Especialistas
querem Brasil à frente da busca por regulação internacional de agrotóxicos
junto à ONU
O
processo alcança um conjunto de atores envolvidos no combate ao uso de
pesticidas, como acadêmicos, movimentos populares, lideranças de organizações
não governamentais (ONGs), representantes do sistema de Justiça, entre outros
vocalizadores da pauta. O assunto foi o foco de um seminário sediado pela
Câmara dos Deputados na quinta-feira, 27-06, para discutir o tema e promover um
intercâmbio entre os grupos de interesse engajados nessa agenda.
Curadora
do evento, a geógrafa e professora da Universidade de São Paulo - USP Larissa
Bombardi explica que a luta por uma regulação global para os venenos ainda tem
uma extensa jornada adiante para que possa colher frutos junto à ONU. A
proposição de iniciativas do tipo precisa necessariamente partir de algum
Estado-membro do organismo.
“A
gente deseja que seja o Brasil porque seria muito simbólico. É o país que mais
consome agrotóxicos no mundo e, neste momento, o país tem o governo Lula e tem
essa liderança mundial na discussão ambiental. Seria, então, muito importante
que ele fosse o país a propor [o marco].”
Os
especialistas entendem que a criação de um marco regulatório seria fundamental
para se promover o controle do uso desse tipo de produto e, na melhor das
hipóteses, a longo prazo, o seu banimento.
Os
agrotóxicos têm comprovado efeito nefasto na saúde humana, bem como afetam a
biodiversidade, contaminam os recursos aquáticos e ajudam a comprometer os
direitos de populações mais vulneráveis que residem em áreas próximas àquelas
onde o agronegócio utiliza venenos em larga escala, como indígenas,
quilombolas, pescadores artesanais, entre outros segmentos. Problemas como
esses já foram apontados por uma série de instituições, como o Ministério
Público Federal - MPF, o Instituto Nacional do Câncer - Inca, a Associação
Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco e o Conselho Nacional de Direitos
Humanos - CNDH.
• Desafios
Integrante
da Aliança Internacional para a Padronização de Agrotóxicos - IPSA, a
professora Larissa Bombardi aponta que o lobby das grandes indústrias em prol
do uso de venenos ainda é um dos principais entraves à luta contra os
pesticidas.
“Tem
uma parte das substâncias altamente tóxicas que a União Europeia - UE já baniu,
mas a mesma UE, por meio das suas empresas, controla pouco mais de um terço das
vendas mundiais e vende essas substâncias que não são toleradas no seu próprio
território. E o que acontece é que hoje a América do Sul é o lugar do mundo que
mais consome agrotóxicos, enquanto na UE houve queda de cerca de 3% nos últimos
dez anos.”
Ela
afirma que, no mesmo período, o Brasil, por exemplo, viveu um salto de 78% no
consumo desses produtos. “Há, então, um enfrentamento grande que precisa ser
feito em relação a essa lógica econômica. Por outro lado, tem um crescimento também
da conscientização internacional sobre o tema, os movimentos se enxergam uns
nos outros, então, apesar de o quadro ser desafiador, sou otimista.”
A
pesquisadora afirma que, na busca por um fluxo contrário a essa tendência de
aumento, seria necessário grande engajamento do Estado brasileiro em torno
dessa agenda.
“Ainda
falta um amadurecimento maior pra isso no Poder Executivo. Precisamos
amadurecer isso no governo. O Ministério do Meio Ambiente está sensível, o do
Desenvolvimento Agrário é o que mais está sensível, o da Saúde também. É
preciso que isso alcance outras estruturas do governo. A gente tem construído e
tentado dialogar com o governo em diferentes esferas”, conta.
Ao
mesmo tempo em que desenvolvem esse trabalho, os especialistas tentam fazer a
pauta do combate aos agrotóxicos crescer ao nível mundial. Uma conferência
sobre a criação de um marco regulatório internacional está prevista para
ocorrer em 29 de outubro no Parlamento Europeu, em Bruxelas, na Bélgica.
“A
ideia é que esse debate se dê no Sul Global e também no Norte Global.
Precisamos fazer essa ponte. Temos que trazer esse tema à tona e amplificar o
debate”, afirma Bombardi.
• Vantagens
Presidente
da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Ceará - Alce e um
dos combatentes do uso de agrotóxicos no país, o deputado estadual Renato
Roseno (PSOL) ressalta que a regulação internacional seria fundamental para
promover uma maior segurança ambiental e a proteção à saúde humana, tendo ainda
a capacidade de afugentar de forma progressiva o lobby das grandes corporações
que faturam com a venda de pesticidas. Bayer, Syngenta, Basf e Corteva são as
transnacionais que concentram 70% do mercado de venenos no mundo.
