quinta-feira, 18 de julho de 2024

Lucas Paolillo: ‘O espetáculo em torno de Donald Trump’

Desde o dia treze de julho não se fala noutra coisa: nenhuma retina ficou impune às imagens do comício de Donald Trump na cidade de Butler na Pensilvânia. O acontecimento foi visto literalmente por todo o mundo: o estampido, a mão na orelha, o agachamento, o levantamento, o fluido vermelho e a pose triunfalista com os engravatados da segurança. Como pedagogia, uma verdadeira enxurrada fílmica.

Se não bastasse a exposição exaustiva das imagens, e esse é só o começo, o complexo midiático planetário pôs para jogo, como era de se imaginar, o comércio de opiniões e versões precipitadas. Com elas, de cima para baixo, o assunto ganhou a circulação de boca em boca. Nas grandes emissoras, vedetes opinativas do telejornalismo rezam a cantilena de acomodar posições oficiais. Nas redes, vídeos porcos reverberam mil e uma traquinagens monetizadas. E la nave va.

Para nós, meros mortais perdidos nos labirintos de imagem e opinião da sociedade excitada, o panorama político do mundo mudou de um dia para o outro. Impôs-se um assunto incontornável e, com ele, um plebiscito ruidoso e convicto de opiniões aceleradas. Ao final das contas, esta peça própria à forma integrada do espetáculo, como diria Guy Debord, rendeu alguns dos seus dividendos.

Noutra era geológica, Mário de Andrade chegou a falar, em carta a Alceu de Amoroso Lima, na impossibilidade um pouco quixotesca de se desejar conter uma enchente com as mãos. Já Adalgisa Nery, em coluna para o jornal Última hora, se reportou a uma “incontinência americana de julgar sem ponderar”. O eco involuntário de ambas as frases salta à escrita como muleta ilustrativa: indícios de uma combinação explosiva.

Deste modo, tudo se passa como se estivéssemos, junto à hegemonia já cinquentona do lastro dólar, sob a fatalidade de uma enchente de incontinência.

Cientes do risco de comporem a amplificação desse coro, as notas que se seguem não se pretendem mais do que, nalguma medida, profiláticas.

Em nível de sugestão, não é demais lembrar que a análise dos acontecimentos políticos é menos frutífera quando projetar respostas do que quando analisa efeitos e resultados. Optar por manter isso à vista em casos como este pode colaborar para tirar de cena polêmicas vãs e propõe inclinações na direção de tentativas de identificação mais lastreáveis. Ainda que especulações bem calibradas não caiam mal.

Conforme sugere Betinho nos seus esquemas abecedados sobre análise de conjuntura, atinar com os acontecimentos demanda primeiramente um esboço da fisionomia dos elementos em cena. Apenas depois é que a representação das conjecturas se dá com maior clareza. No pequeno volume, o método se inicia com o levantamento, segue com as identificações e só depois culmina no exercício da representação. Daí os resultados: “A representação é reveladora também das atitudes básicas que temos sobre as diferentes forças sociais que atuam na luta política e o quanto estamos ou somos influenciados pela informação e ideologia dominantes”.

Como o acontecimento em torno de Donald Trump é recente, e os recursos dispostos para compreendê-lo são bastante limitados, assumirmos, por enquanto, que há pouco a ser dito pode ser um bom começo.

Mais do que, digamos, especularmos se Capitu traiu Bentinho ou não, isto é, se o atentado foi ou não real, fixemos, no lugar disso, as evidências da partida: a dramatização midiatizada da possibilidade de extermínio de líderes políticos cria efeitos de repercussão fortes. Arbitrária ou acidentalmente, como não foi morto, essa bola caiu no colo de Donald Trump. Tendo em vista a volubilidade da extrema direita em face a tais conjunções, há elementos relevantes para se observar e refletir.

Por ora, vamos a algumas pontuações sobre o acontecimento em Butler.

