Impactos
e situação do RS dois meses após as
enchentes
Os
temporais e cheias que, a partir do final de abril, provocaram 179 mortes no
Rio Grande do Sul, completam dois meses neste final de semana. Alguns impactos
da tragédia ainda são visíveis no dia a dia da população gaúcha.
O
desastre afetou 2,3 milhões de pessoas, deixando mais de 800 feridos e 34
desaparecidos. Quase 7 mil pessoas seguem desabrigadas.
São
80 trechos de estradas ainda bloqueados, parcial ou totalmente, o que impede a
circulação de pessoas e mercadorias em algumas regiões. Cerca de 37,8 mil
alunos ainda estão sem aulas presenciais na rede estadual de ensino.
O
lixo que se acumulou nas cidades é recolhido. Apenas em Porto Alegre, 87 mil
toneladas de resíduos já foram retiradas das ruas.
• Desaparecidos e desabrigados
O
Rio Grande do Sul registra 34 pessoas que seguem desaparecidas desde o início
do desastre. Municípios da Serra e do Vale do Taquari concentram a maior parte
das buscas, que são lideradas por dois comandos do Corpo de Bombeiros Militar.
As
unidades ficam em Bento Gonçalves e em Lajeado. As equipes fazem buscas nas
margens dos rios e em locais atingidos por deslizamentos em 17 cidades que
ainda procuram por moradores que sumiram depois da tragédia.
Parte
das buscas é realizada nas margens dos rios, onde os militares fazem uma
espécie de marcha. Nos rios, embarcações equipadas com sonares mapeiam o que
está sob as águas.
O
Rio Grande do Sul ainda registra pessoas desabrigadas, ou seja, que precisaram
sair de casa e só encontraram acolhimento em espaços públicos ou mantidos por
voluntários.
Atualmente,
6.959 pessoas estão em abrigos. No pior momento das enchentes, ainda em maio, o
estado tinha 78 mil pessoas atendidas em ginásios, salões e galpões
improvisados.
Porto
Alegre é a cidade com mais abrigos em funcionamento, 36 locais, e maior público
atendido, 1,5 mil pessoas. Também há desabrigados em Canoas e São Leopoldo, na
Região Metropolitana, e em cidades dos vales, como Cruzeiro do Sul, Encantado,
Estrela, Lajeado e São Sebastião do Caí.
Além
dos abrigos, há as chamadas "cidades provisórias", erguidas pelo
governo do estado em parceria com entidades e a iniciativa privada, para
acolher desabrigados na Região Metropolitana. Em Canoas, a Organização das
Nações Unidas (ONU) doou estruturas para receber a população que está fora de
casa.
"Ela
proporciona privacidade, dignidade e o que a gente fala de proteção. O que
seria essa proteção? É a garantia de segurança das pessoas, a garantia dela se
sentir acolhida", diz a oficial de planejamento de abrigos do Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), Patrícia Monteiro.
• Estradas bloqueadas e comunidades
isoladas
O
estado tem 80 trechos de estradas bloqueados desde o início dos temporais. Nas
rodovias federais, são 21 pontos, sendo seis com bloqueio total e 15 com
interrupção parcial. Já nas rodovias estaduais, são 59 trechos, 25 bloqueados
totalmente e 34 parcialmente desde a publicação desta reportagem no dia 29 de
junho.
No
Vale do Rio Pardo, uma das primeiras regiões afetadas pelos temporais, estradas
em situação precária dificultam o escoamento da produção agrícola. Algumas
comunidades estão isoladas.
Para
chegar na comunidade de Rebentona, em Candelária, é necessário passar por uma
ponte pênsil. Mais adiante, só caminhonetes ou tratores conseguem passar pela
estrada. O município não registrou mortes por causa da chuva, mas a força dos
rios da região carregou pontes, passarelas e até pessoas.
O
agricultor Guilherme Norberto Gewehr tem dificuldades para transportar o arroz
que sobreviveu à enchente em sua propriedade
"Tudo
muito precário, não tem acesso, só pela ponte. Mas aí precisa passar tudo
braçal por cima e de trator. É um baita de um transtorno", diz.
Moradores
do Vale do Rio Pardo ainda estão isolados ou com estradas precárias
Na
mesma região, duas comunidades estão isoladas em Sinimbu. As pontes que faziam
as conexões entre as comunidades já não existem mais e a estrutura provisória
erguida pelo Exército também foi levada pelo rio.
Uma
espécie de tirolesa foi montada por moradores, que tentam improvisar no
transporte de objetos entre um lado e outro do rio.
"Alguém
às vezes chama: 'olha, tenho uma coisa para passar lá para o outro lado'. A
gente está aí para ajudar", comenta o agricultur Reinvaldo Henks.
