Heverton Lacerda: ‘Como um governante pode
dizer que não foi avisado se Porto Alegre é o berço do ambientalismo?
O episódio do podcast
De Poa, uma parceria do Sul21 com a Cubo Play, recebeu Heverton Lacerda, presidente
da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Ele conversou
com Luís Eduardo Gomes e Luciano Velleda sobre como o ambientalismo gaúcho
analisa as enchentes de maio no Rio Grande do Sul, a cobertura jornalística
sobre as questões ambientais relacionadas à tragédia e o papel do movimento
daqui para frente.
Lacerda explicou ao
longo do programa que a Agapan, criada em 1971, foi uma das primeiras entidades
ambientalistas do mundo e é uma das mais antigas em atividade até hoje. Também
pontua que, há pelo menos 30 anos, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (IPCC), vem alertando para as consequências de mudanças climáticas,
tendo identificado, inclusive, o Rio Grande do Sul como uma região bastante
suscetível aos impactos do aquecimento das temperaturas globais. Diante desse
contexto, ele pondera que não é possível que governantes do Rio Grande do Sul
digam que foram pegos de surpresa com a ocorrência de eventos climáticos
extremos.
“Quando começaram
aquelas enchentes, o pessoal começou a sair de casa e começou aquele horror
todo que a gente acompanhou no início, nós dissemos: ‘olha só, tudo que foi
dito há 50 anos, e pela ciência há mais de 30 anos, pelo menos, [está
acontecendo]’. Quando eu falo ciência, o meu pensamento está no IPCC, em
especial, o painel intergovernamental para mudanças climáticas. Então, tudo
isso já está muito bem desenhado e está se concretizando exatamente como o
painel dizia. O ano 2024 está no 6º relatório do IPCC que iria começar a ter
essas enchentes em 2024, no máximo em 2025. Cravou. Então, quando a gente via
isso, assim, governantes sabem o que está acontecendo. Não existe um governante
que não saiba. Prefeito pode não saber? Não sei. Como é que um prefeito não vai
saber o que estão falando sobre previsão climática? Não é previsão
meteorológica, previsão climática. Acontece, que no Estado do Rio Grande do
Sul, o governador não deu ouvido sequer para a previsão meteorológica que falou
das chuvas. Isso nas primeiras, no final do ano passado. Depois, ele se deu
conta do que aconteceu, correu, botou um colete lá, ele foi fazer as cenas.
Mais cena do que trabalha em si, na minha opinião. Bom, mas quando a gente diz:
‘olha, não foi avisado’. Não é da questão meteorológica, é não foi avisado das
questões climáticas. Ele pode dizer que não foi avisado das questões
climáticas? Alguém poderia não saber, se Porto Alegre é o berço do
ambientalismo mundial?”, questiona.
LEIA A ENTREVISTA:
• Heverton, como presidente da Agapan,
como é que tu viu o que aconteceu no Rio Grande do Sul, as enchentes de maio e
a até mesmo as do ano passado?
Heverton Lacerda: No
dia 27 de abril, quando o Agapan completou 53 anos. Nós fizemos viagem com os
associados até Rio Pardo, que é onde está enterrado o Lutzemberger, no Rincão
Gaia. O pessoal, às vezes, pensa que em Pantano Grande, mas é do lado de Pantano,
já na divisa ali com o Rio Pardo. E, ali, nós fomos no túmulo dele, fizemos uma
homenagem, cantamos parabéns para a Agapan. É um espaço que ele é dirigido por
uma das filhas do Lutz. E ali já estava começando a chuva. O tempo já estava
úmido. Nós voltamos, inclusive, com chuva para Porto Alegre. E quando começaram
aquelas enchentes, o pessoal começou a sair de casa e começou aquele horror
todo que a gente acompanhou no início, nós dissemos: ‘olha só, tudo que foi
dito há 50 anos, e pela ciência há mais de 30 anos, pelo menos, [está
acontecendo]’. Quando eu falo ciência, o meu pensamento está no IPCC, em
especial, o painel intergovernamental para mudanças climáticas. Então, tudo
isso já está muito bem desenhado e está se concretizando exatamente como o painel
dizia. O ano 2024 está no 6º relatório do IPCC que iria começar a ter essas
enchentes em 2024, no máximo em 2025. Cravou. Então, quando a gente via isso,
assim, governantes sabem o que está acontecendo. Não existe um governante que
não saiba. Prefeito pode não saber? Não sei. Como é que um prefeito não vai
saber o que estão falando sobre previsão climática? Não é previsão
meteorológica, previsão climática. Acontece, que no Estado do Rio Grande do
Sul, o governador não deu ouvido sequer para a previsão meteorológica que falou
das chuvas. Isso nas primeiras, no final do ano passado. Depois, ele se deu
conta do que aconteceu, correu, botou um colete lá, ele foi fazer as cenas.
