terça-feira, 9 de julho de 2024

Jorge Folena: Superação do fascismo no Brasil

Infelizmente, as instituições têm normalizado o fascismo no Brasil. E foi na esteira dessa normalização do que deveria ser inaceitável que, na semana passada circulou nas redes sociais (em 02/07/2024) um vídeo de treinamento de policiais militares de Minas Gerais, em que eles corriam pelas ruas cantando o refrão “cabra safado, petista maconheiro”.

O fato configura um absurdo atentatório à Constituição, pelo qual todos os envolvidos (facilmente identificáveis) deveriam ter sido imediatamente afastados das suas funções, inclusive sendo determinadas prisões disciplinares, e, em seguida, sendo processados administrativa e criminalmente.

Outro caso esdrúxulo foi o de um desembargador do Paraná, que em plena sessão de julgamento, não teve qualquer escrúpulo em derramar toda a sua misoginia, ao criticar o posicionamento de uma mulher (o caso analisado no tribunal era de uma menina de 12 anos, que requereu medida protetiva contra a prática de assédio promovida por um professor) como sendo uma “manifestação feminista”, como se o feminismo fosse algo condenável e prosseguiu em sua fala afirmando que nos dias de hoje são as mulheres que estão “correndo atrás de homens”; depois veio pedir desculpas, como sempre fazem quando são expostos, porém é sempre tarde demais, pois o estrago foi feito.

São adeptos da mesma escola do ex-presidente da república, que em diversas oportunidades agiu de modo semelhante ao interagir com pessoas do sexo feminino. Por exemplo, quando disse para uma congressista que ela não merecia ser estuprada por ser feia; quando, referindo-se a meninas com menos de 15 anos de idade, afirmou que tinha pintado “um clima” entre ele e elas; quando fez um vídeo ao vivo apresentando uma menina de cerca de 10 anos de idade, à época, como suposto exemplo de empreendedorismo, e fez comentários maliciosos usando o termo “furo” em relação à criança; nas muitas vezes em que dirigiu sua fúria contra mulheres jornalistas etc.

Entretanto, quando se trata de ações fascistas, todas são normalizadas no país, como ocorreu com o não processamento dos verdugos da última ditadura; com os que se enriqueceram com as privatizações neoliberais da era FHC; com os integrantes da famigerada operação lava jato; com a demora injustificada da conclusão das diversas investigações e consequente processamento criminal contra o ex-presidente e todo o seu séquito golpista, que até hoje não respondem por seus atos, já passados mais de um ano e meio que saíram do governo.

Vale lembrar que, recentemente, ocorreram duas CPIs no país para investigar as ações do governo do ex-presidente; uma pelos atos praticados durante a pandemia da COVID-19, que ceifou centenas de milhares de vidas de brasileiros, e a dos atos golpistas do 8 de janeiro de 2023. Em ambas, os relatórios aprovados indiciaram várias pessoas, inclusive o ex-presidente, que está inelegível, até aqui, por duas decisões do TSE.

Contudo, a Procuradoria Geral da República não apresentou até hoje qualquer denúncia contra os indiciados e o procurador geral atual maneja o discurso de que é preciso ter cautela para não ficar caracterizada a atuação política do órgão.

Recordo que, quando processaram indevidamente o presidente Lula, com base em ficções jurídicas manejadas com intenção golpista por integrantes da lava jata, a ação penal correu a toque de caixa para impedi-lo de disputar a eleição de 2018; na ocasião, a lava jato contou, inclusive, com a colaboração absurda do STF, que negou habeas corpus para que o presidente pudesse responder livremente, com base no princípio da presunção de inocência, mesmo tendo havido empate no julgamento, e, por isso, deveria ser aplicado o tratamento mais benéfico para o réu.

É preciso bradar aos quatro ventos: o fascismo foi naturalizado no país! E sem nenhum pudor ou escrúpulo por parte da nossa classe dominante. O exemplo mais claro desse fato foi o período de 2019 a 2022, quando tivemos o governo do ex-presidente inelegível, indevidamente definido por alguns como um “estado de loucura”, mas, na verdade, não foi bem assim, uma perda generalizada do sentido da razão; ao contrário, tudo constituiu uma jogada de ação política e governamental, muito bem arquitetada para fortalecer a extrema-direita no país.

Em 2020 utilizei a pintura “A nau dos loucos”, de Hieronymus Bosch, como uma alegoria para retratar o que se passava então no Brasil, durante o governo do ex-presidente, que fazia o inimaginável para desviar a atenção dos graves problemas introduzidos pelas reformas neoliberais de Michel Temer e de seu próprio governo, que foram totalmente prejudiciais à classe trabalhadora, ao desenvolvimento e à soberania do país.

Entre 2019-2022, o presidente conduziu com maestria um circo dos horrores, que incluiu até mesmo a presença de um palhaço, que se prestava ao papel de atacar quem questionava o então governante, e que era usado, em particular, num jogo de cena para agredir a mídia empresarial.

Naquelas manobras típicas do fascismo, ele contou com a presença de pastores neopentecostais aproveitadores, associados a crentes ingênuos, extremistas, defensores do terraplanismo, militares golpistas, banqueiros avarentos, empresários gananciosos e políticos malandros, os mesmos que agora tentam constranger o governo do presidente Lula, a fim de manter o projeto neoliberal contrário aos interesses da soberania e do desenvolvimento do país.

Os fascistas estão aparelhados e espalhados pelas diversas instituições do país, como vimos na atuação da lava jato, de diversos juízes, militares, policiais, servidores públicos, empresários, religiosos e até mesmo em segmentos da classe trabalhadora, infelizmente cooptados por décadas de manipulação e desinformação.

