segunda-feira, 1 de julho de 2024

Especialistas querem Brasil à frente da busca por regulação internacional de agrotóxicos junto à ONU

O processo alcança um conjunto de atores envolvidos no combate ao uso de pesticidas, como acadêmicos, movimentos populares, lideranças de organizações não governamentais (ONGs), representantes do sistema de Justiça, entre outros vocalizadores da pauta. O assunto foi o foco de um seminário sediado pela Câmara dos Deputados na quinta-feira, 27-06, para discutir o tema e promover um intercâmbio entre os grupos de interesse engajados nessa agenda.

Curadora do evento, a geógrafa e professora da Universidade de São Paulo - USP Larissa Bombardi explica que a luta por uma regulação global para os venenos ainda tem uma extensa jornada adiante para que possa colher frutos junto à ONU. A proposição de iniciativas do tipo precisa necessariamente partir de algum Estado-membro do organismo.

“A gente deseja que seja o Brasil porque seria muito simbólico. É o país que mais consome agrotóxicos no mundo e, neste momento, o país tem o governo Lula e tem essa liderança mundial na discussão ambiental. Seria, então, muito importante que ele fosse o país a propor [o marco].”

Os especialistas entendem que a criação de um marco regulatório seria fundamental para se promover o controle do uso desse tipo de produto e, na melhor das hipóteses, a longo prazo, o seu banimento.

Os agrotóxicos têm comprovado efeito nefasto na saúde humana, bem como afetam a biodiversidade, contaminam os recursos aquáticos e ajudam a comprometer os direitos de populações mais vulneráveis que residem em áreas próximas àquelas onde o agronegócio utiliza venenos em larga escala, como indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, entre outros segmentos. Problemas como esses já foram apontados por uma série de instituições, como o Ministério Público Federal - MPF, o Instituto Nacional do Câncer - Inca, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco e o Conselho Nacional de Direitos Humanos - CNDH.

•           Desafios

Integrante da Aliança Internacional para a Padronização de Agrotóxicos - IPSA, a professora Larissa Bombardi aponta que o lobby das grandes indústrias em prol do uso de venenos ainda é um dos principais entraves à luta contra os pesticidas.

“Tem uma parte das substâncias altamente tóxicas que a União Europeia - UE já baniu, mas a mesma UE, por meio das suas empresas, controla pouco mais de um terço das vendas mundiais e vende essas substâncias que não são toleradas no seu próprio território. E o que acontece é que hoje a América do Sul é o lugar do mundo que mais consome agrotóxicos, enquanto na UE houve queda de cerca de 3% nos últimos dez anos.”

Ela afirma que, no mesmo período, o Brasil, por exemplo, viveu um salto de 78% no consumo desses produtos. “Há, então, um enfrentamento grande que precisa ser feito em relação a essa lógica econômica. Por outro lado, tem um crescimento também da conscientização internacional sobre o tema, os movimentos se enxergam uns nos outros, então, apesar de o quadro ser desafiador, sou otimista.”

A pesquisadora afirma que, na busca por um fluxo contrário a essa tendência de aumento, seria necessário grande engajamento do Estado brasileiro em torno dessa agenda.

“Ainda falta um amadurecimento maior pra isso no Poder Executivo. Precisamos amadurecer isso no governo. O Ministério do Meio Ambiente está sensível, o do Desenvolvimento Agrário é o que mais está sensível, o da Saúde também. É preciso que isso alcance outras estruturas do governo. A gente tem construído e tentado dialogar com o governo em diferentes esferas”, conta.

Ao mesmo tempo em que desenvolvem esse trabalho, os especialistas tentam fazer a pauta do combate aos agrotóxicos crescer ao nível mundial. Uma conferência sobre a criação de um marco regulatório internacional está prevista para ocorrer em 29 de outubro no Parlamento Europeu, em Bruxelas, na Bélgica.

“A ideia é que esse debate se dê no Sul Global e também no Norte Global. Precisamos fazer essa ponte. Temos que trazer esse tema à tona e amplificar o debate”, afirma Bombardi.

•           Vantagens

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Ceará - Alce e um dos combatentes do uso de agrotóxicos no país, o deputado estadual Renato Roseno (PSOL) ressalta que a regulação internacional seria fundamental para promover uma maior segurança ambiental e a proteção à saúde humana, tendo ainda a capacidade de afugentar de forma progressiva o lobby das grandes corporações que faturam com a venda de pesticidas. Bayer, Syngenta, Basf e Corteva são as transnacionais que concentram 70% do mercado de venenos no mundo.

