurologista do Departamento de Pacientes Graves do Hospital Israelita Albert Einstein.

A doença normalmente atinge um lado do rosto. Em casos mais raros, pode atingir os dois — como é o caso da estudante de veterinária.

As crises, apesar de durarem poucos segundos ou minutos, acontecem diversas vezes ao dia.

Ela é classificada como uma dor crônica por durar mais de três meses.

E, por gerar dores muito intensas no paciente, a doença costuma ser incapacitante — ou seja, pode fazer com que a pessoa precise deixar suas atividades profissionais e sociais, prejudicando a qualidade de vida.

Foi o que aconteceu com Carolina.

A estudante de veterinária conta que não consegue trabalhar e precisa passar a maior parte do dia deitada para evitar as crises de dor que, de tão intensas, causam vômitos e desmaios.

Ações cotidianas, como escovar os dentes, pentear o cabelo, mastigar ou até mesmo um vento gelado que bate no rosto, como o do ventilador ou ar-condicionado, são gatilhos para desencadear as dores.

"É uma dor tão forte que, por duas vezes durante as crises, tentei tirar a minha vida fazendo cortes no meu pescoço com bisturi para acabar com todo o meu sofrimento. Também já pensei em eutanásia, mas no Brasil não é autorizado e eu não tenho recursos para buscar esse procedimento em outro país. Já pensei muito se isso tudo é egoísmo da minha parte, já que tenho uma filha e uma família, mas eu não aguento mais sentir dores e viver dessa maneira."

Para amenizar as crises, Carolina já passou por três cirurgias para tentar corrigir a má formação do nervo trigêmeo e fazer com que veias e artérias não encostem mais nele.

A última, no final do ano passado, deixou o lado direito do rosto da estudante paralisado.

"Já são 11 anos convivendo com essa dor. Tomo morfina e outros medicamentos ainda mais fortes todos os dias. As pessoas muitas vezes acham que é drama e que a dor não é tão intensa assim, mas quem não sofre com essa doença nunca vai conseguir entendê-la", diz.

•        Doença é mais comum em idosos e mulheres

Segundo especialistas ouvidos pela reportagem da BBC News, a neuralgia do trigêmeo é mais comum em idosos devido ao processo degenerativo dos vasos sanguíneos causado pelo avanço da idade.

Em pessoas mais novas, geralmente, ela está associada a outros problemas de saúde, como tumores na base do crânio, compressão vascular ou doenças como a esclerose múltipla.

Porém, em situações raras, há a possibilidade de a doença surgir sem causa aparente.

"Estima-se que, no Brasil, há cinco casos da doença para cada 100 mil habitantes e ela acomete, principalmente, pessoas acima dos 50 ou 60 anos pela degeneração do vaso sanguíneo por causa da idade. A incidência também é maior em mulheres, mas ainda não há uma explicação científica do porquê disso", diz Felipe Barros, neurologista do Hospital Sírio-Libanês.

Os principais sintomas da neuralgia do trigêmeo são dores intensas na face, semelhantes a choques elétricos, formigamento no rosto e olho vermelho e lacrimejante.

O diagnóstico é feito por meio de uma análise clínica e exames de imagem, como tomografia.

"Por não se falar muito sobre essa doença, muita gente confunde os sintomas com sinusites ou doenças odontológicas. Por isso, é importante buscar um neurologista para afastar outras possibilidades e se chegar ao diagnóstico correto, fazendo com que o paciente não tenha a qualidade de vida prejudicada por muito tempo", acrescenta Ciarlariello.

Segundo os neurologistas, não se fala em cura para a doença, mas sim em controlar as crises de dor intensa causadas por ela.

O tratamento varia de acordo com a situação de cada paciente e, na maioria dos casos, são indicados medicamentos para controlar as crises, segundo os especialistas.

Há situações em que a cirurgia é indicada na tentativa de corrigir a má-formação do nervo trigêmeo e assim reduzir as crises, melhorando a qualidade de vida do paciente.

Já quando a doença está associada a outros problemas de saúde, o primeiro passo é tratar o que está causando-a.

•        'Na idade dela é extremante raro', diz médico que descobriu doença

O médico que diagnosticou há 7 anos que Carolina Arruda sofre da 'pior dor do mundo' foi o neurocirurgião Marcelo Senna, que tem mais de 30 anos de experiência com a neuralgia do trigêmeo. Anos antes, Senna já tinha dado o mesmo diagnóstico para o bisavô da jovem moradora de Bambuí (MG).

"As dores decorrem de uma artéria que acaba se deslocando e comprimindo o nervo do trigêmeo que, na face, é o mais calibroso. As causas do que provoca essa compressão são desconhecidas, então, não há como falar de hereditariedade", explicou o médico.

Senna foi procurado por Carolina, à época com 20 anos, quando ela já convivia com as dores há quatro anos e já tinha passado por vários médicos.

