Governo
Bolsonaro bancou Comunidades Terapêuticas sem médicos e profissionais de saúde
mental
Ao
menos 288 comunidades terapêuticas receberam
recursos do governo federal entre 2019 e 2022, período que marca a gestão do
ex-presidente Jair Bolsonaro, para a
execução de projetos de recuperação de dependentes de álcool e demais drogas em todo o país. Do total, porém, mais de 14% não previam a
contratação de médicos, e outros 28% não citavam a inclusão de psicólogos ou
demais profissionais de saúde mental em seus quadros.
Dados
oficiais indicam que havia um déficit ainda maior de enfermeiros e
profissionais de enfermagem, ausentes em 67% dos projetos aprovados, na época,
pelo Ministério do Desenvolvimento Social. Profissionais de educação, como psicopedagogos, estiveram
presentes em apenas 17,65% das propostas, e apenas 36,33% incluíram a
contratação de assistentes sociais.
Os
dados foram levantados pela Frente Parlamentar da Saúde Mental, que atua
na Câmara dos Deputados, com base
nas respostas do governo a um requerimento de informação de autoria da sua
presidente, Tabata Amaral (PSB-SP),
e do coordenador de fiscalização da bancada, deputado Pastor Henrique Vieira (Psol-RJ).
Os resultados, apresentados pelo Ministério do Desenvolvimento Social, foram
compilados em uma plataforma pública, o Raio X das Comunidades Terapêuticas, com a íntegra dos contratos e termos de colaboração.
O
requerimento solicitou informações sobre os projetos aprovados desde 2017, mas
os contratos anteriores ao ano de 2019 foram perdidos, e um outro contrato não
estava em formato compatível com as ferramentas de cruzamento de dados. Com
isso, restam ainda 47 projetos de contratação de comunidades terapêuticas,
aprovados na gestão de Michel Temer, sem informações a respeito da formação de
suas equipes técnicas.
·
Comunidades
terapêuticas
Comunidades
terapêuticas são cerca de duas mil organizações privadas sem fins lucrativos,
estabelecidas espalhadas por todo o país com o objetivo de reinserir
dependentes químicos à sociedade. Elas não fazem parte do Sistema Único de
Saúde (SUS), e quase sempre a operação é coordenada por entidades de caráter
religioso: de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 82%
delas possuem orientação religiosa, sendo 47% evangélicas e 27% católicas.
Apesar
de não fazerem parte do SUS ou mesmo do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), as comunidades terapêuticas passaram a integrar o Sistema Nacional de
Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) em 2019, tanto por iniciativa de
decreto do governo Bolsonaro quanto de uma lei aprovada no mesmo ano. Com isso,
abriu-se uma janela para facilitar a contratação dessas empresas pela União,
facilitando repasses públicos.
Apesar
de contarem com forte presença dentro do Congresso Nacional, poderem receber
recursos públicos e contarem com proteções tributárias, as comunidades
terapêuticas têm com pouca fiscalização: não há um órgão específico destinado
para isso, com a atividade dispersa entre agências de fiscalização sanitária,
conselhos profissionais e ministérios públicos de cada nível da federação. O
próprio Ipea, vinculado ao Ministério do Planejamento, possui poucos estudos a
respeito de sua atuação, com o último levantamento datado de 2017.
Paralelamente,
essas instituições acumulam denúncias de violações de direitos humanos.
Em
2017, por exemplo, o Conselho Federal de Psicologia, o Ministério Público
Federal e outros órgãos de fiscalização pública divulgaram um relatório com os
dados de uma inspeção realizada em 28 comunidades terapêuticas em 10 diferentes
estados, incluindo toda a região Sudeste. Em 16 unidades, foram identificadas
violações como privação de sono, violência física a internos, uso irregular de
amarras, supressão de alimentação como instrumento punitivo e confinamento
disciplinar.
Também
há pouca transparência a respeito dos repasses públicos às comunidades
terapêuticas, que podem vir não apenas de qualquer nível do Poder Executivo,
mas também de emendas parlamentares. Apenas entre 2017 e 2020, o Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento, em parceria com a Conectas Direitos
Humanos, rastreou R$ 300 milhões em repasses da União às organizações, e outros
R$ 260 milhões em emendas, repasses estaduais e municipais.
