Fornecedora da Ambev e Raízen quer expulsar
43 famílias para plantar cana em Itambé (PE)
EM ITAMBÉ (PE), 43
famílias vivem na iminência de serem expulsas da comunidade Engenho São Bento,
área onde vivem e produzem há quase quatro décadas. A Usina São José, uma das
maiores produtoras de açúcar e etanol do Nordeste e fornecedora de empresas como
Ambev, Raízen e Shell, pretende expandir sua produção de cana-de-açúcar no
local.
O terreno de 340
hectares ocupado pelas famílias na Zona da Mata Norte de Pernambuco foi
arrematado em leilão judicial em junho de 2022. A área foi colocada à venda com
o intuito de regularizar os débitos trabalhistas da então dona do Engenho São
Bento, a Usina Maravilhas, que declarou falência em 2012 e deixou centenas de
trabalhadores desamparados. Ao menos 27 das 43 famílias do Engenho São Bento
são compostas por ex-trabalhadores da Maravilhas. Destes, 17 ainda não foram
indenizados.
Desde janeiro de 2023,
ao menos seis audiências de conciliação foram realizadas na tentativa de buscar
soluções ao conflito fundiário instalado no Engenho São Bento. Além de
representantes das famílias, órgãos como a Comissão Pastoral da Terra, o
Ministério Público de Pernambuco e a Defensoria Pública de Pernambuco
acompanham o caso.
A última audiência
judicial foi realizada no dia 2 de julho. Representantes da São José e da 3R
Empreendimentos e Participações Societárias, empresa do mesmo grupo e
responsável formal pela aquisição da área, apresentou sua mais recente proposta
aos moradores: mantê-los em suas casas no meio do canavial da empresa,
“mediante construção de cinturão a evidenciar área dos moradores e o que seria
de cultivo da usina”, indenizá-los pelo valor de R$ 1 mil por hectare pelas
áreas cultivadas, que passariam a ser utilizadas exclusivamente para o cultivo
da cana pela usina, e contratá-los para compor a mão de obra.
Além do valor
oferecido pela usina, considerado baixo, os moradores alegam que a empresa
desconsidera parte das áreas cultivadas, que estariam em período de descanso
quando o oficial da Justiça fez a avaliação do imóvel. “Todo o canto tem roça
plantada. Eu nasci e me criei aqui, e não quero sair do meu canto, não”, afirma
Dária Fernandes de Oliveira Santos, de 65 anos.
“Uma solução
consensual não foi possível porque a empresa nunca se disponibilizou realmente
em chegar a um acordo”, avalia Leonardo Caribé, promotor do Ministério Público
de Pernambuco, que acompanha o caso. “O único acordo que eles entendem viável
seria indenizar os trabalhadores para que eles deixem a terra”.
Apesar das diversas
tentativas de contato, a Usina São José não respondeu os questionamentos
enviados pela Repórter Brasil. O espaço segue aberto para manifestações
futuras.
·
Tratores, seguranças e advogados
O Engenho São Bento,
que tinha avaliação inicial de R$ 6,7 milhões no leilão, acabou sendo
arrematado por R$ 2,7 milhões. A presença de famílias e casas na área é
descrita nos documentos do leilão judicial. “Ou seja, a São José, através da
3R, comprou essas terras mesmo sabendo que tinha moradores”, ressalta José
Plácido da Silva Junior, coordenador da Comissão Pastoral da Terra no Nordeste,
entidade que atua na defesa das famílias do local.
Em janeiro de 2023,
seguranças, advogados e tratores entraram na área para tentar ocupar o terreno
que foi comprado pela usina sucroalcooleira. “Aqui era uma tranquilidade. De um
dia para o outro, veio esse pessoal todo. Trouxeram até um trator de esteira
para derrubar as casas. Foi uma coisa muito triste, mas o povo se uniu”,
explica Dária Santos, que vive na região há 40 anos. Após a tentativa de
retirada das famílias, os integrantes do Engenho São Bento se organizam para
impedir sua expulsão da terra.
“Eles devem ter
pensado que, como o povo do São Bento não tem advogado, não paga sindicato, não
tem Sem Terra, é um povo evangélico que não faz confusão, seria fácil chegar
aqui com trator e derrubar as casas. Quando eles chegaram, a gente não tinha
nem advogado. Dias depois, na primeira audiência no Fórum de Itambé, estávamos
com seis advogados para defender a gente”, explica Valdeci Vicente dos Santos,
esposo de Dária, que foi o primeiro agricultor a receber o documento do oficial
da Justiça sobre a tentativa de retirada das famílias.
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Fornecedora de gigantes do setor
sucroenergético
Uma das maiores
processadoras de cana do Nordeste, a São José é fornecedora de empresas como
Ambev, Raízen, e dos postos das bandeiras Shell e Petrobras – este último administrado pela Vibra. Em 2023,
45% do faturamento da usina se concentrou nas vendas para Ambev e Raízen,
segundo demonstrações financeiras publicadas pela empresa.
