Do Pantanal ao Rio Grande do Sul, governos
e sociedade precisam de um novo padrão de escolhas
A temporada de
incêndios do Pantanal arrefeceu, mas as imagens de incontáveis focos de
incêndio ficaram mais uma vez marcadas na memória coletiva. Com altas
temperaturas e desmatamento galopante, a destruição ambiental do Centro Oeste
tem relação direta com as chuvas que destruíram o Rio Grande do Sul. Além
disso, a biodiversidade única do Pantanal se encontra ameaçada como nunca,
enquanto o poder público começa a ensaiar apertar o cerco contra um capital
destrutivo que “passa sua boiada”, para usar o jargão consagrado pelo
ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Salles. Ao Correio, Neiva Guedes, bióloga
e presidente do Instituto Arara Azul, explica os efeitos das últimas queimadas
e afirma que chegou a hora de a sociedade fazer escolhas decisivas.
“É claro que governo é
importante, porque faz a legislação, fiscaliza, autua, mas não acredito que
seja só uma questão de governo, tem que ser das pessoas, todo mundo precisa
tomar decisões sobre sua vida diária, sobre o que deixar para o futuro, porque estamos
num momento de mudanças climáticas. Elas já estão acontecendo e já estamos
diante de efeitos que não têm mais volta. A única coisa que podemos decidir é a
profundidade disso, o que queremos fazer daqui por diante para as futuras
gerações, porque os efeitos já chegaram”, afirmou.
A bióloga faz
trabalhos de conservação ambiental no Pantanal há mais de 30 anos, de maneira
que conhece as características da região como poucas pessoas. Apesar de
reconhecer uma ação mais assertiva dos governos locais e federal no combate aos
últimos incêndios, destaca que o tempo das mudanças climáticas já está em
andamento e acontecimentos como estes, tanto no Pantanal e Cerrado, como no sul
do país, tendem a se repetir.
“Se o Pantanal caminha
para um padrão irreversível de destruição, eu não sei, mas de grandes mudanças
com certeza. No entanto, acredito que ainda temos tempo, sim, de pensar e tomar
decisões para viver num mundo melhor, onde não só o homem possa viver bem, mas
todos os outros seres. E quando há qualidade ambiental para os bichos, também
há para os humanos e toda a biodiversidade, que nos proporciona qualidade de
ar, de vida, psicológica, emocional e também de saúde. Porque a saúde está
diretamente ligada às condições ambientais, tem abrangência global, como a
pandemia deixou de exemplo”, analisou.
Isto é, Neiva Guedes
defende o que muitos têm chamado de direitos da natureza, o que significa não
só a atualização de leis ambientais, mas sua equiparação aos direitos civis e
fundamentais do ser humano. Medidas de mitigação são urgentes, mas uma reorientação
de todo um modo de vida é um aspecto incontornável de todo o debate.
“Existem várias
medidas a se tomar. A primeira delas é evitar desmatamento. Devemos ampliar
ações de educação ambiental e ações sustentáveis. O Mato Grosso está elaborando
uma lei de proteção do Pantanal e agora há uma tentativa de criar uma lei
federal para o bioma, o que é superimportante. É um ambiente extremamente
delicado, precisa de um regramento e de um olhar mais atento porque senão pode
virar um grande deserto. É um terreno arenoso, hoje é um dos biomas mais
conservados do Brasil, mas se não for cuidado pode acabar”.
<><> Leia
a entrevista completa com Neiva Guedes.
·
O que você comenta a
respeito da atual temporada de incêndios no Pantanal e também pelo Cerrado? O
que levou a isso e quais são seus atores principais?
Neiva
Guedes: Foi uma confluência de fatores.
Primeiro, escassez de chuva. Nunca tivemos tão pouca chuva no Pantanal como no
final do ano passado e início de 2024. O Pantanal e seus rios deveriam ter se
enchido de água e isso não aconteceu. A quantidade de chuva foi bem menor.
Acredito que toda chuva programada para ocorrer na nossa região acabou se
desviando para o Sul do país, como defendem alguns climatologistas. O fato é
que o Pantanal nunca esteve tão seco nesta temporada, no primeiro semestre,
como esteve agora.
Junte-se a isso altas
temperaturas, ventos fortes, baixa umidade e o crescimento da vegetação e
chegamos a condições perfeitas para grandes incêndios. Tais incêndios vêm de
vários fatores, mas são provocados principalmente pelo homem, ainda que nem
sempre de forma intencional. Tivemos fogos que escaparam de alguém que ia
queimar um lixo, acender uma fogueirinha para assar um peixe, ou mesmo de
projetos e planos de manejos de fogo controlado com bombeiros e brigadistas.
Estava tudo apagado e, de repente, dois, três dias depois, o fogo retorna
através das turfas e acaba virando um grande incêndio.
Portanto, foi uma
confluência de fatores. Porém, queimou bastante, queimou como nunca para esse
mesmo período em relação a anos anteriores. Não foi o maior incêndio que
ocorreu no Pantanal, mas para a época do ano foi um dos maiores incêndios e o
maior percentual de área queimada.
