Lei do
Marco Temporal de demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas
Em
20 de outubro de 2023, foi sancionada e colocada imediatamente em vigência a
Lei Federal nº 14.701 que trata do famoso marco temporal de demarcação de
terras indígenas, servindo como regulamentação do artigo 231 da Constituição.
Segundo
a técnica jurídica, a constituinte é regulamentada por leis, geralmente na
sequência por decretos e assim sucessivamente.
Para
maiores esclarecimentos, a nova lei do marco temporal regulamentou o artigo 231
da Constituição, enquanto o Decreto Federal nº 1.775/1996, responsável pelo
processo administrativo de demarcação de terras indígenas, também regulamentou
uma lei federal, no caso, o Estatuto do Índio (Lei Federal nº 6.001/1973),
especificamente pelo artigo 19.
Art.
19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de
assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o
processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.
A
nova legislação, ao mesmo tempo em que solucionou uma grande quantidade de
impasses e situações controvertidas da antiga legislação que vem sendo
interpretada pelos tribunais, também omitiu e confrontou situações com o ainda
vigente Decreto Federal nº 1.775/1996.
A
provocação da nova legislação surgiu com a insegurança jurídica efetivamente
causada pelo Supremo Tribunal Federal, ao modificar o seu próprio entendimento
sobre o assunto, que já estava consolidado pelo caso Raposo Serra do Sol, onde
partia da premissa do fato indígena ou do “esbulho renitente”, em outras
palavras, o efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até
o marco demarcatório temporal de 05/10/1988, data considerada para fins de
demarcações de terras indígenas.
O
novo entendimento da Suprema Corte, em composição diferente do caso anterior
(Raposo Serra do Sol, PET 3.888), por sua vez, sem um respaldo jurídico sólido,
entendeu pela inconstitucionalidade do marco temporal, abrindo margem para uma
incalculável quantidade de possibilidades de demarcações de terras indígenas no
País.
Tal
situação ocorreria mesmo em áreas que não se tornarão mais terras indígenas, em
razão do uso e ocupação do solo já estabelecidos como áreas urbanas ou
agropecuárias, na contramão das terras que os indígenas juridicamente precisam
para manutenção dos “usos e costumes” de suas respectivas etnias, como
determina a própria Constituição.
Spacca
Foi
criada uma insegurança jurídica sem precedentes, tanto em desfavor de
proprietários de imóveis rurais centenários, como também em desfavor do
planejamento territorial de todo o País, que necessita ser visto com eficiência
em benefício de todos os brasileiros, índios ou não.
• Nova definição de terras indígenas
Segundo
a nova “lei do marco temporal”, foi reforçado o entendimento de que existe mais
de um tipo de terras indígenas, ou seja, aquelas que tradicionalmente ocupam,
demarcadas pela própria definição de tradicionalidade e ocupação; as reservas
indígenas, criadas por iniciativa do poder público; e as terras indígenas
adquiridas pelos próprios nas formas de aquisição previstas em lei.
Estas
definições não são inovadoras, pois já eram previstas pelo artigo 17 do
Estatuto do Índio, contudo, fazem uma necessária atualização ao texto daquela
antiga lei ao fazer menção à Constituição de 1988, visto que o Estatuto do
Índio faz referência à Constituição de 1934.
Vale
lembrar que na definição de terras indígenas tradicionalmente ocupadas, de
acordo com o artigo 231, §1º da Constituição, devem ser utilizadas para
“reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”, o que
reforça a argumentação de que terras indígenas demarcadas em áreas urbanas ou
agropecuárias, tecnicamente não são e nem serão mais terras indígenas.
Para
não deixar mais dúvidas, a mesma ideia foi reforçada pelo artigo 4º da nova lei
do marco temporal que em seus incisos descreve como sendo terras
tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas que simultaneamente sejam:
“habitadas por eles em caráter permanente; utilizadas para suas atividades
produtivas; imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a
seu bem-estar; necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições”.
Isto
coloca um ponto final à desenfreada demarcação em áreas de uso consolidado
diverso das tradições indígenas, realçando também que a ausência da comunidade
indígena em 5 de outubro de 1988 na área pretendida descaracteriza o seu
enquadramento como tradicionalmente ocupada, salvo o caso de renitente esbulho
devidamente comprovado, que é exatamente o entendimento que havia sido
discutido de maneira ampla e fundamentada no caso Raposo Serra do Sol.