"A neuralgia do trigêmeo não aparece em um exame de imagem. Então, ouvir o histórico dela, as queixas e como os episódios de dor ocorriam foram fundamentais para fechar o diagnóstico, que na idade em que ela estava é extremante raro. A doença acomete principalmente adultos e idosos em uma faixa etária de 50 a 80 anos", disse.

Após o diagnóstico, Carolina Arruda realizou vários tratamentos com outros médicos e cirurgias, como descompressão microvascular, rizotomia por balão e duas neurólises por fenolização, mas sem alívio que trouxesse qualidade de vida para ela.

Mas, embora os tratamentos sugeridos por outros profissionais não tenham surtido efeitos positivos na jovem, o neurocirurgião ressaltou que a maioria dos pacientes responde bem ao acompanhamento medicamentoso.

"Muitos pacientes apresentam respostas positivas aos tratamentos, mas é claro que cada indivíduo responde de forma única ao que é submetido", enfatizou.

•        O relato de Carolina sobre a doença

Carolina Arruda mora em Bambuí, no Centro-Oeste de Minas Gerais, e é estudante de medicina veterinária. Casada há três anos e mãe de uma menina de 10, Carolina começou a sentir as dores aos 16 anos, quando estava grávida e se recuperava de dengue.

"A primeira dor veio quando estava sentada no sofá da casa da minha avó, tinha acabado de me recuperar de uma dengue. Era uma dor forte, fora do comum. Eu gritava e chorava. Tentei explicar o que era, mas não conseguia palavras porque nunca tinha sentido uma dor tão absurda. A princípio achei que seria uma dor de cabeça em decorrência da dengue”, relembrou.

Os episódios de dor se tornaram constantes, mas ficaram frequentes após o nascimento da filha. As dores contínuas atrapalhavam tanto a vida de Carolina que ela abriu mão da criação da bebê quando ela completou um ano. A menina, então, foi morar com os bisavós.

“Infelizmente eu não tinha a menor condição de cuidar da minha filha. Eram muitas crises, idas e vindas de hospitais, tratamentos, cirurgias”.

A dor e o desgaste de Carolina com a doença são tão intensos, que fizeram ela tomar a decisão para pôr fim ao sofrimento. Há poucos dias ela começou uma campanha na internet para conseguir recursos financeiros e ser submetida ao suicídio assistido na Suíça.

"Já pesquisei sobre tratamentos fora do país, mas são os mesmos que temos aqui. Não existe nada revolucionário fora do Brasil. A falta de conhecimento sobre a doença por parte dos médicos só piora a situação. Os especialistas e médicos de plantão muitas vezes não conhecem a doença e não sabem como tratar”.

A Suíça é um dos poucos no mundo onde a assistência médica para o suicídio é legal. Contudo, os pacientes precisam fornecer provas da condição médica, passar por avaliações psiquiátricas e demonstrar um desejo claro e consistente de pôr fim à vida.

As organizações que facilitam o suicídio assistido na Suíça oferecem apoio cuidadoso para garantir que a escolha do paciente seja respeitada, e que o processo seja conduzido com dignidade.

"Eu não aguento mais. A decisão de buscar a eutanásia foi tomada internamente há muito tempo. E, sim, eu penso em quem vai ficar, mas coloco na balança: as pessoas que me amam preferem lidar com meu sofrimento diário ou lidar com o sentimento da perda, sabendo que eu não estarei mais sofrendo? Não quero viver com dor o resto da vida".

"Queria que refletissem com mais empatia. Tomar essa decisão não foi fácil e ela foi baseada em muitos tratamentos e experiências negativas, ouvindo de médicos que não tinham o que fazer. Peço um pouco mais de compaixão", finalizou.

•        O que é a neuralgia do trigêmeo?

A neuralgia do trigêmeo, também conhecida como a "doença do suicídio", e comparada a choques elétricos e até a facadas. O trigêmeo é um dos maiores nervos do corpo humano. Ele leva esse nome porque se divide em três ramos:

1.       o ramo oftálmico;

2.       o ramo maxilar, que acompanha o maxilar superior;

3.       o ramo mandibular, que acompanha a mandíbula ou maxilar inferior.

Ele é um nervo sensitivo, ou seja, que controla as sensações que se espalham pelo rosto. Permite, por exemplo, que as pessoas sintam o toque, uma picada e a dor no rosto.

A doença normalmente atinge um lado do rosto. Em casos mais raros, pode atingir os dois — como é o caso da estudante de veterinária.

Segundo os especialistas, a dor causada pela doença é uma das piores do mundo. Ela não é constante fora das crises, mas é disparada por alguns gatilhos que, na verdade, fazem parte das vida cotidiana como falar, mastigar, o toque durante a escovação ou barbear e até com a brisa do vento sobre o rosto.

A dor é incapacitante. Ou seja, impede que a pessoa consiga fazer atividades simples do dia a dia.

 

Fonte: BBC News Brasil/g1

 

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