• Escolas fechadas e aulas online
Dos
741,8 mil alunos da rede estadual de ensino, 37,8 mil estão sem aulas
presenciais (entre eles, 4,6 mil não retomaram nem mesmo as aulas virtuais).
Na
Escola Estadual Cândido Godói, em Porto Alegre, foi tudo revirado pela água,
que chegou a 1,7 metro de altura. Agora que a lama secou, a equipe separa o
entulho para começar a limpeza. Entre os itens separados para o lixo, estão
livros. O que não molhou, ficou mofado.
As
aulas estão sendo realizadas online, e o calendário letivo deverá ser
repensado, segundo a vice-diretora, Maria Luiza de Castro.
"Nós
estamos fazendo aulas com os alunos, aulas online. Estávamos, por exemplo,
terminando o primeiro trimestre", conta.
• Escolas atingidas por enchentes no RS
Os
pais dos 320 alunos estão preocupados com a defasagem no aprendizado. O filho
de Clarice Dal Médico está no 2º ano do ensino médio e se prepara para cursar
ciência da computação.
"Por
mais que a gente tenha os alunos sendo atendidos pela escola com aula online,
aula postada nas salas, aula pelo Meet [aplicativo de videochamadas], mas ele
precisa da sala de aula, a questão da convivência ajuda também na
aprendizagem", comenta.
Ainda
com a possibilidade de ensino remoto, alguns alunos não conseguem acessar as
aulas pela internet.
"Muitos
alunos dependem dos dados móveis do seu celular, uma vez que várias famílias
estão ainda desalojadas, que perderam as suas casas, não têm serviço de
internet disponibilizado nas suas residências. Então a escola até disponibiliza
[conteúdo], mas não sabe se está chegando aos alunos", explica o
vice-diretor, Mário Antônio da Silva.
A
Secretaria Estadual da Educação (Seduc) afirma ter liberado "a parcela
extra de autonomia financeira para que as escolas contratassem serviços de
limpeza" da escola Cândido Godói. Também afirmou que "o governo
liberou 6 milhões de reais para a compra de mobiliária e as entregas começaram
na semana passada".
• Lixo nas ruas
Quem
circula por Porto Alegre ainda encontra lixo em algumas ruas. São móveis e
objetos que ficaram danificados ou que foram perdidos na enchente, além do lodo
acumulado e do lixo normalmente varrido pela cidade.
Segundo
a prefeitura da capital, já foram recolhidas 87.385 toneladas de resíduos
deixados pelas calçadas. O volume, de acordo com o município, é suficiente para
encher 29,2 mil caminhões.
"É
rua por rua", conta o supervisor de uma das equipes de limpeza, Vilmar
Custódio da Rosa.
Alguns
dos bairros mais atingidos pela enchente contam com áreas chamadas de
"bota-espera", onde o lixo é acumulado antes de ser novamente
recolhido e enviado para um aterro na cidade vizinha de Gravataí.
• Transfobia ambiental: o que é e qual
a relação com a enchente do RS
Transfobia
ambiental, uma expressão nova, que ainda não está presente no vocabulário de
boa parte da população. Um termo que expõe uma questão urgente e muitas vezes
negligenciada, que vem do sofrimento do grupo de pessoas transgêneras, ou,
simplesmente, "pessoas trans".
"A
população trans enfrenta diversas dificuldades de acesso. Muitas pessoas sofrem
violência desde muito cedo e acabam não concluindo a escola, não conseguem
ingressar na universidade, e por causa disso muitas não conseguem nem um
emprego no mercado formal de trabalho. Isso vai colocando as pessoas em uma
posição extremamente vulnerável", explica Gustavo Deon, artista, produtor
cultural e homem trans.
Mas
como essa vulnerabilidade de pessoas trans está relacionada ao ambiente? Diego
Candido, advogado especialista em Direito LGBT+ e coordenador jurídico da ONG
Igualdade RS - Associação de Travestis e Transexuais do RS, esclarece:
“A
transfobia ambiental é baseada em estudos sobre o racismo ambiental que envolve
a população negra, sugerindo que grupos sociais excluídos, como as pessoas
trans e travestis, são afetados de maneira mais gravosa por eventos como a
crise climática", exemplifica.
A
enchente que assolou o Rio Grande do Sul no mês de maio e fez 179 vítimas
ilustra essa dinâmica de maneira clara. Hellen Faleiro, uma mulher trans que
perdeu sua casa com a cheia na Ilha da Pintada, na Região Metropolitana de
Porto Alegre, precisou passar por quatro abrigos, sendo três em Guaíba e um em
Porto Alegre, até encontrar um lugar adequado para ficar.
“Sofri
transfobia. As pessoas me chamando de "ele", de "doutor",
de "mano" e eu com a minha figura ali de mulher, montada de mulher,
com roupa de mulher. Mesmo assim eles me chamavam de "ele", revela.