Mais cena do que trabalha em si, na minha opinião. Bom, mas quando a gente diz:
‘olha, não foi avisado’. Não é da questão meteorológica, é não foi avisado das
questões climáticas. Ele pode dizer que não foi avisado das questões
climáticas? Alguém poderia não saber, se Porto Alegre é o berço do
ambientalismo mundial?
Eu sempre lembro para
o pessoal que não conhece bem o quanto é importante isso, nós temos, aqui no
Rio Grande do Sul, a figura do Henrique Roessler, que dá nome à Fepam, a
Fundação Estadual de Proteção Ambiental. No inicio dos anos 60, o Roessler
escrevia no jornal Correio do Povo, crônicas semanais sobre essa pauta
ambiental. Embora ele não fosse um jornalista, ele escrevia dentro de um
jornal. Já mostra o quanto a imprensa tem a importância nessa pauta. Depois do
Roessler, nós tivemos aqui a própria Agapan, em 1971, falando sobre essa pauta.
A Agapan é fundada em abril de 71, antes do Greenpeace, que foi fundado em
Vancouver, no Canadá , em setembro. Antes disso, o pessoal às vezes confunde um
pouquinho, tinha a WWF, que é de 1961, mas ela não era uma entidade
ambientalista. Era um fundo para a vida natural, depois eles foram mudando o
nome e se tornou uma grandes entidades que atua nessa área. Mas não era uma
entidade ambientalista.
• A Agapan é a primeira do Brasil?
Heverton Lacerda: O
próprio Roessler chegou a afundar uma UPN, a União Protetora da Natureza. O que
acontece? O Roessler era um contador, então para ele atuar, pediu uma permissão
para o governo central para atuar como fiscal de floresta. Aí, os políticos da
época contestaram isso, porque, se ele não era servidor público, não poderia
estar fazendo aquela fiscalização. Então, para isso, ele criou a UPN, que foi
uma primeira entidade. Mas ela só ficou atuante com ele, era ele durante a vida
dele. Enquanto uma entidade ambientalista como a gente conhece hoje do porte da
Agapan, sim, ela é a primeira, e a primeira em atividade até hoje.
• Heverton, é difícil explicar o que
aconteceu no Rio Grande do Sul se tu sair um pouco da superfície. O fácil é:
choveu muito e alagou. Mas, se a gente sair um pouquinho disto, explicar que a
chuva foi concentrada, questões que foram explicadas por especialistas em
programas anteriores, como é que uma entidade ambientalista faz essa discussão?
Como se tenta trazer um assunto que é complexo, que envolve vários fatores,
numa linguagem acessível?
Heverton Lacerda: Eu
vou dar um exemplo, num programa que teve Beto Moesch e o Francisco Milanes,
nós mesmos pegamos ali, quando a gente viu um ponto importante da explicação do
Milanes sobre a retirada das árvores da mata ciliar, na beira dos rios, a gente
pensou: ‘pô, esse ponto é importante’. Nós fizemos um corte por conta mesmo e
largando. Aquele corte ele bombou. Eu acho que os cortes são uma boa ferramenta
hoje em dia, para Tik Tok, inclusive. Por quê? Num bate-papo como esse, se nós
temos tempo para acompanhar, o ouvinte está nos assistindo, ele fica e
acompanha o nosso raciocínio. Se não tem tempo, tu precisa pegar um corte de um
ponto que nós falamos algo daqui até ali numa edição e largar aquele ponto para
a maioria da população, que hoje em dia está sempre carregado de conteúdo. A
gente tem que convir isso também.
A pauta ambiental é um
tema difícil. Se o tema é difícil, se o tema é ruim, é negativo, ele me traz
dor, eu não vou acompanhar por muito tempo uma coisa que eu não consigo
entender direito. Por exemplo, um projeto de lei que permite a construção de
barragens dentro de área de preservação permanente. O que é isso para o povo
leigo? A gente diz: ‘olha, isso aí vai destruir essa área de preservação
permanente, que já é uma pequena parte dentro da propriedade, e isso vai causar
futuramente um problema que vai mexer no microclima dessa região da
propriedade’. Várias propriedades com suas áreas de preservação permanente
impactadas a partir dessa lei que entrou para o Código Ambiental. Mas isso é
uma coisa complexa, como é que eu desenho isso? Eu faço um corte para deixar
isso aí em 10 segundos, 20 segundos e a pessoa entender?
• Infelizmente, agora, principalmente as
populações das margem do Rio Taquari e ali no Vale, a gente tem uma região do
Rio Grande do Sul que entende o que significa tu não ter a mata ciliar para
segurar a água e que, sem ela, encontra um campo limpo para correr e correr com
força. Agora, esse é um desafio da pauta ambiental, a comunicação. No caso da
nossa tragédia, pode ser talvez uma oportunidade para isso mudar um pouco?