Para nos libertarmos do fascismo, que é a maior batalha a ser travada pelo campo democrático, popular e progressista no Brasil, precisaremos ter muita disposição política para promover educação de base e criar consciência política e de classe social.

Para compreender o mal que o fascismo faz a um povo e de que maneira temos que lutar continuamente para superá-lo, tenho assistido, com uma frequência que beira a exaustão, o filme soviético “O fascismo de todos os dias” (disponível gratuitamente no Youtube).

Aqui no Brasil não será uma batalha fácil, pois, desde a colônia, o país convive com um sem-número de atrocidades e maldades impostas ao ser humano, as quais, infelizmente, acabaram se normalizando no inconsciente popular.

Não podemos afirmar com certeza quando ela vai se materializar, mas é certo dizer que a vitória sobre o fascismo somente ocorrerá com a superação da ordem capitalista, que pavimentou o caminho para a sua própria destruição a partir do momento em que optou por impor cada vez mais concentração de capital, injustiça e violência, roubando da maioria das pessoas qualquer possibilidade de esperança no futuro.

 

•        O militar e a fé religiosa. Por Manuel Domingos Neto

Um vídeo circulou essa semana mostrando um auditório repleto de militares numa celebração religiosa falsamente apresentada como neopentecostal. Na verdade, tratava-se de rotineira celebração da Páscoa dos militares que, desde a Segunda Guerra Mundial, ocorre à margem do calendário da Igreja Católica.

A postagem maldosa inquietou brasileiros preocupados com as ameaças à democracia: de instituições militares e policiais contaminadas por fundamentalismos religiosos só cabe esperar aberrações sem limites.

Até a recente invasão da Faixa de Gaza, eu recorria à descrição da tomada de Jerusalém do bispo francês Raymond d’Agile para exemplificar a santificação do derramamento de sangue:

“Coisas admiráveis são vistas... Nas ruas e nas praças da cidade, pedaços de cabeça, de mãos, de pés. Os homens e os cavaleiros marcham por todos os lados através de cadáveres... No Templo e no Pórtico, ia-se a cavalo com o sangue até a brida. Justo e admirável o julgamento de Deus que quis que esse lugar recebesse o sangue dos blasfemos que o haviam emporcalhado. Espetáculos celestes... Na Igreja e por toda a cidade o povo rendia graças ao Eterno”.

Sabemos dos estragos do fanatismo religioso na política: falseia o escrutínio da representação popular e explode a institucionalidade. Sabemos também que a composição do Congresso Nacional não representa o espectro político-ideológico brasileiro. O que não sabemos é a profundidade da penetração do discurso neopentecostal nos instrumentos de força do Estado. Apenas temos consciência de que existe e tem potencial nefasto.

Como um Estado proclamado laico deve lidar com o ativismo religioso em suas entranhas? Eis um problema permanente da modernidade, que se exprime de forma aguda no quartel.

A entidade que justifica a guerra entre civilizados é a nação, também designada pátria. Ao destacar os cenotáfios (túmulos sem restos mortais) na construção desse ente, Benedict Anderson demonstrou como sua legitimação deriva da religiosidade: remete ao passado longínquo e à eternidade. O encarregado de sustentar a nação pelas armas é, sem escapatória, envolvido por sua sacralidade.

O combatente contemporâneo se veste de mandatário do “bem” em luta sagrada contra o “mal”. Presta juramento e reverencia a bandeira nacional feito um cruzado medieval diante da cruz. Não desatualiza a mordacidade de Voltaire: “o maravilhoso, nesta empresa infernal (a guerra), é que todos os chefes de assassinos fazem benzer as bandeiras e invocam solenemente Deus antes de exterminar o próximo”.

Guerreiros, em qualquer tempo e lugar, são levados a cultivar a “bela morte”: amam a vida, gostam de facilidades materiais e projeção social, mas perseguem a glória, algo além daquilo que a existência terrena pode oferecer. Heróis de guerra são reverenciados em todas as sociedades. Fascinam, galvanizam multidões e estimulam processos sociais.

A disposição do moderno de ver a guerra como algo excepcional demanda cortes arbitrários como os estabelecidos entre o “religioso”, o “político”, o “econômico”, o “científico”, o “diplomático” e o “militar”. A rigor, nenhum desses domínios pode ser compreendido como desconexo.

As distinções arbitrárias, bem como os sempre frustrados acordos de desarmamento, as tentativas fracassadas de classificar e regulamentar o comportamento de combatentes de vida e morte ou ainda as quiméricas neutralidades nos conflitos entre Estados nacionais, camuflam o mal-estar provocado pela eliminação dos semelhantes.

Se o Estado laico não pode interditar atividades religiosas no quartel, é fundamental que estabeleça limites. Isso requer garantia da plena liberdade de crença, incompatível com a prevalência formal da Igreja Católica, e a contenção do fanatismo.

É hora de rever a chamada capelania: missionários não podem ser admitidos como funcionários remunerados. Cabe assegurar a presença, no quartel, do mosaico de crenças da sociedade brasileira. Aos comandos, cumpre observar o estrito respeito à diversidade religiosa.

Quanto à pessoa que apresentou falsamente o vídeo sobre a celebração da Páscoa dos militares, saiba que conseguiu angustiar os que gostam da democracia e irritar em vão os que, no quartel, buscavam o agasalho de Cristo. Que tal arranjar outra coisa para fazer?

 

Fonte: Brasil 247

 

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