  • Mudança no padrão de exposição e engajamento

Conforme buscamos situar, o atentado gerou um efeito midiático. Dada a natureza da cena, trata-se antes do mais de um efeito de amplo alcance e interesse. Em perspectiva geral, não é a primeira vez que temos um atentado contra um candidato à presidência da República no núcleo orgânico do sistema. O mesmo pode ser dito quanto ao impacto da repercussão na opinião pública. Há quem atribua a vitória forte de Ronald Reagan em 1984 ao atentado sofrido por ele em 1981.

Contudo, há algo de muito próprio ao nosso tempo que permite nos colocar eventos assim sob suspeita, como se fossem cenas montadas por encomenda. Pode ser que seja. Pode ser que não. No Brasil, depois do episódio da facada em 2018, Jair Bolsonaro mudou o patamar da relação da sua candidatura com a publicidade: o atentado lhe rendeu horas nada desprezíveis de exposição nos principais telejornais. Não como alguém que, digamos, inaugura uma ponte sob bocejos em um dia cinzento, mas que é apresentado como um polêmico portador de esperanças injustamente ferido.

Nas redes, o burburinho fez do caso uma trend (tendência). Situações assim mudam o desenho de processos eleitorais. Pensando ainda no caso brasileiro de 2018, enquanto candidatos como Geraldo Alckmin investiram todo o seu cacife no desmoralizado horário eleitoral, Jair Bolsonaro lucrou horas e horas de engajamento a flor da pele mediante ao espanto proveniente da ocorrência.

Donald Trump, por outro lado, não é um iniciante, mas um ex-presidente: é conhecido e o tempo dará a régua e o compasso sobre o modo como isso interferiu na maneira de angariar ou retirar do sofá seus simpatizantes. A nova situação pode impactar favoravelmente, por exemplo na mobilização pelos votos populares (que, vale lembrar, não são obrigatórios nos EUA). Passado o dia treze, Donald Trump será mais falado – e a partir de uma posição nova.

  • Criação de trauma histórico em um swing state

Há estados nos Estados Unidos que historicamente tendem a oferecer maiorias previsíveis, coisa que a seu modo o Brasil também faz. Há estados mais republicanos, como Texas. Há estados mais democratas, como Califórnia. Outros, ainda, como Pensilvânia, local em que se deu o atentado em questão, são conhecidos como swing states ou purple states, isto é, são localidades nas quais se espera uma disputa real de votos a cada eleição presidencial.

Na eleição de 2016, por exemplo, o estado votou majoritariamente em Donald Trump. Em 2020, por outro lado, deu maioria a Joe Biden. A criação de um trauma histórico como o ocorrido recentemente na Pensilvânia abriu portas gerar, no estado, efeitos de curta, média e longa durações. Há, com isso, digamos, uma tendência a oscilação de grupos focais. Efeitos de público-alvo. De modo que paira hoje uma incógnita no perfil aberto do estado em disputa.

Assim sendo, podemos assumir de partida que, embora não tenhamos definidos os seus efeitos práticos nesse sentido, o acontecimento do último dia 13 marcou de maneira indelével a identidade política do estado. Daqui a cinquenta anos, caso ainda reste mundo ou eleições estadunidenses, alguém poderá reivindicar ou detratar posições trumpistas com remissões ao ocorrido ali. Até segunda ordem, Pensilvânia ficará marcado como um estado no qual Trump sofreu um atentado.

  • Movimento do ilegítimo ao legítimo

As pautas em torno da política oficial têm transbordado ao acompanhamento. Aceleradamente, num dia a atenção está numa coisa, noutro dia, noutra. Assim, fica difícil situar os acontecimentos. O que explica a memória curta em torno dos desmandos de Jair Bolsonaro ao longo dos seus quatro anos de mandato, somados ao oito de janeiro.