·
Sem critério clínico
Coautor
do requerimento da Frente Parlamentar da Saúde Mental e principal articulador
da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta
Antimanicomial, o deputado Pastor Henrique Vieira considerou que a resposta do
Ministério do Desenvolvimento Social sobre os repasses a projetos com
limitações na equipe técnica “comprova que boa parte destas comunidades não tem
qualquer critério clínico ou condições de receber recursos públicos para cuidar
das pessoas que estão desenvolvendo dependência de álcool e outras drogas”.
Crítico
de longo prazo a atuação das comunidades terapêuticas, Vieira ressalta que a
frequência de projetos aprovados com deficiência de médicos, psicoterapetas,
enfermeiros e psicopedagogos deixa clara a necessidade não apenas de se
aumentar a fiscalização, mas também de interromper os repasses públicos
enquanto não forem adotados critérios mais rigorosos de aprovação em editais.
“O
financiamento público deve ir para os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs),
para as residências terapêuticas, para os centros de convivência, para os
mecanismos próprios do SUS. Nas comunidades terapêuticas, a realidade é de
falta de médicos e de psicólogos, além de incontáveis denúncias de internação
compulsória como pena alternativa ou mesmo privação de liberdade”, argumentou o
deputado.
·
Prática proibida
Além
do déficit de profissionais clínicos para os projetos de reabilitação, 37% dos
contratos preveem a adoção da laborterapia, que consiste no uso da prática
laboral como instrumento de tratamento de pacientes. Essa prática, segundo o
Conselho Federal de Psicologia, é condenada desde 2001 nos princípios da
reforma psiquiátrica.
“Isso
é um terreno fértil para o trabalho forçado e até mesmo análogo à escravidão.
Se você não tem controle, não tem base científica, não tem fiscalização, não
tem parâmetros clínicos ou mesmo equipes multiprofissionais, o que resta? Resta
um espaço vazio para todo tipo de arbitrariedade, tudo isso recebendo
financiamento público”, alertou Henrique Vieira.
O
deputado também chama atenção para elevada parcela de mais de 95% de projetos
que incluem “atividades espirituais” entre seus métodos de tratamento. Ele teme
que, na prática, se trate de participação forçada em cultos da entidade
religiosa responsável pelas respectivas comunidades. Ele próprio testemunhou um
caso do tipo.
“Eu
visitei uma comunidade terapêutica em Goiás, junto ao Mecanismo Nacional de
Combate e Prevenção à Tortura, e o que identificamos foi exatamente uma lógica
religiosa sendo imposta, os internos não podiam sequer assistir à Globo, só
podiam assistir à Record. Era bizarro”, relatou.
Henrique
Vieira não descarta a possibilidade de se adotar instrumentos ligados à
espiritualidade do paciente como parte dos instrumentos de tratamento à
dependência química. “Mas isso deve acontecer conforme a liberdade consciente
do indivíduo, com base em sua confissão pessoal, jamais como mecanismo
impositivo e obrigatório”, defendeu.
·
Repasses interrompidos
Na
resposta ao requerimento dos deputados, além de fornecer os contratos fechados
com comunidades terapêuticas entre 2019 e 2022, o Ministério do Desenvolvimento
Social ressaltou que o governo federal não realizou mais repasses para a
contratação das entidades de acolhimento em 2023. O Congresso em Foco acionou a
assessoria de imprensa do órgão questionando se a interrupção se manteve em
2024, bem como quais foram os critérios clínicos adotados para os contratos dos
anos anteriores. Até o momento, não houve resposta.
Mesmo
se mantida a interrupção pela atual gestão, Henrique Vieira teme que o problema
dos repasses públicos às comunidades terapêuticas ainda não esteja plenamente
resolvido. “Eles tem um grande lobby dentro do Congresso Nacional”, relembrou.
Essas entidades contam inclusive com uma frente parlamentar própria para a
defesa de seus interesses na Câmara.
O
deputado ainda pretende, por iniciativa individual, apresentar os dados
colhidos no relatório da Frente Parlamentar da Saúde Mental ao Ministério
Público Federal.
O
Congresso em Foco também questionou o assessor de comunicação do ex-presidente
Jair Bolsonaro, Fabio Wajngarten, sobre se tais repasses foram de conhecimento
do antigo chefe de Estado e de seus ministros durante sua gestão. Até o
momento, não houve resposta.
