terça-feira, 2 de julho de 2024

Fernando Nogueira da Costa: ‘O modelo social-democrata’

A social-democracia não exige necessariamente a estatização completa dos meios de produção, como é comum em sistemas socialistas mais radicais. Em vez disso, a social-democracia se baseia em um sistema econômico misto por combinar elementos de mercado com uma ampla rede de proteção social e intervenção estatal para garantir o bem-estar da população.

Entre algumas características do modelo social-democrata, em relação à propriedade dos meios de produção, encontram-se as seguintes.

Constitui uma economia mista, porque respeita a propriedade privada como um avanço social diante da exclusiva posse da riqueza, seja da nobreza na Era das Monarquias Absolutista, seja do Estado na Era do Mercantilismo. A maioria dos meios de produção permanece nas mãos de empresas privadas e elas operam com base no lucro e na competição de mercado.

Entretanto, o governo desempenha um papel ativo na regulação da economia, implementando políticas para corrigir falhas de mercado, promover a igualdade de oportunidades e proteger os direitos dos trabalhadores e consumidores.

Há uma estatização seletiva. Em alguns países, setores considerados estratégicos para o interesse público, como energia, transporte, saúde e educação, são parcial ou plenamente estatizados para garantir acesso universal e equitativo a esses serviços.

O Estado mantém participação acionária ou controle majoritário em empresas públicas prestadoras de serviços essenciais ou detentoras de monopólios estratégicos como a extração e a comercialização de petróleo. Mas também podem existir empresas privadas concorrentes nesses setores.

O mais característico da social-democracia é promover uma ampla rede de proteção social. Inclui seguro-desemprego, saúde pública, educação gratuita, aposentadoria e outros benefícios sociais financiados pelo Estado de Bem-Estar.

Políticas trabalhistas, como salário mínimo, limites de horas de trabalho, licenças parentais e proteção contra demissões injustas são estabelecidas. Protegem os direitos dos trabalhadores e garantem condições de trabalho dignas.

Há regulação do mercado de trabalho e redistribuição de renda via política fiscal. Impostos progressivos são aplicados nas faixas de renda mais elevadas, para financiar programas sociais e reduzir a desigualdade de renda, garantindo uma distribuição mais equitativa da riqueza e oportunidades.

A Autoridade Monetária implementa regulamentações para controlar o sistema financeiro. Previne abusos, garante a estabilidade econômica e o acesso ao crédito para indivíduos e empresas.

Embora a social-democracia possa envolver alguma estatização seletiva de setores estratégicos e uma forte intervenção estatal na economia, ela não faz a estatização completa dos meios de produção como fazem os Estado autodenominados de socialistas. Em vez disso, a social-democracia busca um equilíbrio entre o mercado e o Estado, com o objetivo de garantir o bem-estar da população, promover a igualdade de oportunidades e mitigar as desigualdades sociais e econômicas.

É importante observar: embora as ditas Revoluções Socialistas tenham tido participação popular, as conquistas sociais não foram tão intensas como nos países nórdicos com socialdemocracia. Claro, é necessário “dar o desconto” pelo diferencial crucial entre os tamanhos das populações, embora a de Cuba se assemelhe à da Suécia. Mas a Europa é melhor vizinha diante os Estados Unidos…

A Revolução Russa (1917) foi impulsionada por protestos de operários e a deserção de soldados do exército czarista. Conselhos de trabalhadores, soldados e camponeses foram estabelecidos em Sovietes e desempenharam um papel crucial na organização da revolução. Os camponeses participaram ativamente nas redistribuições de terras e nas revoltas locais contra os proprietários de terras. Ao fim e ao cabo, predominou a nomenclatura do PC da URSS.

O Exército Popular de Libertação na Revolução Chinesa (1949) foi composto majoritariamente por camponeses, liderados pelo Partido Comunista Chinês. Mobilizaram o apoio camponês através da redistribuição de terras e da luta contra os senhores feudais. Depois, passaram por fome e mortandade.

O Movimento 26 de Julho da Revolução Cubana (1959) incluía estudantes, trabalhadores e camponeses. Todos se juntaram às guerrilhas lideradas por Fidel Castro e Che Guevara. Após a revolução, políticas de alfabetização e redistribuição de terras mobilizaram o apoio popular. Hoje, todos passam fome, exceto os militares da ex-FAR (Forças Armadas Revolucionárias), dominantes da economia.

