terça-feira, 2 de julho de 2024

A última cartada de Macron para tentar impedir que direita radical controle Parlamento na França

O partido Reunião Nacional (RN), de direita radical, conseguiu mais uma vitória — e está agora mais perto de alcançar seu objetivo de virar do avesso a política francesa.

Nos próximos dias, vai se falar muito sobre candidatos de centro e de esquerda que podem desistir da disputa no segundo turno, a fim de concentrar o voto anti-RN — e muita lamentação sobre o desaparecimento da antiga Frente Republicana (quando os partidos costumavam se unir para impedir a chegada da direita radical ao poder).

Mas seria necessária uma reviravolta de proporções monumentais para reverter a única conclusão que pode ser tirada deste primeiro turno da eleição: que o RN é agora indiscutivelmente a força política dominante na França.

No entanto, o que falta decidir nesta semana ainda é bastante significativo.

É a diferença entre um governo de direita radical com carta branca devido a uma maioria absoluta na Assembleia Nacional, e um governo de direita radical incapaz de fazer muita coisa porque a Assembleia está dividida.

No momento, as projeções indicam que o RN teria algo entre 260 e 310 assentos na Casa. Como seriam necessárias 289 cadeiras para garantir maioria absoluta, obviamente o resultado ainda está em aberto.

Para limitar os danos à sua causa, os centristas do presidente francês, Emmanuel Macron, e a aliança de esquerda Nova Frente Popular vão fazer um apelo aos seus eleitores para que votem estrategicamente no segundo turno, marcado para 7 de julho. Mesmo que seu candidato tenha sido eliminado da disputa, os eleitores serão instados a escolher quem quer que seja em seu círculo eleitoral que seja contra o RN.

Mas o problema com este tipo de ordem partidária é que cada vez menos gente escuta.

O desaparecimento da vergonha que acompanhava votar no RN foi um processo longo, mas que agora pode sem dúvida ser declarado encerrado.

A outra dificuldade para os oponentes do RN é o alto número de votações triangulares no segundo turno — em outras palavras, círculos eleitorais em que três candidatos, e não dois, vão se enfrentar no próximo domingo. Normalmente, um de centro, um de direita radical e um de esquerda.

A razão para o alto número de eleições triangulares é a elevada participação eleitoral, que por si só é resultado do alto risco que está em jogo.

Isso acontece também porque a campanha relâmpago tornou impossível para os partidos pequenos atuarem juntos, então a votação se concentrou nos três blocos.

Evidentemente, se houver três partidos competindo em um círculo eleitoral, será mais difícil concentrar o voto anti-RN. Em muitos lugares, haverá candidatos centristas ou de esquerda desistindo da disputa — mas isso está longe de acontecer em todos os círculos eleitorais.

Em geral, o país parece estar agora tomado por uma sensação de que a vitória da direita radical é inevitável. O que antes era visto como algo absurdo que nem sequer deveria ser contemplado, é agora um fato tangível à espreita.

Isto deprime e irrita muitas pessoas, especialmente nas grandes cidades, como Paris — onde a melancolia se abateu.

Em outros lugares, longe dos centros urbanos, as pessoas provavelmente pensam diferente.

·        As bandeiras de Le Pen e Bardella para a França

Os primeiros resultados de boca urna indicam que o partido Reunião Nacional, da direita radical, saiu na frente no primeiro turno das eleições parlamentares da França neste domingo (30/6).

Segundo uma pesquisa divulgada pela rede de TV France 2, o Reunião Nacional (RN) obteve 34% dos votos. Já a Nova Frente Popular, coligação de esquerda, teve 28,1% dos votos. A coligação liderada pelo presidente francês, Emmanuel Macron, ficou com 20,3%. Outros 10% dos eleitores votaram no partido Republicano.

Da forma como a votação é organizada na França, o primeiro turno apenas elimina os candidatos com menos votos em suas zonas eleitorais. E os candidatos que obtiveram mais de 50% dos votos com uma participação de pelo menos um quarto do eleitorado vencem automaticamente.

Os assentos restantes - assim como a composição final do Parlamento e o novo primeiro-ministro - só vão ser decididos após o segundo turno, no dia 7 de julho.

Mas o desenrolar do primeiro turno, mostram a força da direita radical e de Jordan Bardella.

O aliado de Marine Le Pen, de apenas 28 anos, é o atual presidente do Reagrupamento Nacional de direita radical e pode se tornar o novo primeiro-ministro.

Emmanuel Macron convocou o pleito de forma antecipada depois que o seu partido foi derrotado pelo Reagrupamento Nacional nas eleições para o Parlamento Europeu, que aconteceram no início de junho.

O partido da direita radical obteve 31,5% dos votos - mais do que o dobro do obtido pelo Renascimento, de Macron.

Mas a convocação de eleições antecipadas foi vista como uma aposta de alto risco político do presidente francês.

Se o Reunião Nacional obtiver a maioria no Parlamento, Macron será obrigado a escolher um primeiro-ministro da coligação vencedora, ou seja, ter um adversário político como seu premiê de governo.