Roseno
é autor de uma legislação que proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos no
Ceará nos últimos anos. Apesar de aprovada pela Alce e ratificada pelo Supremo
Tribunal Federal - STF no âmbito de uma ação judicial que tentava invalidar a
norma, a lei ainda enfrenta grande oposição do agronegócio.
“Metade
dos produtos licenciados no Brasil é categorizada como ‘altamente perigosa’ e
60% dos novos agrotóxicos regulados aqui já são banidos na Europa. Então, além
de serem modalidades perigosas, o que se pulveriza [no meio ambiente] também é
perigoso, por isso é necessário se ter um parâmetro que possa diminuir a
pressão econômico-política das quatro grandes corporações porque elas têm um
peso gigantesco na regulação em algumas regiões do mundo, notadamente na Ásia,
África e América do Sul”, esquadrinha o parlamentar, ao acrescentar que essas
sociedades são mais vulneráveis ao problema porque ainda convivem com as marcas
do processo de colonização.
O
psolista afirma ainda que o debate sobre uma regulação internacional para o uso
de venenos tende a ultrapassar as raias de uma década.
“O
tratado das crianças [Convenção sobre os Direitos da Criança], por exemplo, que
é o tratado mais ratificado do mundo, teve sua primeira proposta apresentada em
1979 pela Polônia e foi aprovado somente em 1989. Um tratado como esse [dos
agrotóxicos], que seria muito polêmico, fatalmente demoraria mais uma década.”
• Sociedade civil
A
procuradora da República Fátima Borghi, uma das vozes que acompanham esse tipo
de debate no âmbito do Ministério Público Federal - MPF, diz que a participação
social é fundamental para fortalecer a transparência e a democracia, ampliando,
assim, a luta por uma sociedade ambientalmente equilibrada.
“Todos
sabemos que envolver a comunidade em um debate é algo que traz um senso de
responsabilidade compartilhada. As políticas públicas e os programas
desenvolvidos com a participação da sociedade tendem a ser mais eficazes, pois
consideram as realidades locais nas comunidades. A participação ativa em
questões ambientais promove a conscientização da população sobre os desafios e
soluções ambientais, fortalecendo a cultura da preservação. Com isso, as
políticas ambientais ganham também maior legitimidade, o que facilita a sua
implementação”, enumera.
Iniciativas
como a Via Campesina e a Coordenadoria Latino-americana de Organizações do
Campo - Cloc, por exemplo, têm investido em uma ampla campanha em diferentes
países para tentar promover uma maior popularização do debate contra o uso de
venenos.
“Nós
entendemos que precisamos fortalecer esse processo de articulação entre os
países, em especial os do Sul Global, que precisam de espaços mais democráticos
de articulação entre territórios, povos e governos para que a gente possa
avançar nessa agenda, entendendo também, claro, a complexidade que existe em
todas essas esferas”, afirma Jakeline Pivato, da Campanha Permanente Contra os
Agrotóxicos e Pela Vida.
Articulador
de uma série de acampamentos e assentamentos que lidam com o tema da reforma
agrária, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra - MST está entre as
organizações que mais investem no debate sobre a contenção do uso de
pesticidas. A organização defende que haja, em substituição a isso, a adoção de
modelos agroecológicos de produção.
“Há
uma crise estrutural do modelo hegemônico de produção da vida em sociedade. É
um modelo que nos impacta do ponto de vista econômico e social, mas que revela
também uma crise climática, uma crise de caráter ambiental e sobretudo uma
crise civilizatória, que nos remete a pensar o futuro da humanidade e a forma
como a gente lida com a nossa forma de produzir”, afirma Ceres Hadich, da
direção nacional da entidade.
Para
o coordenador de programas e projetos de Justiça Socioambiental da Fundação
Heinrich Böll Brasil/Alemanha, Marcelo Montenegro, o papel da sociedade civil é
essencial no sentido de pressionar o Estado para que ele se envolva
efetivamente nessa agenda.
“Acredito
que essa reflexão e esse pedido têm um embasamento muito forte. A gente, por
ser uma fundação, não tem o papel de puxar isso, mas vejo como um passo natural
a luta de atores civis nessa busca junto ao Estado. Vamos ver como ele vai
responder a essa demanda e se vai levar adiante essa ideia de protagonismo na
busca por um marco regulatório internacional."