Menos conhecida que a
Ambev, maior fabricante e distribuidora de bebidas do Brasil, a Raízen é uma
gigante do setor de biocombustíveis. Na safra 2022/2023, a companhia, criada a
partir de uma joint venture entre a petroleira americana Shell
e a brasileira Cosan, foi responsável por 30% do comércio global de etanol. A empresa também é responsável pela distribuição e venda de
combustíveis em postos da marca Shell no Brasil e na Argentina. Além do
abastecimento de automóveis, o combustível produzido pela Raízen é vendido para
companhias aéreas.
O setor da aviação vem
aplicando sua busca por combustíveis mais sustentáveis. Em janeiro de 2024, o
então presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, se reuniu com
representantes de usinas do Nordeste para discutir a produção de
combustível de avião (SAF) a partir do etanol produzido pela indústria
sucroalcooleira da região.
·
Políticas socioambientais para fornecedores
Todas as companhias
mencionadas possuem extensos materiais sobre políticas socioambientais e
critérios que devem ser seguidos por fornecedores em relação ao respeito aos
direitos humanos e estabelecimento de diálogo com comunidades impactadas por
seus empreendimentos.
Em seu Código de Conduta para Fornecedores, a Raízen afirma esperar dos seus parceiros de negócios a
“manutenção de um diálogo pertinente e adequado com as comunidades da área de
influência de sua operação” e que “se preocupa com ações que visem a
identificação, monitoramento e mitigação dos possíveis impactos sociais junto a
esse público”.
A Ambev, por sua vez,
é ainda mais clara em relação a conflitos fundiários. Em sua Política Global de Fornecimento Responsável, a companhia afirma que “os Parceiros de Negócios devem
conduzir a devida análise e diligência em torno dos direitos e títulos
fundiários durante o desenvolvimento de novas oportunidades de negócios” e que
devem “buscar consentimento livre, prévio e esclarecido, e dispor de um
mecanismo de reclamação para resolver quaisquer disputas sobre títulos
fundiários”.
No Guia de Conduta Ética para Fornecedores, a Petrobras afirma que seus fornecedores se comprometem a
“comunicar às comunidades do entorno as atividades que impactem seu cotidiano,
de forma a minimizar impactos/risco” e os encoraja a “estabelecer
relacionamento com as comunidades situadas na área de abrangência, com base no
diálogo contínuo e transparente”.
Em seu Código de Conduta para Fornecedores, a Shell afirma “reconhecer que o diálogo e o envolvimento
regular com as partes interessadas são essenciais” e pede que seus
fornecedores, nas interações com funcionários, parceiros comerciais e
comunidades locais, “procure ouvir e responder a eles de forma honesta e
responsável”.
Já o Manual de Fornecedores da Vibra reforça que a empresa e seus fornecedores devem “zelar
pela segurança das comunidades” onde atuam e “mantê-las informadas sobre
impactos e/ou riscos eventualmente decorrentes” das suas atividades.
A Repórter Brasil apresentou o conflito fundiário do Engenho São Bento às
empresas e as questionou sobre seus critérios para seleção de fornecedores.
A Ambev afirmou que
“não é parte no caso” e que ainda não há decisões finais sobre o processo.
“Caso seja comprovado algum fato que não condiz com as nossas políticas,
tomaremos as ações pertinentes”, diz o posicionamento da empresa.
A Raízen afirmou que
“acompanha processos judiciais e avalia constantemente a situação de seus
parceiros de acordo com o seu código de conduta de fornecedores” e que “reforça
que toma suas decisões de negócio pautadas pela ética, integridade e compliance”.
Procurada, a Shell
afirmou que o assunto deveria ser tratado junto à Raízen, empresa licenciada da
marca Shell e responsável pelos postos e distribuição de combustíveis.
Os postos da bandeira
Petrobras são administrados pela Vibra, empresa
de capital aberto. Procurada, a empresa afirmou que tem uma política rigorosa
quanto à violação de direitos humanos. “Tendo em vista as notícias divulgadas,
vamos apurar os fatos, e havendo indícios de potenciais irregularidades que
violem nossos princípios e preceitos de integridade empresarial e respeito à
vida humana, tornando crítica a relação contratual, o compliance em
conjunto à governança da companhia tomarão as medidas previstas.”
·
Usina possui principal selo de “boas
práticas” do setor
O histórico de
ocupação do Engenho São Bento é descrito em um relatório produzido pelo
Instituto de Terras de Pernambuco (Iterpe) em março de 2023. Segundo o laudo
técnico, as 43 famílias possuem entre 1 e 9 hectares destinadas ao cultivo de
produtos como macaxeira, milho, feijão e inhame. Além de plantarem para consumo
próprio, as famílias comercializam a produção em feiras locais e para
compradores regionais. A equipe do Iterpe realizou o levantamento dos cultivos
de todas as famílias, registrando que a área efetivamente plantada pelos
moradores é maior do que o considerado pela Justiça no processo – diferença
essa que altera o montante da indenização aos ocupantes do Engenho São
Bento.