Em casos como esse, o presidente costuma desempenhar um papel mais discreto. Ainda mantém poderes, como o comando das Forças Armadas e da política externa, mas tem menos controle sob as políticas internas, que são ditadas pelo partido com maioria absoluta no Parlamento.

·        Controle da imigração

O Reunião Nacional enfrenta a atual eleição com uma agenda que tem como principal foco o controle da imigração.

Segundo Alessio Scopelliti, pesquisador dos partidos da direita radical na Universidade de Bristol, a política está baseada em ideias como "a soberania nacional, a manutenção da lei e da ordem, o autoritarismo e o nativismo".

O nativismo mencionado pelo especialista é a política de promoção dos interesses de uma população nativa contra os dos imigrantes.

Além de facilitar a expulsão de estrangeiros que cometam crimes, o Reunião Nacional propõe restringir o chamado direito de solo, ou jus solis, que garante ao indivíduo o direito à nacionalidade do lugar onde nasceu.

Na França, são considerados nacionais aqueles que tem pelo menos um dos pais franceses. Filhos de estrangeiros que nasceram no país também têm direito à nacionalidade, mas só ganham aos 18 anos e desde que tenham vivido na França durante pelo menos cinco anos e desde os 11 anos.

Bardella pretende acabar com esse direito, de forma que apenas filhos de pais franceses sejam considerados cidadãos.

Essa grande mudança seria acompanhada pelo que o político chama de um corte "drástico" nos níveis de imigração. Para alcançar isso, ele propõe medidas como a retirada de residência de migrantes que não trabalham há mais de um ano, o fim dos vistos de reagrupamento familiar e a deportação sistemática de migrantes irregulares.

Outra promessa é erradicar ideologias islâmicas que ele classifica como "perigosas", com medidas para fechar mesquitas e deportar pessoas consideradas radicalizadas.

Ele disse também querer proibir o uso do hijab, o véu islâmico, em público.

A lei francesa atual já proíbe o uso de véus nas escolas públicas e proíbe o uso de vestimentas que cobrem o rosto inteiro, como a burca, em público. O governo de Macron também proibiu no ano passado o uso nas escolas da abaya, um vestido que cobre todo o corpo muito usado por mulheres muçulmanas.

Em uma entrevista concedida ao jornal Financial Times, Bardella chegou a dizer que pretende travar uma "batalha cultural" nessa área.

"O véu não é desejável na sociedade francesa", disse. "A batalha é em parte legislativa, mas é também uma batalha cultural que precisa de ser travada."

·        Melhorar a França para os franceses

Na área econômica, a atenção está em aumentar o apoio para quem o partido chama de "verdadeiros franceses", ou seja, os não imigrantes.

"Bardella e Le Pen apoiam um tipo de protecionismo econômico que defenda as pequenas e médias empresas francesas", diz Alessio Scopelliti.

O pesquisador afirma ainda que o partido tem impulsionado ideias que são geralmente associadas à esquerda, como a defesa dos direitos e interesses da classe trabalhadora.

"Eles defendem a expansão do bem-estar social, mas apenas para os nativos franceses brancos, excluindo automaticamente todos os outros grupos étnicos."

Bardella prometeu defender o poder de compra da população cortando impostos sobre combustíveis, gás e eletricidade. Também propõe cortes de impostos para as empresas, se elas aumentarem os salários dos funcionários de baixa e média renda em até 10%.

Ele também quer reverter a reforma previdenciária aprovada por Macron, que aumentou a idade de aposentadoria de 62 para 64 anos.

Críticos apontam que todas essas promessas de campanha devem custar bilhões a mais aos cofres públicos. Mas Bardella disse que financiaria as medidas cortando, entre aspas, “despesas que incentivam a imigração legal e ilegal” e tapando o que chama de “brechas fiscais”.

O político também é bastante crítico à União Europeia. Mas seu partido aos poucos abandona a proposta de uma saída definitiva do bloco e caminha para a defesa de reformas estruturais, feitas de dentro da organização.

Depois que as consequências econômicas e até sociais do Brexit [a saída do Reino Unido da União Europeia] se tornaram mais claras, muitos partidos de direita radical passaram a apostar mais em um discurso que foca em mudar a União Europeia de dentro", diz Alessio Scopelliti, da Universidade de Bristol.

"Eles falam em proporcionar o que chamam de um verdadeiro tipo de integração europeia, em que o povo europeu colabora entre si, mas cada um vive separado nos em seu país, com as suas próprias identidades e com as suas próprias economias."

Em política externa, o grande tema das eleições é o envio de ajuda econômica à Ucrânia pelos aliados europeus.

Ao longo dos anos, o Reunião Nacional foi acusado de manter uma relação próxima com a Rússia e com Vladimir Putin.

Mas Bardella tem se esforçado para deixar explícito seu apoio à Ucrânia, embora rejeite a possibilidade de enviar mísseis de longo alcance a Kiev ou tropas francesas - algo que Macron chegou a aventar.

