Julho das Pretas marca constante movimento
de salvaguarda e resgate de memórias das mulheres negras
Há 32 anos, aconteceu
o 1º Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas. Na ocasião, grupos de
mulheres negras se reuniram para debater as consequências das violências
racistas e machistas, firmando ao final um pacto para combater os efeitos
dessas mazelas sociais fruto da colonização. Foram essas mulheres que
propuseram à Organização das Nações Unidas (ONU) que 25 de julho fosse
reconhecido como o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e
Caribenha.
A data que lança luzes
sobre a luta das mulheres negras em constante articulação na América Latina e
no Caribe tem ganhado mais visibilidade na última década, a ponto de todo o mês
de julho ser conhecido no Brasil como Julho das Pretas, um período marcado por
diversas atividades em torno do combate ao racismo e ao machismo. Além disso,
desde 2014, o dia 25 de julho passou a ser o Dia Nacional de Tereza de
Benguela, uma homenagem à líder quilombola que ajudou a libertar comunidades
negras e indígenas da escravidão no século 18.
O reconhecimento de
lideranças negras e a preservação da memória de suas lutas e articulações em
torno do antirracismo em diferentes contextos históricos é um dos principais
motes para a incidência destas datas que retomam a consciência coletiva sobre
determinados episódios, personas e conflitos.
Atualmente, além
destas datas, mulheres negras – sobretudo escritoras e pesquisadoras – têm se
articulado para criar outros mecanismos que possam salvaguardar a memória de
seus feitos. Essas mulheres estão preocupadas em garantir que a história do
povo negro no Brasil seja contada pelas próprias pessoas negras e não sob a
ótica dos colonizadores, como comumente acontecia.
Afinal, como defendeu
a historiadora negra Beatriz Nascimento: “a história do Brasil foi uma história
escrita por mãos brancas. Tanto o negro quanto o índio, quer dizer, os povos
que viveram aqui juntamente com o branco, não têm sua história escrita ainda.
Isso é um problema muito sério, porque a gente frequenta universidades e
escolas e não tem uma visão correta do passado da gente, do passado do negro.
Então, ela [a história] não foi só omissa, ela foi mais terrível ainda na parte
que ela negligencia fatos importantes e deforma muito a história do negro”.
• A literatura escreve o que a história
tenta apagar
“Sabe quando a gente
descobre algo muito bom e quer dividir com todo mundo, mas não tem condições?
Por exemplo, a partir do momento que a gente descobre quem foi Lélia Gonzalez,
Carolina Maria de Jesus, Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro,
a gente quer partilhá-las com outras pessoas. Então, seria muito bom se a gente
pudesse comprar um livro de cada uma delas para dar para as mulheres negras que
convivem com a gente, mas que tem uma limitação financeira e até de leitura.
Foi muito dessa motivação que nasceu a ideia do projeto das estátuas”.
A mestre em relações
raciais, Etiene Martins, foi responsável por realizar o projeto que viabilizou
a instalação das estátuas de Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus no Parque
Municipal de Belo Horizonte, no centro da capital mineira. As autoras foram as
primeiras mulheres negras a integrar o Circuito Literário de estátuas da cidade
de Belo Horizonte, que também é formado por nomes como Carlos Drummond de
Andrade.
Como enfatiza Etiene,
a iniciativa tem por objetivo dar visibilidade às histórias de vida dessas
mulheres, que são referências nos campos acadêmicos e literários, e preservar a
memória de seus feitos, além de possibilitar que mais pessoas possam ter contato
e conhecimento sobre as suas obras: “desde que eu entrei na universidade e
passei a ter mais contato com os movimentos sociais, notei o quanto conhecer a
história das pessoas negras mudou a minha vida, uma história do Brasil contada
por pessoas negras e não pelos brancos, por isso a importância de que mais
pessoas negras possam vivenciar isso também”.
A idealização do
projeto de inclusão das estátuas de Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus no
circuito literário de Belo Horizonte surgiu quando Etiene Martins viu pela
primeira vez a estátua de bronze de Mercedes Baptista, a primeira bailarina
negra a compor o baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que está
instalada na Praça Mauá, no centro da capital carioca. “Depois que eu vi a
estátua de Mercedes, fui atrás da história dela, que até então eu não conhecia
e isso me despertou sobre o poder que esses monumentos têm na transmissão do
conhecimento também, além do resgate de uma memória”, disse Martins.