Da filial para a matriz, com Donald Trump não é diferente: a troca de atenção depois do atentado interfere também na maneira como as ações dele são lembradas ou avaliadas. De alguns anos para cá, ao mesmo tempo em que ele se normalizou no campo republicano, Donald Trump tem sido alvo de acusações, digamos, deslegitimadoras.

É o caso da condenação pelo aprontado com a atriz Stormy Daniels, da reprovação pela postura de negar as urnas eletrônicas, ou então pelas relações que manteve com os apoiadores que entraram no Capitólio. Tanto de um modo como de outro, parte da opinião pública e das instituições investiram (ainda que pouco) na sua pessoa doses de descrédito. Depois do atentado, no entanto, deu-se o exato oposto: nalguma medida, as instituições se sentiram obrigadas em brindá-lo com notas de apoio e a opinião pública de oposição o alçou a uma posição tolerável.

Na dinâmica incessante de produção de fatos públicos, o atentado conferiu a ele, portanto, legitimidade. No que essa oscilação de legitimidade acarretará, na medida em que ele decidir trocar de posição novamente e se encaminhar para o polo oposto? Mais uma vez é Donald Trump quem dá as cartas.

Por exemplo, o candidato à vice-presidência na chapa de Donald Trump, J. D. Vance, não tardou em colocar na conta do governo de Joe Biden a falha no sistema de segurança que permitiu ao atirador agir.

Com o atentado, Donald Trump, de cara, mais forte: midiaticamente mais presente, vinculado para sempre à história de um estado e mais seguro para efetuar trocas de pele camaleônicas entre o legítimo e o ilegítimo. Mas no que isso vai dar, ainda estão rolando os dados.

 

¨      Falas de Trump mostram que incerteza pode voltar à diplomacia dos EUA

Donald Trump ainda está a seis meses de distância do Salão Oval – se algum dia voltar lá.

Mas o candidato republicano voltou a causar terramotos geopolíticos. As preocupações dizem respeito a Taiwan e ao seu comentário numa nova entrevista à Bloomberg Businessweek de que a ilha democrática deveria pagar aos EUA por a defenderem da China.

“Não somos diferentes de uma seguradora. Taiwan não nos dá nada. Taiwan fica a 15.000 quilômetros de distância. Fica a 68 milhas da China. Uma pequena vantagem, e a China é um enorme pedaço de terra, eles poderiam simplesmente bombardeá-la”, disse Trump.

Os seus comentários, publicados durante a Convenção Nacional Republicana, imediatamente soaram alarmes sobre se ele abandonaria a política de ambiguidade estratégica que rege a forma como os EUA responderiam a uma invasão chinesa de Taiwan – que se destina a evitar tal ataque, mantendo Pequim na dúvida.

Mas isto também parece ser uma estratégia familiar de Trump – que ele usou no seu mandato presidencial para aumentar os gastos dos aliados dos EUA na Europa e na Ásia em defesa. Também sublinha a visão transacional que ele tem até dos pilares mais críticos da política externa americana.

Num artigo recente na revista Foreign Affairs, Robert O’Brien, antigo conselheiro de segurança nacional de Trump, que é cotado para um cargo importante num segundo mandato, condenou a pressão da China sobre Taiwan, mas apelou a Taipé para aumentar os gastos militares – muitos dos quais já vão para os fabricantes de armas dos EUA – e para expandir o recrutamento militar.

Trump está mostrando uma plataforma de evitar guerras estrangeiras, por isso não é surpreendente que haja dúvidas reais sobre se ele gastaria sangue e dinheiro dos EUA para defender Taiwan. Os seus comentários mostram que, se vencer em novembro, a política externa de Washington será mais uma vez ditada pelo que um presidente imprevisível pensa num determinado momento e a América voltará a ser uma força volátil no mundo.

 

¨      Persona populista de JD Vance deixa grupos trabalhistas dos EUA céticos

Há uma ideia popular no discurso político conhecida como a teoria da ferradura. A ideia é que se você mapear ideologias em um espectro em forma de ferradura, a extrema direita e a extrema esquerda estão, na verdade, mais alinhadas do que os centristas de ambos os lados.