O partido de Bardella também se opõe à adesão da Ucrânia à União Europeia e à Otan.

Todas essas políticas, junto com a apatia dos eleitores de centro, ampliaram o apoio a Bardella, especialmente no interior da França.

Segundo especialistas, os eleitores em áreas rurais e menos industrializadas podem ser cruciais para o desempenho da direita radical nessas eleições.

"Estas zonas rurais são atingidas pelo desemprego e pela desindustrialização. E a população é muitas vezes menos instruída e enfrenta dificuldades socioprofissionais. Nesta região, a infelicidade é mais aparente e a oportunidade é improvável, por isso o RN alcança um sucesso maior", explica Vincent Lebrou.

·        Mesmas ideias, novo tom

Bardella teve uma ascensão meteórica na ultra direita francesa: de desempregado que abandonou os estudos nos subúrbios de Paris, passou a protegido de Marine Le Pen e presidente do partido.

Segundo Cécile Alduy, professora da Universidade Stanford, ele defende as mesmas mensagens e ideias de Marine Le Pen e o restante da legenda. Mas o faz de uma maneira mais polida e calma, que ajuda o partido a se afastar de seu passado controverso.

"Bardella fala de uma forma tranquila e respeitosa. Não tem aquele sarcasmo ou ironia que até Marine Le Pen usa contra jornalistas às vezes. Nunca levanta a voz, nunca zomba", diz.

"E isso é uma vantagem para quem representa o Reunião Nacional, porque a história do partido é ter alguém como Jean-Marie Le Pen que vociferava na TV e agredia adversários."

"Mas eles mantêm as mesmas questões-chave, a mesma retórica e os mesmos argumentos. É Marine Le Pen quem elabora a agenda e a plataforma e indica para ele sobre o que falar. Ele vocaliza ela, mas com um tom mais baixo e uma boa fachada."

Jean-Marie Le Pen, pai de Marine, foi o primeiro presidente do partido da direita radical e ficou à frente da legenda até 2011, quando foi sucedido pela filha.

O partido, que antes se chamava Frente Nacional, nasceu em 1972 e desde o início se apoia no nacionalismo francês e no controle da imigração. Também ficou marcado por seu passado racista e antissemita.

A liderança de Jean-Marie Le Pen no partido foi marcada por inúmeras polêmicas. Ele foi condenado múltiplas vezes por comentários xenofóbicos, antissemitas e homofóbicos.

Depois que Marine assumiu o partido, seu pai foi expulso em 2015 da legenda após afirmar que as câmaras de gás foram um "detalhe" da história da Segunda Guerra Mundial.

Poucos dias depois, em entrevista a um jornal da direita radical, ele assegurou que era preciso "salvar a Europa boreal e o mundo branco". Ele defendeu ainda o marechal Philippe Pétain, chefe de Estado francês durante a ocupação e artífice da colaboração com a Alemanha nazista.

Em 2018, Marine Le Pen comandou uma renovação do partido em uma tentativa de se livrar de seu passado e alcançar novos eleitores.

Mas críticos dizem que esse processo foi pouco além da mudança de nome do partido, já que muitos dos ideais permaneceram o mesmo – seus líderes teriam se tornado apenas menos vocais e agressivos sobre algumas questões.

Por tudo isso, Marine Le Pen continua marcada pelas opiniões radicais que já manifestou em temas como imigração, nacionalismo e islã.

Por isso, segundo especialistas, a escolha de Jordan Bardella como nova cara do partido não foi por acaso.

Deputado no Parlamento Europeu desde 2019, o jovem político é neto de avós italianos e tem uma bisavó argelina – o que é enfatizado pela sua campanha em mais uma tentativa de se afastar do passado racista.

Bardella diz ainda que crescer em uma comunidade desfavorecida e conviver com o flagelo das drogas, da pobreza, da ilegalidade e da imigração descontrolada o fez acreditar que apenas a direita radical tinha a resposta.

E segundo Pascal Humeau, profissional de media training que trabalhou com Bardella durante quatro anos, Le Pen rapidamente percebeu como o histórico do jovem poderia ser útil ao partido.

Mas Humeau está longe de tecer elogios a Bardella. Os dois se afastaram após uma discussão por dinheiro, então sua opinião precisa ser entendida com cautela. Hoje ele descreve o líder do Reunião Nacional como um "produto de marketing".

O francês tem mais de 1,7 milhões de seguidores no TikTok - e parte de seu sucesso atual é atribuído à sua capacidade de atrair e fidelizar eleitores pelas redes sociais.

"Ele é um político que mobiliza as redes sociais e faz isso de forma muito confortável. Isso é algo que contribuiu de forma significativa para o perfil dele. Você não sabe exatamente o que ele está propondo, mas o vê em todo lugar", explica Vincent Lebrou, professor da Universidade de Franche-Comté.

 

Fonte: BBC News Paris

 

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