A Usina São José
questiona a autenticidade do laudo e considera a disparidade entre área
plantada e a considerada pela Justiça como principal fator. “O relatório do
Iterpe foi produzido após uma reunião de conciliação com o Ministério Público,
e a usina concordou com a produção desse laudo. Agora, quando o laudo saiu
desfavorável para ela, a usina diz que o laudo é fraudulento, que não é
isento”, diz Jayme Asfora, presidente da Comissão Estadual de Acompanhamento
dos Conflitos Agrários de Pernambuco e secretário executivo de direitos humanos
da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco.
Apesar do conflito
fundiário, a São José segue com o selo da Bonsucro (sigla para Better Sugarcane
Initiative), organização com sede em Londres e detentora do principal programa
de certificação de cana-de-açúcar do mundo. Em seus materiais de divulgação da certificação, a Bonsucro afirma que “ao obter um certificado, você poderá
melhorar sua imagem, atingir metas de compras sustentáveis e estabelecer
parcerias para resolver questões de sustentabilidade conjuntamente”.
A Bonsucro no Brasil
foi apresentada ao problema fundiário envolvendo o Engenho São Bento pela
organização sem fins lucrativos Oxfam Brasil, que apontou violações, pela Usina
São José, aos critérios de certificação e Código de Conduta da entidade.
Em resposta
à Repórter Brasil, a Bonsucro afirmou que a Usina São José é certificada
desde 2017, sendo recertificada em fevereiro de 2023, e que “a fazenda onde
ocorre o atual caso fundiário não foi incluída no escopo da certificação”. Uma
nova auditoria – dessa vez para manutenção do selo – foi realizada em março
deste ano. Na ocasião, uma avaliação de risco socioambiental para todas as
áreas fora do escopo de certificação foi realizada pela Bonsucro. Os temas, no
entanto, se restringiram aos seguintes temas: trabalho infantil, trabalho
forçado, quantidade e qualidade da água e conversão de ecossistemas
naturais.
“Desde que soubemos do
caso da Usina São José no ano passado por meio da Oxfam Brasil, estivemos
conduzindo diversas reuniões com a Oxfam Brasil e com a Usina São José para
entender melhor a situação e o que está sendo feito para resolver o problema.
Em todas as ocasiões, a equipe da Usina São José demonstrou disposição em
colaborar com a Bonsucro e com todas as partes interessadas envolvidas no caso
fundiário”, disse a Bonsucro.
“Embora a Usina São
José tenha políticas adequadas de devida diligência para detectar tais riscos,
uma vez que adquiriu a área através de leilão governamental, eles erroneamente
acreditaram que não precisavam examinar esta transação do ponto de vista de direitos
humanos e agora estão trabalhando para remediar esta situação”, completa a
organização.
Para a Oxfam Brasil,
no entanto, a Usina São José não vem respondendo à comunidade ou aos atores da
sociedade civil sobre o caso. “O esforço de diálogo da empresa acontece apenas
judicialmente”, avalia Gustavo Ferroni, Coordenador de Justiça Rural e Desenvolvimento
da instituição. “Também avaliamos que a usina não fez nenhuma devida
diligência. Mesmo sabendo que havia famílias na área, a usina não se preocupou
com as consequências”, pontua Ferroni.
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Histórico de falências e ocupações
O conflito fundiário
no Engenho São Bento não é um caso isolado em Pernambuco. Áreas como Barro
Branco, Fervedouro, Engenho Una e Batateiros são apenas alguns exemplos de
antigos engenhos abandonados por usinas canavieiras em bancarrota. Depois das
falências, essas áreas passaram a ser cultivadas por ex-trabalhadores e outros
posseiros.
Produtora e
processadora de cana-de-açúcar, a Usina Maravilhas se instalou em Itambé nos
anos 1980, durante um período de expansão da produção de etanol no Brasil por
meio de incentivos governamentais do Programa Nacional do Álcool, o Proálcool.
Em 2012, a companhia entrou em falência, demitindo dezenas de
trabalhadores.
“Em muitos engenhos,
as famílias estão lá há três, quatro gerações. A usina faliu, não pagou
direitos trabalhistas, não ofereceu trabalho, e essas famílias passaram a
cultivar nas terras da usina”, explica José Plácido, da CPT Nordeste. “São
usinas que faliram há 10, 20 anos. Em alguns casos, as terras das usinas foram
incorporadas [por outros setores], e se deu um processo de expulsão das
famílias”.
No estado, cerca de 40
usinas estavam em funcionamento na década de 1980. “As que dão problemas, que
deixam conflitos fundiários, são as que foram à falência. As usinas em operação
em Pernambuco, que são cerca de 10, não possuem conflitos fundiários em suas
terras. Possuem, em geral, uma relação tranquila com a comunidade no entorno”,
avalia Asfora, da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de PE. “É um
problema, portanto, localizado em um número minoritário de empresas do setor. É
benéfico para todos que exista paz no campo. Além disso, há terra suficiente
para todo mundo”, completa.
Iterpe e Incra estudam
a possibilidade de incluir o Engenho São Bento em programas de reforma agrária.
Na audiência do dia 2 de julho, no entanto, a São José já declinou da proposta
apresentada pelo órgão federal de iniciar estudos para a compra do Engenho São
Bento para destinação à reforma agrária.
Fonte: Repórter Brasil
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