Roseno é autor de uma legislação que proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará nos últimos anos. Apesar de aprovada pela Alce e ratificada pelo Supremo Tribunal Federal - STF no âmbito de uma ação judicial que tentava invalidar a norma, a lei ainda enfrenta grande oposição do agronegócio.

“Metade dos produtos licenciados no Brasil é categorizada como ‘altamente perigosa’ e 60% dos novos agrotóxicos regulados aqui já são banidos na Europa. Então, além de serem modalidades perigosas, o que se pulveriza [no meio ambiente] também é perigoso, por isso é necessário se ter um parâmetro que possa diminuir a pressão econômico-política das quatro grandes corporações porque elas têm um peso gigantesco na regulação em algumas regiões do mundo, notadamente na Ásia, África e América do Sul”, esquadrinha o parlamentar, ao acrescentar que essas sociedades são mais vulneráveis ao problema porque ainda convivem com as marcas do processo de colonização.

O psolista afirma ainda que o debate sobre uma regulação internacional para o uso de venenos tende a ultrapassar as raias de uma década.

“O tratado das crianças [Convenção sobre os Direitos da Criança], por exemplo, que é o tratado mais ratificado do mundo, teve sua primeira proposta apresentada em 1979 pela Polônia e foi aprovado somente em 1989. Um tratado como esse [dos agrotóxicos], que seria muito polêmico, fatalmente demoraria mais uma década.”

•           Sociedade civil

A procuradora da República Fátima Borghi, uma das vozes que acompanham esse tipo de debate no âmbito do Ministério Público Federal - MPF, diz que a participação social é fundamental para fortalecer a transparência e a democracia, ampliando, assim, a luta por uma sociedade ambientalmente equilibrada.

“Todos sabemos que envolver a comunidade em um debate é algo que traz um senso de responsabilidade compartilhada. As políticas públicas e os programas desenvolvidos com a participação da sociedade tendem a ser mais eficazes, pois consideram as realidades locais nas comunidades. A participação ativa em questões ambientais promove a conscientização da população sobre os desafios e soluções ambientais, fortalecendo a cultura da preservação. Com isso, as políticas ambientais ganham também maior legitimidade, o que facilita a sua implementação”, enumera.

Iniciativas como a Via Campesina e a Coordenadoria Latino-americana de Organizações do Campo - Cloc, por exemplo, têm investido em uma ampla campanha em diferentes países para tentar promover uma maior popularização do debate contra o uso de venenos.

“Nós entendemos que precisamos fortalecer esse processo de articulação entre os países, em especial os do Sul Global, que precisam de espaços mais democráticos de articulação entre territórios, povos e governos para que a gente possa avançar nessa agenda, entendendo também, claro, a complexidade que existe em todas essas esferas”, afirma Jakeline Pivato, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.

Articulador de uma série de acampamentos e assentamentos que lidam com o tema da reforma agrária, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra - MST está entre as organizações que mais investem no debate sobre a contenção do uso de pesticidas. A organização defende que haja, em substituição a isso, a adoção de modelos agroecológicos de produção.

“Há uma crise estrutural do modelo hegemônico de produção da vida em sociedade. É um modelo que nos impacta do ponto de vista econômico e social, mas que revela também uma crise climática, uma crise de caráter ambiental e sobretudo uma crise civilizatória, que nos remete a pensar o futuro da humanidade e a forma como a gente lida com a nossa forma de produzir”, afirma Ceres Hadich, da direção nacional da entidade.

Para o coordenador de programas e projetos de Justiça Socioambiental da Fundação Heinrich Böll Brasil/Alemanha, Marcelo Montenegro, o papel da sociedade civil é essencial no sentido de pressionar o Estado para que ele se envolva efetivamente nessa agenda.

“Acredito que essa reflexão e esse pedido têm um embasamento muito forte. A gente, por ser uma fundação, não tem o papel de puxar isso, mas vejo como um passo natural a luta de atores civis nessa busca junto ao Estado. Vamos ver como ele vai responder a essa demanda e se vai levar adiante essa ideia de protagonismo na busca por um marco regulatório internacional."