“As FAR fazem parte da estrutura de poder de Cuba, constituindo um pilar central da estabilidade e continuidade do governo dito socialista. A Revolução Cubana não produziu um governo democrático no qual os conselhos de trabalhadores, camponeses e combatentes fizessem parte das decisões políticas. Ao contrário, criou um Estado burocrático, centralizado e controlador, sufocando as liberdades populares por meio de repressão e exílio, em nome do dogma do socialismo”.

Laura Tedesco e Rut Diamint, autoras dessa sentença em “Forças Armadas Cubanas: Os Negócios são a Pátria”, capítulo do livro Entre a Utopia e o Cansaço: Pensar Cuba na Atualidade (2024), não a caracterizam como uma ditadura militar só porque a forte concentração de poder está registrada no Partido Comunista.

Isto apesar de comentarem: “o país é a pior versão de esquerda das ditaduras militares latino-americanas”. O controle social em Cuba é capilar, detalhado em cada quarteirão, através dos Comitês de Defesa da Revolução, fundados em 1960, onde militantes do oficialismo denunciam imediatamente quaisquer dissidências.

Com a perda do monopólio da informação pelo governo, graças às redes sociais (embora com acesso à internet muito precário), as novas gerações crescidas em regime de escassez, criticam a oligarquia burocrático-militar governante do país. Tem condições de vida distantes do restante do povo.

As FAR controlam o turismo, o mercado de câmbio, o transporte aéreo e a mineração. O GAESA (Grupo de Administración Empresarial S.A.), dirigido por um general (ex-genro de Raúl Castro, irmão de Fidel), tem mais de 800 negócios, responsáveis por mais da metade da receita do país, grande parte desses recursos investida no paraíso fiscal do Panamá para fugir do embargo estadunidense. Estima-se as FAR controlarem 844 empresas, entre as quais, as de turismo, comércio, lojas arrecadadoras de divisas estrangeiras, comunicações e produção agropecuária.

Em outro capítulo, “Por que irromperam protestos em Cuba”, Jessica Dominguez Delgado informa: “a situação econômica precária de um número cada vez maior de pessoas, a dolarização da economia e o difícil acesso a alimentos e produtos de primeira necessidade – comercializados desde o fim de 2019 em moedas estrangeiras – aumentaram as desigualdades e foram alguns dos principais motivos do mal-estar cívico em 2021”.

Apesar de todo o esforço de comunicação para desacreditar as ações dissidentes como “contrarrevolucionárias”, a carestia (alimentar e de energia elétrica) e a censura aos jovens críticos criaram um terreno fértil em condições naturais para uma convulsão social. “Embora o governo cubano não reconheça sua legitimidade e prefira falar de ‘um golpe promovido e orquestrado pelos Estados Unidos’, ele tem a responsabilidade pelas causas acumuladas provocadoras dos protestos”.

A formalização do câmbio paralelo para compra de dólares não estancou a desvalorização do peso no mercado e provocou uma hiperinflação em Cuba desde o fim do sistema bi monetário (peso e dólar) no início de 2021. Praticamente todas as mercadorias do consumo cotidiano tiveram subida de preços em torno de 1.200%. O salário-mínimo, alçado a 2.100 pesos pela reforma econômica, equivalente em 2021 a 87,5 dólares, passou a valer com o novo câmbio apenas 17,5 dólares. Logo, a população cubana com renda em moeda nacional empobreceu, perdendo drasticamente poder de compra.

A crise alimentar e econômica em Cuba agravou-se ao ser forçada a realização do consumo pago em divisas estrangeiras e com mercado paralelo superprecificado. Para obtenção de dólares e remetê-los às famílias, há emigração massiva para o exterior, principalmente de jovens e mulheres para os Estados Unidos, com desagregação dos núcleos familiares. Afinal, ficar na ilha significa passar fome, perder horas do dia em filas e sofrer longos apagões de energia. Dizem: basta!

 

¨      Brasil – sociedade autoritária. Por Fernando Lionel Quiroga

Cabe uma paráfrase sociológica à pergunta feita por Nietzsche em Ecce Homo, “Como alguém se torna o que é” que, reformulada, consistiria na questão: como uma sociedade se torna o que é? A esta questão, segue-se outra: Por quê, no Brasil, resiste uma tradição intensamente autoritária?

Tais questões não oferecem respostas prontas, conhecimentos acabados e embalados, prontos para o uso. E a dificuldade reside no caráter ambíguo de conceitos-chave para a construção das respostas: o modo pelo qual nos colocamos diante de noções abertas como “democracia”, “direitos humanos”, “sociedade”, “justiça”, “respeito” etc. direciona nosso olhar, ora para um lado, ora para outro.