Heverton Lacerda: Eu
acho que a oportunidade pode, sem dúvida nenhuma. Agora, nós vamos utilizar
essa oportunidade? Será que realmente a população vai se dar conta? Mata
ciliar. É verdade, você tem que explicar o que é mata ciliar, porque, quando a
gente ouvisse pela primeira vez, pode até entender que ciliar tem a ver com
cílios. Mas será que é isso mesmo? É borda de rio.
• Ninguém faz essa associação.
Heverton Lacerda:
Ninguém faz essa associação, você tem que explicar. Outra coisa que a gente tem
que pensar? Por que que eu preciso proteger a mata ciliar? Por que eu não posso
simplesmente tirar a mata ciliar que ela está atrapalhando a minha plantação de
soja? E o resto da população que não tem essa propriedade, que vive numa outra
cidade bem distante ou aqui em Porto Alegre e isso vai acontecer lá em Lajeado,
na volta do Taquari? Por que que eu tenho que me preocupar com a mata ciliar de
lá? Quando a gente começar a entender a complexidade das relações como os
indígenas compreendem, quando eles compreendem que tudo está interligado e que
nós somos parte da natureza, quando for dizer: ‘olha, quando tirar os cílios do
rio, é tirar os meus cílios’. Se eu te dissesse: ‘tira os teus cílios’.
Simplesmente, tira os teus cílios. Não, os meus cílios protegem a minha vida, a
minha visão. Então, a mata ciliar é tua mata ciliar também, dos teus rios. Nós
temos que perceber essa relação que a gente tem com a natureza, porque existe
um afastamento. Nós estamos cada vez mais em lugares asfaltados, os nossos
parques estão asfaltados, estão cimentados, estão concretados, querem tirar a
árvore para botar a roda gigante, querem tirar espaço de grama, o pouco espaço
que a gente tem, muitas pessoas moram em apartamento aqui em Porto Alegre, para
botar um estacionamento com concreto também. Então, essa relação com a natureza
é importante a gente voltar a ter isso, entender essa conexão que os indígenas
nunca perderam, por mais que eles estejam impactados, mas eles têm essa noção.
Isso eu acho que nós temos que trazer também, que o ambientalismo tenta trazer
para a nossa população. O Roessler já tinha essa conexão, embora fosse um homem
de origem alemã. Então, nós temos que manter essa conexão e aproveitar essa
oportunidade na dor e mudar um pouco o nosso estilo de vida. Não voltar ao
normal. Voltar a discutir coisas diferentes. Será que a gente vai usar o carro
da mesma forma que a gente usava antes? ‘Ah, mas o que tem a ver com o uso de
carro?’ Tem a ver, principalmente com a questão climática. A gente meio que
separa as questões ecológica e climática, mas uma está relacionada a outra. No
início da luta ambiental, era mais a questão ecológica, a questão dos rios, dos
impactos dos agrotóxicos, da poluição, fauna, flora, ainda não se falava muito
com a questão climática. Isso fica mais forte a partir dos anos 1990, a Eco 92.
Ali, começam também os relatórios a mostrar o quanto que esse aquecimento do
nível médio da temperatura da terra, que hoje está em 1,5º, o quanto que isso
impactaria. E esse era o número o número atual do IPCC, que, se chegasse a
1,5º, nós iríamos ter grandes enchentes, secas e aumento das atividades
extremas.
• Chegamos?
Heverton Lacerda:
Chegamos nisso. Estava previsto para 2024 a 2025. Demoramos 250, 260 anos, para
chegar nesse 1,5º acima da temperatura que é tida como a temperatura do
parâmetro, pré-Revolução Industrial, que seria o zero, o equilíbrio. Estamos
1,5º acima disso, na média. Para chegar a dois, talvez não leve 100 anos,
talvez não leve 20 anos. E as consequências podem aumentar muito, segundo o
próprio IPCC. As alterações não são no grau, é no décimo de grau. Não é 1,5 ou
2, é 1,6, 1,7, 1,8, 1,9, até chegar 2. E tem cenários apontados até para 3º,
que seria o pior. Já vi para 4º também, mas esse aí quase nem se fala, seria o
mundo entrar em colapso total e acabar com a vida no planeta. Mas, no dois,
seria muito pior do que a gente viu aqui e, no três, estaríamos falando
inclusive de níveis dos oceanos subindo. Como já disse o professor Carlos
Nobre, aqui em Porto Alegre, o Guaíba iria virar mar. Se nós vimos uma enchente
agora de rios e o problema que ela trouxe, imagina se nós chegarmos a ter uma
enchente de oceanos. É quase inimaginável a gente trazer um pensamento desses.
O que seria o oceano entrando lá pela Lagoa dos Patos e vindo água de lá pra
cá? Seria coisa de filme.
• Mas é uma possibilidade?
Heverton Lacerda —
Quem vai dizer que não.
Fonte: Sul 21
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