Luiz
Marques: Capitalismo canibal
"O
capitalismo financeirizado refaz a articulação entre economia e política. Os
bancos centrais e as instituições financeiras globais substituem os Estados
como árbitros na formulação das regras que regem o capital e o trabalho,
devedores e credores – sem o que o rentismo não se desenvolveria. Na via do
endividamento, o capital canibaliza o trabalho, disciplina o Estado e os
direitos de cidadania, transfere o valor da periferia ao centro de domínio,
suga a sociedade e o meio ambiente", escreve Luiz Marques, sobre o livro
recém-editado de Nancy Fraser, Capitalismo canibal: como nosso sistema está
devorando a nossa democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a
respeito disso, escreve Luiz Marques, professor de ciência política na UFRGS e
ex-secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.
Eis
o artigo.
O
“capitalismo” incita a precarização das formas de vida social, o esfacelamento
das infraestruturas, a erosão dos serviços, a violência racializada e os
eventos climáticos extremos. Nenhuma novidade. Nancy Fraser transcende. O
adjetivo “canibal” ressalta o ritual do humano que come carne de outro. “Isso
se assemelha à relação entre a economia capitalista e os espaços não
econômicos: famílias e comunidades, habitats e ecossistemas, capacidades
estatais e poderes públicos que têm a substância consumida para inflar o
próprio sistema. Trata-se de uma crise generalizada. Múltiplas calamidades
convergem, exacerbando-se entre si e ameaçando nos engolir por inteiro”. Somos
o prato principal.
A
referência envolve também a sociedade que autoriza a economia a se nutrir de
nossas habilidades criativas e da terra que nos sustenta, sem repor o que
consome. Contradições sistêmicas provocam não apenas crises econômicas, mas de
cuidado, ecologia e política. Todas afloradas por cortesia do período da
comilança batizada de neoliberalismo. Os ideais extra-econômicos possuem uma
gama de possibilidades crítico-políticas. Seria uma falha cognitiva monumental
subestimar sua atualidade.
Essas
“lutas de fronteira” incitam mobilizações que não se restringem às lutas de
classes vinculadas à produção. A variedade de temas e de sujeitos sinaliza o
potencial para a grande recusa. Em muitos momentos tendem a se rebelar contra
as praxes associadas à acumulação. A pesquisadora norte-americana feminista da
New School for Social Research, de Nova York, em Capitalismo canibal, com rigor
e empatia, apresenta uma teoria capaz de articular a dispersão de esforços e o
que fazer para obstaculizar a marcha do devoramento da democracia hoje.
Só
com pensamentos grandiosos, de atacado, teremos a chance de derrotar o ímpeto
voraz que o canibalismo do capital tem de nos devorar, por completo. Os eixos
de desigualdade, incluindo a nacionalidade, a etnia, a religião, a sexualidade
e a classe acendem o alerta. É impossível continuar repetindo os modelos que
persistem em uma priorização das lutas do trabalho no estágio produtivo.
Precisamos de análises sintonizadas com o nosso anseio – força para resilir e
mudar o status quo.
Existem
“terrenos ocultos” por desvendar: aqui, leia-se um pano de fundo de
não-mercadorias. A reflexão marxiana soma-se à necessidade de uma virada
epistêmica da produção para a reprodução social. A saber, o provimento com a
criação dos filhos e a educação das novas gerações no ciclo de laços afetivos
que acudem o trabalho assalariado, o mais-valor e o mecanismo – a marca de
gênero.
A
marca ambiental está na conversão da natureza em fonte de insumos e escoadouro.
A marca do Estado, na estruturação legal para viabilizar a expansão. A marca da
“acumulação primitiva” nos trabalhadores informais que vendem produtos
industrializados sem proteção trabalhista, mas auxílio assistencial. A
expropriação subjaz à exploração. “O capitalismo é a ordem social
institucionalizada, de imbricação estrutural na questão de gênero, na
degradação ecológica, na opressão racial-imperial e na dominação política –
tudo em conjunto em sua dinâmica estrutural e nada acidental”. Pudera.