Embora possa-se admitir algo de imanente na ideia de democracia, de justiça etc. restam os usos sociais e o corpus representacional acerca delas, impedindo que concepções objetivadas coincidam com as formas sociais que elas adquirem nos diversos campos onde se inserem. Assim: a justiça entre irmãos não é a mesma que a justiça entre um casal de namorados. Os múltiplos detalhes da vida cotidiana, uma vez que se acumulam ao longo do tempo, produzem códigos sutis que dão forma à noção de justiça posta entre eles. É na noção de “meio”, desse “entre nós” que termina por ampliar e modelar, como puxando o fluxo temporal da ideia original; e o estrangulando como uma massa colorida, o instrumental de conceitos que utilizamos para explicar a realidade.

Anunciamos, no título deste ensaio, a autoridade reinante na sociedade brasileira. Mas, o que ela é e o que a torna durável, reproduzível? Vamos às pistas. Dizemos que a sociedade é autoritária, e não exclusivamente este ou aquele governo. Eis o ponto: a democracia, no contexto cultural brasileiro, precisa ser reescrita — o que não significa apagar da memória os exemplos daqueles que pelejaram pela sua construção e expansão.

Adianto: a reescrita da democracia não pede um novo texto constitucional. O marco constitucional de 1988 já é o redesenho da democracia após mais de duas décadas de regime militar. Ocorre que, mal a redemocratização havia começado, logo o neoliberalismo vampiresco já presente nas veias abertas da América Latina, especialmente no Chile sob Pinochet, chegava ao Brasil de modo incisivo, dando as caras por meio da hiperinflação que acompanhou todo o governo Sarney (1985-1990), seguido de sucessivos e fracassados planos econômicos.

A ele, seguiu-se, nada mais, nada menos, que Fernando Collor de Mello (1990-1992) – um protótipo neoliberal do que, anos mais tarde, se converteria no estereótipo da extrema direita representada, aqui, por Jair Bolsonaro (2019-2022), nos EUA, por Donald Trump (2017-2021), na Hungria, Viktor Orbán (desde 2010), na Turquia, Recep Tayyip Erdoğan (Primeiro-ministro, 2003-2014; Presidente desde 2014), na Polônia, Andrzej Duda (desde 2015), nas Filipinas, Rodrigo Duterte (2016-2022), na Itália, Matteo Salvini (Líder da Liga Norte, ex-Vice Primeiro-Ministro e Ministro do Interior, 2018-2019).

Descontado o período em que o Brasil foi governado pelo PT, primeiro por Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e, depois, por Dilma Rousseff (2011-2016), os quais merecem um olhar de maior profundidade em face dos efeitos reais produzidos na sociedade, como o surgimento da nova classe média, a expansão da universidade pública, a redução da pobreza e da desigualdade social, dentre outros, de resto, segue-se que, no Brasil, o neoliberalismo coincidente com o processo de redemocratização, dizia respeito à construção de uma nova mentalidade, cujo ponto de partida consistia na satisfação das expectativas mais profundas da população: a da passagem da sociedade controlada – marcada pelos anos da ditadura – para a sociedade livre, inclusiva e plural.

E, então, o corolário dos novos tempos trazia em seu bojo a noção da diversidade e, consequentemente, das pautas identitárias como maiores expressões dessa nova democracia com ares de liberdade. Eis aí um primeiro sinal das engrenagens que perpetuam o funcionamento da sociedade autoritária: a substituição da pauta historicamente legítima da tensão exploração-trabalho por pautas fragmentadas em bolhas reivindicatórias. É o caráter do especialismo introjetado no coração da luta de classes. 

Outro sinal é a distribuição de autoridade (e, por extensão, de discurso) por meio do que Pierre Bourdieu chamou de “Inflação de diplomas”, cujas consequências sociais, além do aumento da competitividade em benefício exclusivo do mercado, implica na desvalorização relativa em razão da substituição da noção de distinção por requisito e, por último, a frustração resultante da “promessa” intrínseca no diploma, em contraste ao “poder” do discurso que ele produz, especialmente se considerarmos a inflação de diplomas em níveis mais elevados de formação, como de mestres e doutores.

Então, juntemos as peças do que constitui e reproduz uma sociedade altamente autoritária: a imagem cada vez mais distante da noção de democracia (uma sociedade em que a liberdade é cada vez mais parte da publicidade de mercado do que da vida propriamente dita); as pautas reivindicatórias fragmentárias, ideologicamente orientadas; a autoridade do discurso chancelada por um diploma opaco, a que se segue um desesperador ressentimento e cinismo. E, finalmente, podemos compreender porque o ódio é a característica central na sociedade brasileira contemporânea — e porque é urgente repensar a democracia.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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