Projetos como o de
Etiene são pioneiros quando refletimos sobre questões de reconhecimento e
representatividade de mulheres negras em espaços oficiais de referência e
homenagem como a construção de monumentos.
“O reconhecimento vem
de uma ideia de que você é precioso e valioso para algo e as mulheres negras
não são vistas como valiosas e preciosas, são vistas como força de trabalho,
então a gente vai criando uma sociedade que vive uma grande mentira. […] Essa ausência
de reconhecimento de intelectuais negras faz com que as meninas e mulheres
negras não tenham perspectiva de vida e de futuro para além da sobrevivência e
do básico e tudo isso é um mito criado e perpetuado que nós precisamos mudar”,
declarou a antropóloga Thayane Fernandes.
À prova disso temos o
Circuito de Poesia do Recife, que atualmente é composto por 18 monumentos em
homenagem a “grandes nomes da cultura pernambucana” – de acordo com informações
do site da prefeitura – e que não possui nenhuma mulher negra representada.
Apenas duas mulheres brancas integram o circuito: a jornalista Celina Holanda e
a escritora Clarice Lispector.
• Casas de ativistas que resguardam
memórias
Em entrevista à
Revista Trip, a escritora Conceição Evaristo expôs seus incômodos em ter
demorado tantos anos até ver seus trabalhos reconhecidos, com livros publicados
e distribuídos pelas editoras.
“Será que, se eu fosse
uma escritora branca, vinda de uma situação financeira não tão dolorosa como a
de que eu vim, teria tido tanta dificuldade para publicar? Será que já não
estaria nessas feiras literárias muito antes?”, questionou a autora.
Sabendo das
dificuldades que o racismo impõe sobre a sua vida e seu trabalho enquanto
escritora, Conceição Evaristo inaugurou há pouco mais de um ano o projeto Casa
Escrevivência.
Com o objetivo de
manter pulsante os trabalhos da autora negra, com o acervo de seus livros, e
também ser um local para pesquisa e discussão sobre a literatura negra, a Casa
Escrevivência está localizada no bairro da Saúde, região central da cidade do
Rio de Janeiro. A questão central do projeto está focado em um processo de
preservação da memória da história de pessoas negras que possuem grande
relevância nos debates de raça e gênero no Brasil, como a própria Conceição
Evaristo.
“Enquanto população
preta no Brasil, a gente tem uma grande dificuldade que é lidar com a memória,
que é lidar com o passado. Então, esses espaços de preservação de memória, de
resgate também da memória de pessoas que já foram importantes, mulheres e homens
intelectuais, faz com que a gente não esqueça quem foram as pessoas que vieram
antes de nós e o legado que elas deixam, as contribuições que elas deixam para
a sociedade brasileira, para o pensamento social brasileiro. E, sobretudo, faz
com que a gente consiga replicar. A Casa Escrevivência e a Casa Sueli Carneiro
são isso, modelos de espaços replicáveis”, enfatizou Thayane Fernandes.
Em um movimento
semelhante ao de Conceição Evaristo, a filósofa e também escritora Sueli
Carneiro, inaugurou ainda neste ano a Casa Sueli Carneiro, esta localizada no
bairro Jardim Rizzo, em São Paulo.
A sede da instituição
que tem fica no imóvel onde Sueli morou por 40 anos. O objetivo é “manter,
cultivar e expandir o legado da militante e intelectual Sueli Carneiro, do
movimento de mulheres negras e do movimento negro brasileiro, a partir da
memória, cultura, educação e incidência política”.