Em
2023, 145 pessoas trans foram assassinadas, de acordo com o "Dossiê:
assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em
2023", elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais
(ANTRA). O número representa um aumento de 10,7% em relação a 2022.
Os
relatos do artista Gustavo durante este período de calamidade no RS não são
diferentes. De acordo com ele, um homem trans sofreu tentativa de assédio em um
abrigo, após ter sido abusado sexualmente antes da enchente, e "preferiu
sair e dormir na rua do que continuar dentro do abrigo [...]. Era mais seguro
estar fora do que dentro".
Por
situações assim, a resposta da sociedade civil em prol das pessoas trans tem
sido crucial para quem enfrentou casos parecidos.
Dani
Morethson, presidente da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas,
mobilizou-se já no primeiro dia de voluntariado para ajudar os desabrigados:
“Sinalizei
um caso de transfobia. Aquilo que é o normal de sempre, o uso do
banheiro", explica.
Hoje,
Dani é coordenador de um abrigo para pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ atingidas
pela enchente, o "Renascer". "Decidimos arrumar um prédio parado
e trazer a população LGBT pra cá. Em três dias, arrumamos a iluminação, a rede
elétrica e começamos a trazer um número grande de mulheres trans e homens
trans", conta o coordenador.
Atualmente,
o abrigo está com 27 pessoas, entre elas quatro homens trans e sete mulheres
trans, incluindo a Hellen.
De
acordo com Dani, todas as pessoas trans que estão no local sofreram algum tipo
de violação de direitos em outros abrigos, como restrições de uso de banheiros
e eram chamadas pelo "nome morto", aquele que usavam antes de
passarem pela transição.
“São
pessoas que não estão preparadas para qualquer tipo de calamidade. São
desestruturadas e não têm família que as acolham. As pessoas cisgêneras voltam
para suas casas ou são acolhidas pela família. As pessoas trans, não",
lamenta o coordenador.
Conforme
o advogado Diego Candido, "o agravamento da situação de vulnerabilidade de
uma pessoa que já é vulnerável e luta pela sobrevivência todos os dias"
deixa ainda mais perceptível os efeitos da transfobia ambiental em épocas de
desastres naturais e calamidade pública.
Para
Gustavo, que além de trabalhar com arte é um dos idealizadores do projeto
#AjudaTransRS, a maior dificuldade de uma pessoa trans enquanto está na posição
de desabrigada na enchente é "não receber ajuda enquanto todas as pessoas
estavam recebendo".
"Mais
uma vez, a população trans é uma das que mais sofre com os impactos do
preconceito, da falta de informação e da formação da sociedade de muitos
profissionais que estavam nos abrigos", diz Gustavo.
A
situação de Hellen, que busca reconstruir sua vida após perder a casa, é um
exemplo de resiliência da comunidade trans diante de tantas adversidades. “Eu
já larguei muitos currículos e não entrei no mercado de trabalho por
preconceito. Quero voltar a estudar e fazer um técnico de enfermagem, mas
enquanto isso quero fazer cursos para ser cuidadora de idosos", conta
Hellen.
De
acordo com Candido, essa situação é agravada pela falta de políticas públicas
eficazes e pela ausência de legislações específicas para proteger os direitos
da população LGBTQIAPN+. Ele destaca que a “a legislação brasileira não prevê
os direitos das pessoas LGBTQIA+ e, diante da omissão do legislador, tais
direitos são garantidos pelo Poder Judiciário por meio de decisões emanadas
pelos Tribunais Superiores (STF e STJ) e Conselho Nacional de Justiça
(CNJ)".
"Portanto,
a salvaguarda desses direitos perpassa pelo ajuizamento de ações a partir da
análise do caso concreto, daí a necessidade da constante vigília dos operadores
do direito que trabalham com a pauta dos Direitos Humanos", conclui.
• #AjudaTransRS
O
projeto #AjudaTransRS, idealizado pelo Gustavo junto com a sua companheira,
Luka Machado, tem o objetivo de minimizar a transfobia e garantir que tanto as
pessoas trans afetadas pelas enchentes quanto as voluntárias se sintam seguras.
Desde então, o #AjudaTransRS tem se dedicado a fornecer recursos de forma
organizada e eficiente para atender às necessidades da comunidade trans.
Até
o momento, o projeto atendeu mais de 135 famílias e distribuiu cerca de R$ 60
mil em recursos para compra de alimentos, água, medicamentos, kits de higiene,
colchões, camas, produtos de limpeza e reforma das casas.
Os
organizadores fazem um apelo para que as pessoas continuem doando e
fortalecendo essa rede de apoio, ajudando a garantir que todos tenham a
oportunidade de reconstruir seus lares e viver com dignidade.
Fonte:
g1
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