Os
terrenos ocultos
Nancy
Fraser dedica um capítulo para cada desdobramento, além do percebido por Marx
nas frestas do valor de troca. Traz à tona o “marxismo negro”, que estuda
relações entre capitalismo e racismo desde o escravismo das plantations, entre
os séculos XVII e XIX, dissecando a expropriação para a acumulação por outros
meios. Se as finanças nublam a linha entre as duas “ex” (a exploração e a
expropriação) é para promover a síntese que reduz a ciranda econômica a uma
superexploração. A ideologia hegemônica separa a história e a política para
ocultar os liames orgânicos da escravidão com o capital, na suposição de que a
intersecção entre as galáxias foi uma insuspeita casualidade.
Já
a reprodução social tem uma centralidade para fazer a roda da subordinação
girar. Não pode ser abstraída do exame. Afetos da esfera reprodutiva são
desviados para finalidades externas, as quais sequestram o suporte de crianças
e adolescentes. Feito o Ouroboros, o capitalismo come a própria cauda. A
escolha não é entre proteção social derivada da dominação masculina ou
mercadorização, no lugar do cuidado. A opção correta é a emancipação que alia a
proteção social à divisão de tarefas domésticas, por parte dos pais. O
globalismo neoliberal incentiva o descaso estatal e corporativo com o
bem-estar; avalia a liberdade em termos mercadológicos para a embutir no jogo
do mercado.
As
premências ambientais originam as discussões sobre o decrescimento, a produção
e o consumo predatórios. Por seus territórios e contra o extrativismo,
comunidades indígenas ganham aliados. As feministas comparam a ginofobia (a
aversão às mulheres) ao desprezo capitalista pelo planeta. Os antirracistas
desejam acabar com o eugenismo étnico das prefeituras. A socialdemocracia
navega na onda, desmoralizada na guinada à droite. A transição para uma energia
renovável com os empregos sindicalizados e bem remunerados é atraente, em
função da promessa do movimento ambientalista.
A
ecopolítica é onipresente. Mas não supõe consenso na superação dos impasses.
Daí não se conclui que o aquecimento global se sobrepõe aos direitos
trabalhistas. A crise que agora abarca a ecologia, a economia, a sociedade e a
política – em metástase – abala a confiança na cosmovisão das classes
dominantes. Proteger o planeta exige a edificação de uma contra-hegemonia, que
demanda uma transformação estrutural profunda no relacionamento entre a
economia e seus “outros”. Sociedades capitalistas carregam uma contradição
ecológica no DNA – lucram com a poluição e vendem o céu.
A
matriz das deformações reside em uma teia. As variáveis não são independentes.
É preciso uma “dialética da totalidade concreta” para apreendê-las. “Na
pseudoconcreticidade, o fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se
esconde, é tido pela essência, e a diferença entre o fenômeno e a essência
desaparece”, nas palavras de Karel Kosik. O que distingue um fenômeno da
essência equivale à diferença entre o real e o irreal. A realidade é a unidade
do fenômeno e da essência, uma condensação de múltiplas determinações. A
semeadura de ilusões irriga tristes derrotas na história.
Compreende-se
que a democracia no capitalismo seja de fraca intensidade ou de pura
hipocrisia, e assim permanecerá enquanto o econômico for considerado não
político, e o político não econômico. O marco legal da iniciativa privada e da
trocação mercadista é operado na institucionalidade. São as engrenagens
legislativas e jurídicas dos Estados que estabelecem as arenas despolitizadas,
em que os atores sociais buscam seus interesses “econômicos”, libertos das
interferências “políticas”. Por igual, os Estados conferem direitos subjetivos
a uns privilegiados e não a outros subvalorizados.
