Jorge Folena: Superação do fascismo no
Brasil
Infelizmente, as
instituições têm normalizado o fascismo no Brasil. E foi na esteira dessa
normalização do que deveria ser inaceitável que, na semana passada circulou nas
redes sociais (em 02/07/2024) um vídeo de treinamento de policiais militares de
Minas Gerais, em que eles corriam pelas ruas cantando o refrão “cabra safado,
petista maconheiro”.
O fato configura um
absurdo atentatório à Constituição, pelo qual todos os envolvidos (facilmente
identificáveis) deveriam ter sido imediatamente afastados das suas funções,
inclusive sendo determinadas prisões disciplinares, e, em seguida, sendo
processados administrativa e criminalmente.
Outro caso esdrúxulo
foi o de um desembargador do Paraná, que em plena sessão de julgamento, não
teve qualquer escrúpulo em derramar toda a sua misoginia, ao criticar o
posicionamento de uma mulher (o caso analisado no tribunal era de uma menina de
12 anos, que requereu medida protetiva contra a prática de assédio promovida
por um professor) como sendo uma “manifestação feminista”, como se o feminismo
fosse algo condenável e prosseguiu em sua fala afirmando que nos dias de hoje
são as mulheres que estão “correndo atrás de homens”; depois veio pedir
desculpas, como sempre fazem quando são expostos, porém é sempre tarde demais,
pois o estrago foi feito.
São adeptos da mesma
escola do ex-presidente da república, que em diversas oportunidades agiu de
modo semelhante ao interagir com pessoas do sexo feminino. Por exemplo, quando
disse para uma congressista que ela não merecia ser estuprada por ser feia; quando,
referindo-se a meninas com menos de 15 anos de idade, afirmou que tinha pintado
“um clima” entre ele e elas; quando fez um vídeo ao vivo apresentando uma
menina de cerca de 10 anos de idade, à época, como suposto exemplo de
empreendedorismo, e fez comentários maliciosos usando o termo “furo” em relação
à criança; nas muitas vezes em que dirigiu sua fúria contra mulheres
jornalistas etc.
Entretanto, quando se
trata de ações fascistas, todas são normalizadas no país, como ocorreu com o
não processamento dos verdugos da última ditadura; com os que se enriqueceram
com as privatizações neoliberais da era FHC; com os integrantes da famigerada
operação lava jato; com a demora injustificada da conclusão das diversas
investigações e consequente processamento criminal contra o ex-presidente e
todo o seu séquito golpista, que até hoje não respondem por seus atos, já
passados mais de um ano e meio que saíram do governo.
Vale lembrar que,
recentemente, ocorreram duas CPIs no país para investigar as ações do governo
do ex-presidente; uma pelos atos praticados durante a pandemia da COVID-19, que
ceifou centenas de milhares de vidas de brasileiros, e a dos atos golpistas do
8 de janeiro de 2023. Em ambas, os relatórios aprovados indiciaram várias
pessoas, inclusive o ex-presidente, que está inelegível, até aqui, por duas
decisões do TSE.
Contudo, a
Procuradoria Geral da República não apresentou até hoje qualquer denúncia
contra os indiciados e o procurador geral atual maneja o discurso de que é
preciso ter cautela para não ficar caracterizada a atuação política do órgão.
Recordo que, quando
processaram indevidamente o presidente Lula, com base em ficções jurídicas
manejadas com intenção golpista por integrantes da lava jata, a ação penal
correu a toque de caixa para impedi-lo de disputar a eleição de 2018; na
ocasião, a lava jato contou, inclusive, com a colaboração absurda do STF, que
negou habeas corpus para que o presidente pudesse responder livremente, com
base no princípio da presunção de inocência, mesmo tendo havido empate no
julgamento, e, por isso, deveria ser aplicado o tratamento mais benéfico para o
réu.
É preciso bradar aos
quatro ventos: o fascismo foi naturalizado no país! E sem nenhum pudor ou
escrúpulo por parte da nossa classe dominante. O exemplo mais claro desse fato
foi o período de 2019 a 2022, quando tivemos o governo do ex-presidente
inelegível, indevidamente definido por alguns como um “estado de loucura”, mas,
na verdade, não foi bem assim, uma perda generalizada do sentido da razão; ao
contrário, tudo constituiu uma jogada de ação política e governamental, muito
bem arquitetada para fortalecer a extrema-direita no país.
Em 2020 utilizei a
pintura “A nau dos loucos”, de Hieronymus Bosch, como uma alegoria para
retratar o que se passava então no Brasil, durante o governo do ex-presidente,
que fazia o inimaginável para desviar a atenção dos graves problemas
introduzidos pelas reformas neoliberais de Michel Temer e de seu próprio
governo, que foram totalmente prejudiciais à classe trabalhadora, ao
desenvolvimento e à soberania do país.
Entre 2019-2022, o
presidente conduziu com maestria um circo dos horrores, que incluiu até mesmo a
presença de um palhaço, que se prestava ao papel de atacar quem questionava o
então governante, e que era usado, em particular, num jogo de cena para agredir
a mídia empresarial.
Naquelas manobras
típicas do fascismo, ele contou com a presença de pastores neopentecostais
aproveitadores, associados a crentes ingênuos, extremistas, defensores do
terraplanismo, militares golpistas, banqueiros avarentos, empresários
gananciosos e políticos malandros, os mesmos que agora tentam constranger o
governo do presidente Lula, a fim de manter o projeto neoliberal contrário aos
interesses da soberania e do desenvolvimento do país.
Os fascistas estão
aparelhados e espalhados pelas diversas instituições do país, como vimos na
atuação da lava jato, de diversos juízes, militares, policiais, servidores
públicos, empresários, religiosos e até mesmo em segmentos da classe
trabalhadora, infelizmente cooptados por décadas de manipulação e
desinformação.