Doutoranda, Thayane
Fernandes foi aluna de Sueli Carneiro durante um intercâmbio e, recentemente,
participou de uma residência na Casa Sueli Carneiro:
“Para mim, quando eu
conheci a Sueli, eu vi uma pessoa, uma pessoa para eu me espelhar, alguém para
eu sentir conforto, uma mestra. Eu acho que nós, mulheres negras intelectuais,
precisamos muito de mestras porque não há passado para a gente que retrate a
força das mulheres intelectuais negras, então, esse acaba sendo um espaço
extremamente solitário. No Nordeste, há uma grande dificuldade nas mulheres
pretas de se considerarem intelectuais, ainda mais do que no eixo de poder no
Sul Sudeste. Eu tive algumas mestras ao longo da minha carreira, mulheres
brancas, e só agora eu encontrei uma mestra negra que me deu a mão”, que me
abraçou, de fato, literalmente, que dedicou seu tempo para mim, que chorou
comigo quando foi preciso”.
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Conheça mais sobre as autoras e intelectuais negras citadas
# Beatriz Nascimento
Maria Beatriz
Nascimento, mulher, negra, sergipana, mãe, historiadora, roteirista, poeta,
ativista: foi impulsionadora de debates no movimento negro e contribuiu de
forma singular para o pensamento social brasileiro. A pensadora fez graduação
em História (1968-1972) e especialização (1979-1981) na UFRJ. Além disso,
iniciou o curso de mestrado em História na Universidade Federal Fluminense
(UFF). Parte de sua pesquisa, realizada de maneira independente de qualquer
instituição acadêmica, consistia em observar — em campo e via documentação — os
quilombos como sistemas alternativos à estrutura escravista, com potencial
continuidade em favelas, particularmente no caso do Rio de Janeiro.
# Lélia Gonzalez
Lélia Gonzalez nasceu
em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1º de fevereiro de 1935. Tinha 59 anos
quando faleceu, em 10 de julho de 1994, no Rio de Janeiro. Intelectual, autora,
ativista, professora, antropóloga e filósofa e com papel importante na fundação
do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial. É uma grande
referência nos estudos e debates de gênero, raça e classe, sendo considerada um
dos principais nomes do feminismo negro no país com trabalhos que abordam
perspectivas interseccionais. Um de seus primeiros trabalhos foi o artigo
Mulher negra: um retrato. Na década de 1980, publicou seu primeiro livro, Lugar
de negro, em parceria com o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg.
# Carolina Maria de
Jesus
Semianalfabeta e
catadora de papelão, Carolina Maria de Jesus é uma das escritoras mais lidas do
Brasil. Quarto de despejo, seu primeiro livro lançado na década de 60, é uma
das obras mais marcantes da literatura brasileira, e vendeu mais de 3 milhões
de livros em 16 idiomas.
A autora também era
cantora, cronista, compositora, roteirista e artista têxtil, e é considerada
uma das vozes mais emblemáticas da literatura brasileira por trazer à tona uma
realidade muitas vezes silenciada das favelas e comunidades marginalizadas.
# Conceição Evaristo
Maria da Conceição
Evaristo de Brito é uma escritora brasileira, autora de livros como Ponciá
Vicêncio, seu romance mais famoso. Suas obras, pertencentes à literatura
contemporânea, são caracterizadas pelo protagonismo feminino e pela denúncia de
discriminação racial. Em março de 2024, tomou posse como “imortal” da Academia
Mineira de Letras, ocupando a cadeira número 40. Conceição Evaristo nasceu em
29 de novembro de 1946, em Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais. Trabalhou
como empregada doméstica, se tornou professora e fez faculdade de Letras, além
de mestrado e doutorado.
# Sueli Carneiro
Aparecida Sueli
Carneiro é uma reconhecida filósofa e ativista do movimento negro e feminista
brasileiro. Ela foi fundadora do
Instituto Geledés – Instituto da Mulher Negra – e é doutora em Filosofia da
Educação pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
(Universidade de São Paulo). A vasta
produção intelectual de Sueli Carneiro é constituída por sua tese de doutorado,
artigos, ensaios, capítulos de livros, falas em seminários, em fóruns e em
audiências públicas. Em seus escritos, Carneiro aborda temas cruciais para se
pensar o Brasil contemporâneo: o conceito de dispositivo de racialidade, o
epistemicídio, o mito da democracia racial, a proposição de um feminismo negro
brasileiro e a concretização dos direitos humanos.
Fonte: Por Giovanna
Carneiro, para Marco Zero
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