Pra completar, este
fogo não ocorreu do Pantanal de uma forma em geral. Foi muito mais ao longo do
rio Paraguai, na Serra do Amolar, inclusive nos países vizinhos, como Bolívia e
Paraguai. Mas não atingiu uma área como um todo. E nas nossas áreas de estudo,
por exemplo, tivemos pequenos incêndios, mas não foi muito grande, como em 2019
e 2020. Tampouco coincidiu com o período de reprodução das araras, que é onde
temos o maior perigo, porque queimam ninho, ovos e filhotes.
Nesse período, não
tivemos isso. Porém, os incêndios, quando ocorrem, queimam tudo. E queimam
principalmente as palmeiras, árvores, ninhos. Para as araras, que dependem
dessas duas, três plantas para sobreviver na natureza, é um grande problema.
Principalmente por serem especializadas na alimentação, isto é, comerem
basicamente dois tipos de frutos de palmeiras durante toda a sua vida. Elas
acabam ficando com alimentação deficitária, porque esses frutos levam cerca de
um ano e meio, dois anos, para formar novos cachos. E nos incêndios passados já
encontrávamos as araras comendo frutos queimados, o que leva a uma baixa
imunidade dos filhotes e até desenvolvimento de algumas doenças.
·
Como observa a reação
dos governos estaduais e mesmo federal a este respeito?
Neiva
Guedes: Inicialmente houve uma certa demora,
de alguns dias, no início de combate aos incêndios no Pantanal e no Cerrado,
mas logo depois houve uma grande movimentação. Isso foi até um ponto positivo
neste ano, porque rapidamente tanto o governo estadual como o governo federal
com suas diversas instituições, se mobilizaram e chegaram a decretar estado de
calamidade, modificação de algumas leis para que exército e corpo de bombeiro
possam atuar, com aviões etc.
Enfim, houve e está
havendo uma grande mobilização não só para apagar o fogo, que neste momento
inclusive está apagado, depois da pequena chuva dos últimos dias e baixas
temperaturas, mas também para mitigar os efeitos dos incêndios. Este foi um
ponto positivo porque houve uma mobilização mais rápida dos governos em todas
as esferas.
·
Em entrevista de 2020,
você alertava para a repetição desses episódios se nada fosse feito. Acredita
que os incêndios do Pantanal estão diretamente relacionados com o ataque de
2020, quando sob evidentes incentivos do então ministro do meio ambiente e da
presidência da República um terço do bioma foi queimado em menos de um mês? O
ressecamento progressivo do bioma aumenta as possibilidades de novos incêndios?
Neiva
Guedes: Os incêndios de 2020 contribuem para
que a vegetação agora não esteja tão alta em lugares que já foram queimados. O
maior problema é quando ficam áreas por anos, por muito tempo sem queimar, sem
algum controle de manejo integrado de fogo, e aí sim viram grandes incêndios.
Não acredito que a atual onda de incêndios seja efeito direto de 2020, na
realidade os efeitos são das mudanças climáticas que vêm ocorrendo já nos
últimos anos de uma forma mais acelerada, com a quantidade de chuva cada vez menor,
mais espaçada, o menor volume, aumento das temperaturas, aumento da baixa
umidade e os ventos fortes, que geram uma confluência inclusive de fatores
externos ao Pantanal ou ao Cerrado. Isso porque muitas vezes nem se consegue
agir só localmente, pois o efeito é global, vem de uma série de fatores, não só
dos incêndios passados.
Mas, sim, o Pantanal
vem se encaminhando desde aqueles incêndios para um período de maior seca, de
grandes temporadas de seca. Há toda uma alteração do ecossistema, com maiores
danos somados aos incêndios atuais, porque se uma espécie ou algumas espécies
já estavam fragilizadas com os incêndios de 2020, com novos incêndios agora só
vão se tornar mais frágeis.
Cito o exemplo das
araras azuis, que são atingidas pelo fogo não só no momento em que ocorrem,
como foi em 2019 e 2020, quando monitoramos sua época de reprodução e vieram os
incêndios, com quase 50% dos ninhos afetados, perda de árvores, ovos e filhotes.
O que não foi diretamente queimado, acabou afetado pela fumaça, que perdurou
até a última estação reprodutiva. As araras tiveram diminuição em suas taxas de
reprodução. E os filhotes apresentavam lesões na cloaca, com uma maior
manifestação de baixa imunidade, como lesões na pele, desenvolvimento mais
lento, maior número de filhotes anões em relação ao observado nos 30 anos
anteriores. Temos um artigo publicado sobre isso, no qual mostramos que cerca
7% dos nascimentos têm desenvolvimento mais lento e podem ser araras anãs.
Depois dos incêndios houve um aumento de nascimento de araras anãs no Pantanal.
Os efeitos do fogo perduram.