Para nos libertarmos
do fascismo, que é a maior batalha a ser travada pelo campo democrático,
popular e progressista no Brasil, precisaremos ter muita disposição política
para promover educação de base e criar consciência política e de classe social.
Para compreender o mal
que o fascismo faz a um povo e de que maneira temos que lutar continuamente
para superá-lo, tenho assistido, com uma frequência que beira a exaustão, o
filme soviético “O fascismo de todos os dias” (disponível gratuitamente no Youtube).
Aqui no Brasil não
será uma batalha fácil, pois, desde a colônia, o país convive com um sem-número
de atrocidades e maldades impostas ao ser humano, as quais, infelizmente,
acabaram se normalizando no inconsciente popular.
Não podemos afirmar
com certeza quando ela vai se materializar, mas é certo dizer que a vitória
sobre o fascismo somente ocorrerá com a superação da ordem capitalista, que
pavimentou o caminho para a sua própria destruição a partir do momento em que
optou por impor cada vez mais concentração de capital, injustiça e violência,
roubando da maioria das pessoas qualquer possibilidade de esperança no futuro.
• O militar e a fé religiosa. Por Manuel
Domingos Neto
Um vídeo circulou essa
semana mostrando um auditório repleto de militares numa celebração religiosa
falsamente apresentada como neopentecostal. Na verdade, tratava-se de rotineira
celebração da Páscoa dos militares que, desde a Segunda Guerra Mundial, ocorre
à margem do calendário da Igreja Católica.
A postagem maldosa
inquietou brasileiros preocupados com as ameaças à democracia: de instituições
militares e policiais contaminadas por fundamentalismos religiosos só cabe
esperar aberrações sem limites.
Até a recente invasão
da Faixa de Gaza, eu recorria à descrição da tomada de Jerusalém do bispo
francês Raymond d’Agile para exemplificar a santificação do derramamento de
sangue:
“Coisas admiráveis são
vistas... Nas ruas e nas praças da cidade, pedaços de cabeça, de mãos, de pés.
Os homens e os cavaleiros marcham por todos os lados através de cadáveres... No
Templo e no Pórtico, ia-se a cavalo com o sangue até a brida. Justo e admirável
o julgamento de Deus que quis que esse lugar recebesse o sangue dos blasfemos
que o haviam emporcalhado. Espetáculos celestes... Na Igreja e por toda a
cidade o povo rendia graças ao Eterno”.
Sabemos dos estragos
do fanatismo religioso na política: falseia o escrutínio da representação
popular e explode a institucionalidade. Sabemos também que a composição do
Congresso Nacional não representa o espectro político-ideológico brasileiro. O
que não sabemos é a profundidade da penetração do discurso neopentecostal nos
instrumentos de força do Estado. Apenas temos consciência de que existe e tem
potencial nefasto.
Como um Estado
proclamado laico deve lidar com o ativismo religioso em suas entranhas? Eis um
problema permanente da modernidade, que se exprime de forma aguda no quartel.
A entidade que
justifica a guerra entre civilizados é a nação, também designada pátria. Ao
destacar os cenotáfios (túmulos sem restos mortais) na construção desse ente,
Benedict Anderson demonstrou como sua legitimação deriva da religiosidade:
remete ao passado longínquo e à eternidade. O encarregado de sustentar a nação
pelas armas é, sem escapatória, envolvido por sua sacralidade.
O combatente
contemporâneo se veste de mandatário do “bem” em luta sagrada contra o “mal”.
Presta juramento e reverencia a bandeira nacional feito um cruzado medieval
diante da cruz. Não desatualiza a mordacidade de Voltaire: “o maravilhoso,
nesta empresa infernal (a guerra), é que todos os chefes de assassinos fazem
benzer as bandeiras e invocam solenemente Deus antes de exterminar o próximo”.
Guerreiros, em
qualquer tempo e lugar, são levados a cultivar a “bela morte”: amam a vida,
gostam de facilidades materiais e projeção social, mas perseguem a glória, algo
além daquilo que a existência terrena pode oferecer. Heróis de guerra são
reverenciados em todas as sociedades. Fascinam, galvanizam multidões e
estimulam processos sociais.
A disposição do
moderno de ver a guerra como algo excepcional demanda cortes arbitrários como
os estabelecidos entre o “religioso”, o “político”, o “econômico”, o
“científico”, o “diplomático” e o “militar”. A rigor, nenhum desses domínios
pode ser compreendido como desconexo.
As distinções
arbitrárias, bem como os sempre frustrados acordos de desarmamento, as
tentativas fracassadas de classificar e regulamentar o comportamento de
combatentes de vida e morte ou ainda as quiméricas neutralidades nos conflitos
entre Estados nacionais, camuflam o mal-estar provocado pela eliminação dos
semelhantes.
Se o Estado laico não
pode interditar atividades religiosas no quartel, é fundamental que estabeleça
limites. Isso requer garantia da plena liberdade de crença, incompatível com a
prevalência formal da Igreja Católica, e a contenção do fanatismo.
É hora de rever a
chamada capelania: missionários não podem ser admitidos como funcionários
remunerados. Cabe assegurar a presença, no quartel, do mosaico de crenças da
sociedade brasileira. Aos comandos, cumpre observar o estrito respeito à
diversidade religiosa.
Quanto à pessoa que
apresentou falsamente o vídeo sobre a celebração da Páscoa dos militares, saiba
que conseguiu angustiar os que gostam da democracia e irritar em vão os que, no
quartel, buscavam o agasalho de Cristo. Que tal arranjar outra coisa para fazer?
Fonte: Brasil 247
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