 

•           Sistema de saúde brasileiro paga caro pelo abuso de agrotóxicos

O Brasil aplica mais de 720 toneladas de agrotóxicos na produção agrícola e metade dos produtos é considerada altamente perigosa à saúde. Tal modo de cultivo causa doenças e traz elevado custo para os sistemas de saúde público e privado. Além disso, a subnotificação das intoxicações esconde a realidade e dificulta o correto enfrentamento do problema.

O uso de agrotóxico está banalizado e até a enxada já perdeu seu lugar para o veneno. Ronda Alta, cidade com pouco mais de 10 mil moradores no extremo Norte gaúcho, comercializou 144.870,078 litros (ou 53.626,426 quilos) de ingrediente ativo de diferentes tipos de agrotóxicos em 34 mil hectares de soja, milho, trigo e aveia, o equivalente a 13,62 litros de veneno por habitante em 2018. “Enxada ninguém mais tem. Ninguém mais quer. Ninguém mais usa”, relata uma agricultora do município, ao participar de uma pesquisa científica sobre agrotóxicos agrícolas e notificação de intoxicações exógenas.

O estudo produzido pela nutricionista da secretaria da Saúde de Ronda Alta e mestra em Ensino na Saúde pela Ufrgs Carla Agostini ouviu 144 agricultores e usuários da saúde em 2023, considerada população exposta a essa realidade. Carla atua há 20 anos na Atenção Básica de Saúde em Ronda Alta e destaca que foi a primeira vez que o tema dos agrotóxicos foi abordado sob o olhar da saúde e não da agricultura.

“O mais grave foi ver o quanto “esta cultura” dos agrotóxicos está impregnada em nossa cidade, a ponto dos agricultores, que são o grupo que sofre os maiores impactos visto que habitualmente lidam com esses produtos, ignoraram completamente os riscos que os agrotóxicos oferecem à saúde”. Segundo ela, eles desconsideram cuidados mais básicos de proteção, como uso de máscaras e luvas, porque “acham que estão mexendo com água”.

A profissional de saúde lembra que cada morador tem seu relato sobre o impacto das substâncias à base de herbicidas, inseticidas ou fungicidas. Um, por exemplo, derrubou o boné dentro do pulverizador com o veneno já diluído. Sem qualquer temor, coloco-o de volta na cabeça e continuou o serviço com o boné encharcado. Passou muito mal, mas não foi ao médico.

Outro se intoxicou ao trabalhar com semente de milho à base de agrotóxicos, ficou ruim e agora não pode nem sentir o cheiro desse produto químico que passa mal. Além disso, muitos passam veneno nas lavouras, o vento o traz para cima das casas, depois se coleta água da chuva e se usa para molhar alfaces, a planta morre ou enruga. “São casos cotidianos na realidade local, comuns”, observa Carla.

•           Bom para poucos, ruim para muitos

O que se evidencia em Ronda Alta se estende Brasil afora, em regiões com mais intensidade, outras com menos. Em 2023, mais de 100 milhões de abelhas foram mortas no Mato Grosso devido à aplicação incorreta do fipronil. O uso do inseticida é autorizado no país, mas por ser um produto tóxico, não é permitido a pulverização por aeronaves. Em São Paulo, milhares de abelhas foram extintas por causa do tiametoxam, produto proibido em países europeus, no entanto, vendido ao Brasil por uma das multinacionais do segmento, a Syngenta.

Outro caso emblemático ocorreu em 2013. Durante o recreio, um avião agrícola despejou agrotóxicos sobre uma escola em Rio Verde, interior de Goiás, afetando 122 pessoas com o veneno Engeo, entre crianças de quatro anos e adolescentes de 16, além de professores e funcionários. Um levantamento da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, sigla em inglês), divulgado em 2021, mostra que o Brasil aplicou 719,5 mil toneladas de venenos em lavouras nacionais para controlar pestes naquele ano, mais do que os Estados Unidos (457 mil toneladas) e a China (244 mil toneladas) juntos no mesmo período.

Para o professor da Ufrgs e conselheiro da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental Darci Campani, é necessário rever o modelo de desenvolvimento agrícola no país, porque é baseado em produção cara, agrotóxicos importados e venda in natura com baixo valor agregado. “Não deu certo”, afirma, argumentando que produzimos “alimentos para o mundo para as pessoas não morrerem de fome, mas as matamos por câncer e outras doenças pelo consumo de comida envenenada”.

Segundo o especialista, essa lógica de produção também contamina o solo e água. “Estamos em uma espiral de contaminação dos meios em que vivemos”, conclui.