·
O Brasil registra
queda no desmatamento da Amazônia e mesmo de outros biomas, mas isso ainda é
suficiente? Não deveríamos entender que uma política mais assertiva de meio
ambiente é urgente como nunca?
Neiva
Guedes: Sem dúvida nenhuma diminuíram os
desmatamentos na Amazônia, no Cerrado, o que certamente vão ajudar na melhora
de nossas questões ambientais. Mas penso o seguinte: não é só questão de
governos, as pessoas também têm de pensar suas atitudes. É claro que governo é
importante, porque faz a legislação, fiscaliza, autua, mas não acredito que
seja só uma questão de governo, tem que ser das pessoas, todo mundo precisa
tomar decisões sobre sua vida diária, sobre o que deixar para o futuro, porque
estamos num momento de mudanças climáticas. Elas já estão acontecendo e já
estamos diante de efeitos que não têm mais volta.
A única coisa que
podemos decidir é a profundidade disso, o que queremos fazer daqui por diante
para as futuras gerações, porque os efeitos já chegaram. Se eu fosse totalmente
pessimista não trabalharia com conservação ambiental. Portanto, acredito que podemos
mudar, não só com grandes ações, mas também escolhas diárias, pensando nas
futuras gerações, na qualidade de vida e na saúde e bem-estar de todos. E
quando falo todos não me refiro somente ao ser humano, mas a todos os seres da
Terra.
Dito isso, é óbvio que
o governo precisa exercer seu papel, legislar de forma abrangente pelo país.
Não adianta proteger só um bioma, está tudo interligando e o que ocorre em um
bioma afeta o outro.
·
O Rio Grande do Sul
acabou de passar por chuvas que destruíram o estado em proporções inéditas e,
segundo diversos climatologistas, o fenômeno, que vem se repetindo, tem relação
direta com o aquecimento atmosférico gerado no centro-oeste do país. Que consequências
podemos vislumbrar diante de mais temporada de incêndios na região? Acredita
que haverá repercussões climáticas severas em pouco tempo?
Neiva
Guedes: Sem dúvida nenhuma vamos ter os
efeitos desses incêndios na nossa pele, não tenha dúvida disso. No ano passado
já tivemos alguns picos de altíssimas temperaturas, chegamos a registrar numa
tarde no Pantanal 54 graus. Nós ainda temos ar condicionado, água gelada, nos
protegemos, mas e os bichos? E as plantas? E os outros seres? Eles não têm
defesa e tudo está interligado. Portanto, tem consequência para todos,
inclusive humanos.
O Rio Grande do Sul
foi só um fato, mas eu acredito que se não tomarmos medidas isso vai se tornar
cada vez mais frequente. Cada vez mais calamidades, umas regiões como a nossa
sofrendo com incêndios, altas temperaturas, tempo seco, inclusive escassez de
água. O ano passado tivemos seca severa na Amazônia, neste ano possivelmente
podemos ter no Pantanal, já tem rios secando... Alguns lugares vão sofrer por
falta de água, por alta temperatura e outros por frio e excesso de água.
Já estamos sentindo
isso, os efeitos já estão presentes. Mas volto a repetir: não é uma decisão só
de governo, mas também das pessoas, inclusive em relação a quem elas elegem e
entregam o poder.
·
O bioma caminha para
um padrão irreversível de destruição?
Neiva
Guedes: Se o bioma caminha para um padrão
irreversível, eu não sei, mas de grandes mudanças com certeza. Isso é fato,
nosso trabalho é um dos poucos de longo prazo onde temos observado os efeitos
diretos na questão das araras azuis, na reprodução, na população. Os danos já
estão acontecendo. Por mais que as pessoas, às vezes, não entendam ou não
queiram aceitar, é fato.
No entanto, acredito
que ainda temos tempo, sim, de pensar e tomar decisões para viver num mundo
melhor, onde não só o homem possa viver bem, mas todos os outros seres.E quando
há qualidade ambiental para os bichos, também há para os humanos e toda a biodiversidade,
que nos proporciona qualidade de ar, de vida, psicológica, emocional e também
de saúde. Porque a saúde está diretamente ligada às condições ambientais, tem
abrangência global, como a pandemia deixou de exemplo.
·
Quais seriam as ações
corretas de mitigação e o que poderia ser feito no longo prazo para a
preservação do Pantanal?
Neiva
Guedes: Existem várias. A primeira delas é
evitar desmatamento. Devemos ampliar ações de educação ambiental e ações
sustentáveis. O Mato Grosso está elaborando uma lei de proteção do Pantanal e
agora há uma tentativa de criar uma lei federal para o bioma, o que é
superimportante. É um ambiente extremamente delicado, precisa de um regramento
e de um olhar mais atento porque senão pode virar um grande deserto. É um
terreno arenoso, hoje é um dos biomas mais conservados do Brasil, mas se não
for cuidado pode acabar.
Fonte: Por Gabriel
Brito, no Correio da Cidadania
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