• Sistema de saúde brasileiro paga caro
pelo abuso de agrotóxicos
O
Brasil aplica mais de 720 toneladas de agrotóxicos na produção agrícola e
metade dos produtos é considerada altamente perigosa à saúde. Tal modo de
cultivo causa doenças e traz elevado custo para os sistemas de saúde público e
privado. Além disso, a subnotificação das intoxicações esconde a realidade e
dificulta o correto enfrentamento do problema.
O
uso de agrotóxico está banalizado e até a enxada já perdeu seu lugar para o
veneno. Ronda Alta, cidade com pouco mais de 10 mil moradores no extremo Norte
gaúcho, comercializou 144.870,078 litros (ou 53.626,426 quilos) de ingrediente
ativo de diferentes tipos de agrotóxicos em 34 mil hectares de soja, milho,
trigo e aveia, o equivalente a 13,62 litros de veneno por habitante em 2018.
“Enxada ninguém mais tem. Ninguém mais quer. Ninguém mais usa”, relata uma
agricultora do município, ao participar de uma pesquisa científica sobre
agrotóxicos agrícolas e notificação de intoxicações exógenas.
O
estudo produzido pela nutricionista da secretaria da Saúde de Ronda Alta e
mestra em Ensino na Saúde pela Ufrgs Carla Agostini ouviu 144 agricultores e
usuários da saúde em 2023, considerada população exposta a essa realidade.
Carla atua há 20 anos na Atenção Básica de Saúde em Ronda Alta e destaca que
foi a primeira vez que o tema dos agrotóxicos foi abordado sob o olhar da saúde
e não da agricultura.
“O
mais grave foi ver o quanto “esta cultura” dos agrotóxicos está impregnada em
nossa cidade, a ponto dos agricultores, que são o grupo que sofre os maiores
impactos visto que habitualmente lidam com esses produtos, ignoraram
completamente os riscos que os agrotóxicos oferecem à saúde”. Segundo ela, eles
desconsideram cuidados mais básicos de proteção, como uso de máscaras e luvas,
porque “acham que estão mexendo com água”.
A
profissional de saúde lembra que cada morador tem seu relato sobre o impacto
das substâncias à base de herbicidas, inseticidas ou fungicidas. Um, por
exemplo, derrubou o boné dentro do pulverizador com o veneno já diluído. Sem
qualquer temor, coloco-o de volta na cabeça e continuou o serviço com o boné
encharcado. Passou muito mal, mas não foi ao médico.
Outro
se intoxicou ao trabalhar com semente de milho à base de agrotóxicos, ficou
ruim e agora não pode nem sentir o cheiro desse produto químico que passa mal.
Além disso, muitos passam veneno nas lavouras, o vento o traz para cima das
casas, depois se coleta água da chuva e se usa para molhar alfaces, a planta
morre ou enruga. “São casos cotidianos na realidade local, comuns”, observa
Carla.
• Bom para poucos, ruim para muitos
O
que se evidencia em Ronda Alta se estende Brasil afora, em regiões com mais
intensidade, outras com menos. Em 2023, mais de 100 milhões de abelhas foram
mortas no Mato Grosso devido à aplicação incorreta do fipronil. O uso do
inseticida é autorizado no país, mas por ser um produto tóxico, não é permitido
a pulverização por aeronaves. Em São Paulo, milhares de abelhas foram extintas
por causa do tiametoxam, produto proibido em países europeus, no entanto,
vendido ao Brasil por uma das multinacionais do segmento, a Syngenta.
Outro
caso emblemático ocorreu em 2013. Durante o recreio, um avião agrícola despejou
agrotóxicos sobre uma escola em Rio Verde, interior de Goiás, afetando 122
pessoas com o veneno Engeo, entre crianças de quatro anos e adolescentes de 16,
além de professores e funcionários. Um levantamento da Organização das Nações
Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, sigla em inglês), divulgado em
2021, mostra que o Brasil aplicou 719,5 mil toneladas de venenos em lavouras
nacionais para controlar pestes naquele ano, mais do que os Estados Unidos (457
mil toneladas) e a China (244 mil toneladas) juntos no mesmo período.
Para
o professor da Ufrgs e conselheiro da Associação Brasileira de Engenharia
Sanitária e Ambiental Darci Campani, é necessário rever o modelo de
desenvolvimento agrícola no país, porque é baseado em produção cara,
agrotóxicos importados e venda in natura com baixo valor agregado. “Não deu
certo”, afirma, argumentando que produzimos “alimentos para o mundo para as
pessoas não morrerem de fome, mas as matamos por câncer e outras doenças pelo
consumo de comida envenenada”.
Segundo
o especialista, essa lógica de produção também contamina o solo e água.
“Estamos em uma espiral de contaminação dos meios em que vivemos”, conclui.