Entre 2010 e 2021, o Brasil dobrou o consumo de agrotóxicos e cerca de 70% do veneno vem de quatro grandes grupos do Norte Global, de acordo o Atlas dos Agrotóxicos de 2023. A fatia do mercado de agrotóxicos se divide assim: Syngenta 9,9 bilhões de euros; Bayer 9,8 bilhões de euros; Corteva 5,7 bilhões de euros; Basf 5,5 bilhões de euros. Em 1994, a participação dessas empresas era de 29% neste tipo de mercado; já em 2018, saltou para 70%, segundo dados do levantamento.

Em paralelo, enquanto cada dólar aplicado à compra de veneno para a produção agrícola, em média, outros 1,28 são gerados em gastos no sistema de saúde, dependendo do tipo de tratamento aplicado para intoxicação. Apesar dos danos à saúde e ao meio ambiente, o agronegócio tem incentivos fiscais no Brasil e Lei do Agrotóxico (14.785) veio para facilitar o acesso em 2023.

A sanitarista do Centro Estadual de Vigilância em Saúde do RS Vanda Garibotti destaca que o setor tem muitos incentivos fiscais, mesmo sendo uma das principais potências econômicas, especialmente por causa do discurso que produz alimentos. “A sociedade fica com a doença e impacto ambiental, e praticamente não se recolhe imposto para fazer frente ao custo do prejuízo social que esse modelo de produção provoca”, enfatiza.

Além da contaminação por exposição direta aos agrotóxicos, o envenenamento vem na comida. Conforme o Atlas dos Agrotóxicos, entre os alimentos mais contaminados estão itens muito presentes no cotidiano do brasileiro, como o arroz, alho e a laranja. Também entram no ranking a uva, a beterraba, a manga, o abacaxi, o chuchu e a batata doce. Quem lidera a lista como alimento mais contaminado é o pimentão, seguido da goiaba, da cenoura, do tomate e da alface. A publicação do Atlas dos Agrotóxicos ainda registra que 385 milhões de pessoas adoecem todos os anos por envenenamento causados por agrotóxicos no mundo.

•           Sistema de saúde e subnotificações

“Embora o registro dos casos seja obrigatório, temos muitos municípios chamados de silenciosos, que não realizam essas notificações no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Apesar de essa grande subnotificação, em 2023 tivemos o registro de 923 casos”. Com essas observações concessivas, a reportagem recebe os registros de intoxicação do RS, fornecidos pela secretaria de Saúde. Isso por quê, para cada caso notificado de intoxicação, existem outros 50 não computados, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2019. Sendo assim, houve mais de 46 mil pessoas intoxicadas no Estado, no ano passado.

Em Ronda Alta, mesmo com toneladas de agrotóxicos comercializados e cada morador possuindo uma história de intoxicação, os dados do Sinan estão quase zerados. Em 2019 e 2020 houve um registro em cada ano, em 2021 nenhum e em 2022 e 2023 dois em cada ano. Ou seja, seis notificações em cinco anos.

“Esse cenário contraditório de altos quantitativos de comercialização de agrotóxicos, em contradição aos números insignificantes nos registros do principal agravo à saúde humana, é o grande desafio da saúde pública em nossa cidade”, ressalta Carla, complementando que combater a subnotificação de registros é uma necessidade epidemiológica para que as ações de saúde possam ser planejadas e efetivas.

A sanitarista Vanda salienta que “não se conhece a real incidência, porque normalmente só se notifica os casos agudos e graves, os leves nem são registrados. Segundo a profissional do Centro Estadual de Vigilância em Saúde, se desconhece as informações de intoxicações crônicas, em longo prazo, e a exposição aos poucos e em doses baixas. Dessa forma, “a gente não sabe como isso causa problemas respiratórios, mal de Parkinson, cânceres, neuropatias. Ou seja, desconhece muitos fatores que estão associados aos agrotóxicos”.

Campani lembra que subnotificações no sistema de saúde são comuns em diversos registros, não só em relação à quantidade, mas também, à qualidade. Para ilustrar, cita moradores em regiões distantes dos grandes centros, que muitas vazes acumulam doenças por uso de venenos, não havendo acesso e registros, ficam definhando até morrerem sem saberem o porquê sequer. Hoje o Brasil tem mais de três mil agrotóxicos registrados para uso – sendo que 49% deste total são considerados altamente perigosos à saúde -, até proibidos em países da Europa, contudo, livremente comercializados para o território nacional.

 

Fonte: Brasil de Fato

 

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