¨ INÉRCIA DE DESARMAMENTISTAS FORTALECEU A BANCADA DA BALA, REVELA
ESTUDO
Um
estudo publicado nesta segunda-feira (1º) pelo Instituto Fogo Cruzado
comparando os discursos de parlamentares no Congresso Nacional revelou uma
rápida mudança na posição majoritária sobre o comércio de armas nos últimos anos. Historicamente favorável a um maior
controle, o Legislativo rapidamente abraçou a agenda armamentista na última
década. De acordo com a coordenadora do levantamento, o temor é de que isso
aconteça não simplesmente por mudança na visão dos eleitores, mas
principalmente por abandono do debate pelos desarmamentistas, que entregaram
maior espaço ao discurso da chamada bancada da bala.
A
pesquisa compara a presença de discursos favoráveis ou contrários à facilitação
do comércio de armas em plenário, tanto na Câmara quanto no Senado, entre 1951
e 2023. O resultado foi a predominância de posições anti-armamento civil até as
eleições de 2014. Desde então, a agenda armamentista não apenas passou a
preponderar no discurso de parlamentares, como também nas decisões do
Legislativo.
O
estudo foi conduzido pela pesquisadora Terine Coelho, coordenadora de pesquisa
do Instituto Fogo Cruzado e doutora em ciências sociais pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Ela chama a atenção para a ausência de movimentação
por parte dos parlamentares em se articular contra a expansão da influência da
bancada da bala sobre o discurso dominante no Legislativo.
Apesar
de a virada de chave acontecer em 2015, a pesquisadora ressalta que o
enfraquecimento do bloco desarmamentista é mais antigo, vindo de uma tendência
de longo prazo. “Desde a aprovação do Estatuto do Desarmamento, em 2003, quem é
a favor de um menor controle sobre as armas começa a se organizar, tomar esse
espaço e defender melhor suas ideias, enquanto que quem defende o controle vai
saindo de cena”, relembrou.
O
levantamento aponta para a hipótese de queda do interesse de parlamentares
contrários ao armamento civil em continuar a discussão a partir de 2003. “O
grupo pró-controle demonstra ter dado o debate como pacificado. É a lógica de
‘agora temos um estatuto, está tudo certo, não precisamos mais falar sobre
isso’”, explicou. A inércia ficou especialmente visível durante o governo de
Jair Bolsonaro, diante da ausência de iniciativas energéticas por parte de
parlamentares para deter os decretos de facilitação do acesso aos registros de
Caçador, Atirador e Colecionador (CAC).
Paralelamente,
o lobby armamentista também ganhou força no Congresso Nacional. Terine Coelho
cita o crescimento da influência do Movimento Nacional Pró-Armas, fundado em
2020 pelo deputado Marcos Pollon (PL-MS),
que tem servido como plataforma para a organização e também para o
impulsionamento dos mandatos de parlamentares armamentistas.
“Na
última eleição, por exemplo, vimos pela primeira vez financiamento próprio para
estes parlamentares. O Pró-Armas se articulou e financiou algumas campanhas
para que seus próprios candidatos fossem eleitos, ao menos 23 parlamentares se
elegeram dessa forma”, relembrou.
Esse
crescimento do discurso armamentista e a consolidação da organização do bloco
pró-armas acaba surtindo efeito sobre as próprias decisões do Legislativo: um
exemplo disso se deu no último mês de maio, quando a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de decreto legislativo para retomar diversas
restrições implementadas no ano anterior pelo
Ministério da Justiça ao comércio de armas e munições para CACs.
Terine
Coelho ressalta o risco de, sem um bloco que faça frente a uma bancada da bala
organizada, o Congresso Nacional deixar de representar a vontade dos eleitores
ao tratar da legislação sobre armas. “O que propomos discutir é se isso
realmente é o que a população espera, ou se o Legislativo caminha nessa direção
simplesmente porque o outro lado abriu mão do debate”, ponderou.
Pesquisa
divulgada pelo instituto Datafolha em maio mostrou que 7 em cada 10 brasileiros
rejeitam a ideia de que armas trazem mais segurança para a população.
Questionados se “a sociedade brasileira seria mais segura se as pessoas
andassem armadas para se proteger da violência”, 72% dos entrevistados
discordaram da afirmação. Os que concordam com a ideia são apenas 26%.
Fonte:
Congresso em Foco
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