Entre
2010 e 2021, o Brasil dobrou o consumo de agrotóxicos e cerca de 70% do veneno
vem de quatro grandes grupos do Norte Global, de acordo o Atlas dos Agrotóxicos
de 2023. A fatia do mercado de agrotóxicos se divide assim: Syngenta 9,9
bilhões de euros; Bayer 9,8 bilhões de euros; Corteva 5,7 bilhões de euros;
Basf 5,5 bilhões de euros. Em 1994, a participação dessas empresas era de 29%
neste tipo de mercado; já em 2018, saltou para 70%, segundo dados do
levantamento.
Em
paralelo, enquanto cada dólar aplicado à compra de veneno para a produção
agrícola, em média, outros 1,28 são gerados em gastos no sistema de saúde,
dependendo do tipo de tratamento aplicado para intoxicação. Apesar dos danos à
saúde e ao meio ambiente, o agronegócio tem incentivos fiscais no Brasil e Lei
do Agrotóxico (14.785) veio para facilitar o acesso em 2023.
A
sanitarista do Centro Estadual de Vigilância em Saúde do RS Vanda Garibotti
destaca que o setor tem muitos incentivos fiscais, mesmo sendo uma das
principais potências econômicas, especialmente por causa do discurso que produz
alimentos. “A sociedade fica com a doença e impacto ambiental, e praticamente
não se recolhe imposto para fazer frente ao custo do prejuízo social que esse
modelo de produção provoca”, enfatiza.
Além
da contaminação por exposição direta aos agrotóxicos, o envenenamento vem na
comida. Conforme o Atlas dos Agrotóxicos, entre os alimentos mais contaminados
estão itens muito presentes no cotidiano do brasileiro, como o arroz, alho e a
laranja. Também entram no ranking a uva, a beterraba, a manga, o abacaxi, o
chuchu e a batata doce. Quem lidera a lista como alimento mais contaminado é o
pimentão, seguido da goiaba, da cenoura, do tomate e da alface. A publicação do
Atlas dos Agrotóxicos ainda registra que 385 milhões de pessoas adoecem todos
os anos por envenenamento causados por agrotóxicos no mundo.
• Sistema de saúde e subnotificações
“Embora
o registro dos casos seja obrigatório, temos muitos municípios chamados de
silenciosos, que não realizam essas notificações no Sistema de Informação de
Agravos de Notificação (Sinan). Apesar de essa grande subnotificação, em 2023
tivemos o registro de 923 casos”. Com essas observações concessivas, a
reportagem recebe os registros de intoxicação do RS, fornecidos pela secretaria
de Saúde. Isso por quê, para cada caso notificado de intoxicação, existem
outros 50 não computados, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde
(OMS) de 2019. Sendo assim, houve mais de 46 mil pessoas intoxicadas no Estado,
no ano passado.
Em
Ronda Alta, mesmo com toneladas de agrotóxicos comercializados e cada morador
possuindo uma história de intoxicação, os dados do Sinan estão quase zerados.
Em 2019 e 2020 houve um registro em cada ano, em 2021 nenhum e em 2022 e 2023
dois em cada ano. Ou seja, seis notificações em cinco anos.
“Esse
cenário contraditório de altos quantitativos de comercialização de agrotóxicos,
em contradição aos números insignificantes nos registros do principal agravo à
saúde humana, é o grande desafio da saúde pública em nossa cidade”, ressalta
Carla, complementando que combater a subnotificação de registros é uma
necessidade epidemiológica para que as ações de saúde possam ser planejadas e
efetivas.
A
sanitarista Vanda salienta que “não se conhece a real incidência, porque
normalmente só se notifica os casos agudos e graves, os leves nem são
registrados. Segundo a profissional do Centro Estadual de Vigilância em Saúde,
se desconhece as informações de intoxicações crônicas, em longo prazo, e a
exposição aos poucos e em doses baixas. Dessa forma, “a gente não sabe como
isso causa problemas respiratórios, mal de Parkinson, cânceres, neuropatias. Ou
seja, desconhece muitos fatores que estão associados aos agrotóxicos”.
Campani
lembra que subnotificações no sistema de saúde são comuns em diversos
registros, não só em relação à quantidade, mas também, à qualidade. Para
ilustrar, cita moradores em regiões distantes dos grandes centros, que muitas
vazes acumulam doenças por uso de venenos, não havendo acesso e registros,
ficam definhando até morrerem sem saberem o porquê sequer. Hoje o Brasil tem
mais de três mil agrotóxicos registrados para uso – sendo que 49% deste total
são considerados altamente perigosos à saúde -, até proibidos em países da
Europa, contudo, livremente comercializados para o território nacional.
Fonte:
Brasil de Fato
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