E
seguindo a mesma linha de raciocínio jurídico já consolidado, também foi
definido o renitente esbulho, como sendo o “efetivo conflito possessório,
iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data de
promulgação da Constituição Federal”, impedindo que sejam reconhecidas como
terras indígenas aquelas em que não foi dada continuidade à posse desde então.
Outro
aspecto importantíssimo e muito bem-vindo da nova legislação, é a
obrigatoriedade de dar publicidade ao processo de demarcação de terras
indígenas por meio eletrônico, finalmente encerrando uma árdua e tortuosa
temporada de trabalho jurídico diligenciando em busca de cópias, litigando por
acesso a processos e cópias fornecidos com muita dificuldade por sucursais da
Funai em todo o Brasil.
Comemora-se
a determinação de obrigatoriedade da participação dos estados e municípios em
que se localiza a área discutida nos processos de demarcação, o que até então
era de caráter facultativo.
Esta
“opção” dos estados e municípios, por desatenção da nova lei, ainda é mantida
pelo texto do artigo 2º, §7º do Decreto Federal nº 1.775/1996 ao registrar que
“poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e
demais interessados manifestar-se apresentando ao órgão federal de assistência
ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes”.
• Participação dos estados
A
importância desta novidade é o fato de pôr fim à omissão da maioria dos estados
em sua atuação nos processos de demarcação, cuja contribuição é essencial
fornecendo documentos históricos e de ocupação fundiária.
A
omissão é passível de indenização pelos danos causados, devido ao descuido no
cumprimento de um dever legal, o de não se omitir, que agora passa a dar maior
equilíbrio nesta relação processual onde atualmente existe apenas os
proprietários de imóveis rurais contra a entidade de proteção aos indígenas
(Funai), a mesma que os representa e conduz os processos.
Faltou
à nova lei, incorporar o texto do artigo 2º, §7º do Decreto Federal nº
1.775/1996, para determinar expressamente a forma com a qual deveriam estes
entes públicos participarem dos processos, o que ainda poderá gerar
controvérsias e desnecessários embates jurídicos, entre as duas normas, uma que
diz “poderá” e outra que diz “deverá” participar.
A
lei do marco temporal inovou ao regulamentar também o artigo 231, §6º da
Constituição com relação ao direito de indenização pelas benfeitorias de boa-fé
realizadas nos imóveis demarcados, ajudando a resolver controvérsias que já
existem em casos analisados por tribunais neste sentido, simplificando o que
antes era determinado que fosse solicitado em outro processo (Mandado de
Segurança nº 4810, STJ), devendo agora indenizar “após a comprovação e a
avaliação realizada em vistoria do órgão federal competente”.
Houve
um confronto da nova lei com a Instrução Normativa nº 02/2012 da Funai, pois
esta última considerava que somente seria autorizada indenização, em
benfeitorias de boa-fé realizadas antes da “publicação da portaria do
Ministério da Justiça que declara que a terra é indígena”, ato administrativo
que não encerra o processo demarcatório.
O
fim do processo de demarcação ocorre com o decreto do presidente da República
(artigo 5º, Decreto Federal nº 1.775/1996), um erro corrigido pela nova lei ao
determinar que “consideram-se de boa-fé as benfeitorias realizadas pelos
ocupantes até que seja concluído o procedimento demarcatório” (artigo 9º, §1º),
embora não tenha especificado qual o ato de conclusão do procedimento.
Em
nada muda a falta de indenização do valor de terra nua ou do imóvel rural, pois
em caso de declaração de que a terra em estudo é de posse indígena, significa
dizer que em algum momento os indígenas dali foram expulsos, consequentemente
caracterizando um imóvel pertencente à União Federal, sem esbulho de particular
nem ato ilícito da administração pública, portanto, incabível indenização para
não caracterizar desapropriação indireta (STJ, Recurso Especial 1.097.980/SC).
Porém,
a nova lei favoreceu proprietários de “justo título de propriedade ou de
posse”, cabendo indenização mais abrangente pelo imóvel rural em razão de “erro
do Estado”.
• Transparência na nova legislação
Em
outras palavras, o justo título pode ser definido como um documento que
legitima a propriedade ou posse sobre o bem, sendo este formal como uma
escritura pública, ou informal, como um contrato particular de compra e venda,
onde deve prevalecer a boa-fé na convicção de que é titular do direito real
sobre o bem amparado pelo título.