• Construir a utopia
O
capitalismo financeirizado refaz a articulação entre economia e política. Os
bancos centrais e as instituições financeiras globais substituem os Estados
como árbitros na formulação das regras que regem o capital e o trabalho,
devedores e credores – sem o que o rentismo não se desenvolveria. Na via do
endividamento, o capital canibaliza o trabalho, disciplina o Estado e os
direitos de cidadania, transfere o valor da periferia ao centro de domínio,
suga a sociedade e o meio ambiente. O “déficit democrático” resulta da
descontrolada financeirização que despolitiza a atividade política e confisca
seu poder decisório sobre temas graúdos como o aquecimento da morada da
humanidade, Gaia.
Uma
curiosa governança sem governo é instalada pela União Europeia, a Organização
Mundial do Comércio, o Nafta e os Trips que enviam para as populações a benção
ou a maldição. A autoridade desloca-se do nível nacional para o transnacional.
O crescimento da extrema direita escancara um empenho desesperado em
salvaguardar toda meleca das finanças. Na contramão, os impulsos
pró-planejamento para uma sociedade inclusiva espalham-se pelos hemisférios
Norte e Sul. A ascensão da liderança exercida pelo presidente Lula em escala
global, com a proposta de taxação das grandes fortunas, encaminhada ao G-20 e
ao Papa Francisco, indica um confronto acirrado de perspectivas. O engajamento
do BRICS no projeto de um mundo multipolar cria alternativas inéditas aos
povos.
O
muro entre a economia e a política é derrubado dada uma resiliência para conter
as mudanças climáticas, as desigualdades de classe e as injustiças de gênero e
raça, combater a fome e a miséria, com o objetivo de reabilitar o poder
público. O fato de haver uma publicização das controvérsias prova que a lógica
neoliberal balança, e despenca aceleradamente. La pensée unique desmancha.
Nancy Fraser cita Gramsci ao pincelar o quadro, “o velho está morrendo e o novo
não pode nascer”.
A
separação da economia não só da natureza, mas do Estado, do cuidado e da
expropriação impinge à sociedade um emaranhamento de contradições em interação
contínua. Nosso desafio é investigar o conjunto, sob um único enquadramento. A
urgente reinvenção do Fórum Social Mundial (FSM), ora em uma Porto Alegre
alagada pelo negacionismo, ajudaria na metabolização de uma conjuntura tão
polarizada. O anticapitalismo fixa a linha inevitável para cada bloco
histórico, entre “nós” e “eles”.
O
conceito de socialismo foi preservado por partidos de esquerda que não se
deixaram engolir pelo Consenso de Washington. Desconstrói as três chagas do
capitalismo: a injustiça, a irracionalidade e a falta de liberdade. Aborta a
disjunção entre produção e reprodução, exploração e expropriação, sociedade
humana e natureza não humana, defendendo que necessidades básicas (moradia,
roupas, alimentação, saúde, educação, transporte, comunicação, energia, lazer,
água limpa e ar respirável) não são mercadorias. Nancy Fraser inscreve uma
instigante inflexão teórico-metodológica no corpo do materialismo histórico.
Abre portas sem dogmatismo e avança respostas, de suma relevância.
Há
obras intelectuais e/ou artísticas que causam a sensação de que nos tornamos
melhores e mais perspicazes após lê-las, vê-las, ouvi-las ou assisti-las.
Capitalismo canibal evoca esse sentimento na alma e a consciência do
contexto-pororoca, onde nos inserimos. Num país que caminhava hesitante desde o
impeachment da presidenta honesta, sem crime de responsabilidade, a tradução do
livro em português quase simultânea ao lançamento do original, em inglês, põe
em um mesmo compasso as ideias e lutas contra o Ouroboros. A autora agradece ao
que está por detrás da ação intelectual – os apoios institucionais, afetivos,
bibliográficos. Os leitores estamos bem servidos, para o novo tempo.
Fonte:
A Terra é Redonda
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