Não é exatamente uma teoria acadêmica séria, mas pode ser uma imagem útil quando as ortodoxias partidárias estão passando pelo tipo de convulsão que vimos, particularmente na direita americana, na última década.

E em nenhum lugar essa agitação é mais aparente do que na ascensão do senador republicano de Ohio, JD Vance, o autointitulado “populista dos Apalaches” — com um diploma em direito em Yale e uma extensa lista de apoiadores bilionários do Vale do Silício — que agora está concorrendo para ser vice-presidente.

Vance, que tem 39 anos, é amplamente visto como a vanguarda de uma extrema direita da geração Y que ostensivamente defende trabalhadores braçais e repreende executivos gananciosos (uma visão que democratas e defensores trabalhistas contestam, mas falaremos mais sobre isso em um momento).

E ele tem repetidamente entrado em conflito com o dogma republicano da era Reagan que há muito tempo tornou o partido popular entre líderes empresariais endinheirados.

Vance recebeu críticas dos republicanos no início deste ano por elogiar a principal defensora antitruste de Biden, a presidente da Comissão Federal de Comércio (FTC, na sigla em inglês), Lina Khan. (Ela é “uma das poucas pessoas no governo Biden que eu acho que está fazendo um bom trabalho”, disse Vance em uma conferência em fevereiro.)

Vance até se uniu à inimiga número 1 de Wall Street, a senadora democrata de Massachusetts Elizabeth Warren, para criar uma legislação que reprimiria os grandes bancos.

No mês passado, o próprio Vance fez alusão à evolução em forma de ferradura de suas opiniões, dizendo para Ross Douthat, do New York Times: “As pessoas de esquerda, eu diria, cujas políticas eu estou aberto — são os Bernie Bros.”

“Muitas das posições de política econômica de Vance equivalem ao pior pesadelo de um CEO americano; uma miscelânea de promessas populistas que expandirão o alcance do governo na economia, minar a confiança global e subverter os mercados livres.”

O magnata da mídia Rupert Murdoch e o pioneiro dos fundos de hedge Ken Griffin teriam feito parte desse coro anti-Vance, de acordo com o Washington Post.

CEOs ansiosos podem se confortar com algumas teorias da esquerda, onde defensores de longa data dos trabalhadores dizem que o populismo milenar de Vance-Hawley é pouco mais do que encenação.

“Uma Casa Branca Trump–Vance é o sonho de um CEO corporativo e o pesadelo de um trabalhador”, disse a presidente da AFL-CIO, Liz Shuler, em uma declaração na segunda-feira. “O senador JD Vance gosta de bancar o apoiador do sindicato na linha de piquete, mas seu histórico prova que isso é uma farsa.”

O curto histórico de votação de Vance — ele está no Senado há pouco menos de dois anos — não inspira muita confiança entre os defensores trabalhistas.

Ele votou contra o Ato de Redução da Inflação de Biden, que direcionou centenas de bilhões de dólares em subsídios para fabricantes americanos.

De acordo com a AFL-CIO, a maior federação sindical do país que representa cerca de 12,5 milhões de trabalhadores, Vance apresentou uma legislação que permitiria aos chefes ignorar os sindicatos de seus trabalhadores e se opôs à legislação que tornaria mais fácil para os trabalhadores formarem sindicatos.

“Alguém trabalhista estaria aumentando o salário mínimo, garantindo que as pessoas façam horas extras, apoiando licença médica e familiar remunerada”, disse Terri Gerstein, diretora da NYU Wagner Labor Initiative, à CNN.

“Fingir ser da classe trabalhadora vestindo jeans e agindo como se estivesse ofendido não faz nada pelas pessoas trabalhadoras de verdade que estão lutando.”

 

Fonte: A Terra é Redonda/CNN Brasil

 

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