A
nova legislação garantiu não apenas a transparência e publicidade dos atos
praticados nestes processos como também a participação dos interessados “em
todas as suas fases”, inclusive com a possibilidade de indicar peritos
auxiliares e não apenas aqueles que trabalham em favor da Funai, por sua vez,
em favor das comunidades indígenas por dever institucional.
E
por falar em peritos e técnicos, outro ponto extremamente positivo para os
processos de demarcação de terras indígenas foi a possibilidade de alegar
impedimento e suspeição dos peritos e profissionais nomeados para fundamentar a
demarcação, aplicando a regra do Código de Processo Civil.
Impedimento
e suspeição são mecanismos fundamentais para garantia da imparcialidade e da
justiça do procedimento demarcatório e de qualquer processo administrativo ou
judicial no ordenamento jurídico brasileiro, em homenagem a outros princípios
constitucionais basilares como o devido processo legal, contraditório e ampla
defesa.
O
impedimento, de acordo com o Código de Processo Civil, é situação objetiva e de
ordem pública que impede o técnico nomeado de atuar em um processo,
independentemente de sua vontade ou de sua relação com as partes, como por
exemplo, o parentesco, inimizade com alguma das partes, interesse pessoal no
processo, ter atuado como procurador da causa, ter testemunhado sobre o fato. A
atuação de profissional impedido em um processo é causa de nulidade dos atos
praticados.
A
suspeição, por sua vez, diz respeito a uma situação subjetiva, em outras
palavras, dúvidas razoáveis sobre a imparcialidade, mesmo sem relação direta
que caracterize o impedimento, que leve à recusa de atuação, em razão de
fundada suspeita de parcialidade, como por exemplo a amizade íntima ou
inimizade com alguma das partes, ter manifestado opinião sobre o objeto do
processo, o que pode ser declarado pelo próprio profissional ou arguido pelas
partes, portanto, uma situação de interesse privado.
Em
respeito às chamadas condicionantes do caso Raposo Serra do Sol, julgado pelo
STF, a nova lei do marco temporal também incorporou a determinação de que “é
vedada ampliação de terras indígenas já demarcadas”, respeitando ao menos um
dos 19 daqueles pressupostos demarcatórios amenizando os conflitos neste
sentido.
Verifica-se
ainda o respeito a outra das condicionantes daquele caso julgado, no que diz
respeito ao trânsito por áreas indígenas onde existem rodovias e meios públicos
de passagem, expressamente proibindo o impedimento de passagem e a cobrança de
qualquer tipo de tarifa ou pedágio (artigo 24, V e §3º; e artigo 25).
E
no mais, a lei do marco temporal segue em regulamentação extensiva não apenas
às terras tradicionalmente ocupadas, mas também regulamentou as reservas
indígenas e terras de domínio dos indígenas para melhor esclarecimento, sem
necessidade de maiores comentários.
Por
fim, importante salientar que, há muitos anos é esperado que seja realmente
dada autonomia às comunidades indígenas, ouvindo-os sem influências ou
interferências de antropólogos, ONGs ou quaisquer outros interesses ocultos.
Esta
autonomia veio a ser garantida pelo texto da nova lei ao dizer que “cabe às
comunidades indígenas, mediante suas próprias formas de tomada de decisão e
solução de divergências, escolher a forma de uso e ocupação de suas terras” e
que “é facultado o exercício de atividades econômicas em terras indígenas,
desde que pela própria comunidade indígena, admitidas a cooperação e a
contratação de terceiros não indígenas”, contudo, proibindo arrendamentos e
parcerias que ameacem a “posse direta” dos indígenas.
Este
novo texto legal resguarda as próprias comunidades de abusivas tentativas de
manipulação como no caso dos Pareci que já somam mais de 120 milhões de reais
em multas aplicadas pelo Ibama por uso indevido de suas terras.
Ainda
não é o fim das discussões e análises a respeito da demarcação de terras
indígenas, visto que, ficou pendente de análise a PEC (Proposta de Emenda à
Constituição) nº 48/2023 e mesmo resolvendo diversas controvérsias, a nova lei
do marco temporal já se encontra na mira de mais ações judiciais no Supremo
Tribunal Federal (ADI 7.582, ADI 7.583, ADI 7.586, ADC 87), ajuizada por
partidos políticos que argumentam que não seria compatível com a proteção
constitucional aos direitos dos povos indígenas sobre seus territórios.
Fonte:
Por Pedro Puttini Mendes, na Conjur
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