sexta-feira, 19 de julho de 2024

Do Pantanal ao Rio Grande do Sul, governos e sociedade precisam de um novo padrão de escolhas

A temporada de incêndios do Pantanal arrefeceu, mas as imagens de incontáveis focos de incêndio ficaram mais uma vez marcadas na memória coletiva. Com altas temperaturas e desmatamento galopante, a destruição ambiental do Centro Oeste tem relação direta com as chuvas que destruíram o Rio Grande do Sul. Além disso, a biodiversidade única do Pantanal se encontra ameaçada como nunca, enquanto o poder público começa a ensaiar apertar o cerco contra um capital destrutivo que “passa sua boiada”, para usar o jargão consagrado pelo ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Salles. Ao Correio, Neiva Guedes, bióloga e presidente do Instituto Arara Azul, explica os efeitos das últimas queimadas e afirma que chegou a hora de a sociedade fazer escolhas decisivas.

“É claro que governo é importante, porque faz a legislação, fiscaliza, autua, mas não acredito que seja só uma questão de governo, tem que ser das pessoas, todo mundo precisa tomar decisões sobre sua vida diária, sobre o que deixar para o futuro, porque estamos num momento de mudanças climáticas. Elas já estão acontecendo e já estamos diante de efeitos que não têm mais volta. A única coisa que podemos decidir é a profundidade disso, o que queremos fazer daqui por diante para as futuras gerações, porque os efeitos já chegaram”, afirmou.

A bióloga faz trabalhos de conservação ambiental no Pantanal há mais de 30 anos, de maneira que conhece as características da região como poucas pessoas. Apesar de reconhecer uma ação mais assertiva dos governos locais e federal no combate aos últimos incêndios, destaca que o tempo das mudanças climáticas já está em andamento e acontecimentos como estes, tanto no Pantanal e Cerrado, como no sul do país, tendem a se repetir.

“Se o Pantanal caminha para um padrão irreversível de destruição, eu não sei, mas de grandes mudanças com certeza. No entanto, acredito que ainda temos tempo, sim, de pensar e tomar decisões para viver num mundo melhor, onde não só o homem possa viver bem, mas todos os outros seres. E quando há qualidade ambiental para os bichos, também há para os humanos e toda a biodiversidade, que nos proporciona qualidade de ar, de vida, psicológica, emocional e também de saúde. Porque a saúde está diretamente ligada às condições ambientais, tem abrangência global, como a pandemia deixou de exemplo”, analisou.

Isto é, Neiva Guedes defende o que muitos têm chamado de direitos da natureza, o que significa não só a atualização de leis ambientais, mas sua equiparação aos direitos civis e fundamentais do ser humano. Medidas de mitigação são urgentes, mas uma reorientação de todo um modo de vida é um aspecto incontornável de todo o debate.

“Existem várias medidas a se tomar. A primeira delas é evitar desmatamento. Devemos ampliar ações de educação ambiental e ações sustentáveis. O Mato Grosso está elaborando uma lei de proteção do Pantanal e agora há uma tentativa de criar uma lei federal para o bioma, o que é superimportante. É um ambiente extremamente delicado, precisa de um regramento e de um olhar mais atento porque senão pode virar um grande deserto. É um terreno arenoso, hoje é um dos biomas mais conservados do Brasil, mas se não for cuidado pode acabar”.

<><> Leia a entrevista completa com Neiva Guedes.

·        O que você comenta a respeito da atual temporada de incêndios no Pantanal e também pelo Cerrado? O que levou a isso e quais são seus atores principais?

Neiva Guedes: Foi uma confluência de fatores. Primeiro, escassez de chuva. Nunca tivemos tão pouca chuva no Pantanal como no final do ano passado e início de 2024. O Pantanal e seus rios deveriam ter se enchido de água e isso não aconteceu. A quantidade de chuva foi bem menor. Acredito que toda chuva programada para ocorrer na nossa região acabou se desviando para o Sul do país, como defendem alguns climatologistas. O fato é que o Pantanal nunca esteve tão seco nesta temporada, no primeiro semestre, como esteve agora.

Junte-se a isso altas temperaturas, ventos fortes, baixa umidade e o crescimento da vegetação e chegamos a condições perfeitas para grandes incêndios. Tais incêndios vêm de vários fatores, mas são provocados principalmente pelo homem, ainda que nem sempre de forma intencional. Tivemos fogos que escaparam de alguém que ia queimar um lixo, acender uma fogueirinha para assar um peixe, ou mesmo de projetos e planos de manejos de fogo controlado com bombeiros e brigadistas. Estava tudo apagado e, de repente, dois, três dias depois, o fogo retorna através das turfas e acaba virando um grande incêndio.

Portanto, foi uma confluência de fatores. Porém, queimou bastante, queimou como nunca para esse mesmo período em relação a anos anteriores. Não foi o maior incêndio que ocorreu no Pantanal, mas para a época do ano foi um dos maiores incêndios e o maior percentual de área queimada.

Pra completar, este fogo não ocorreu do Pantanal de uma forma em geral. Foi muito mais ao longo do rio Paraguai, na Serra do Amolar, inclusive nos países vizinhos, como Bolívia e Paraguai. Mas não atingiu uma área como um todo. E nas nossas áreas de estudo, por exemplo, tivemos pequenos incêndios, mas não foi muito grande, como em 2019 e 2020. Tampouco coincidiu com o período de reprodução das araras, que é onde temos o maior perigo, porque queimam ninho, ovos e filhotes.

Nesse período, não tivemos isso. Porém, os incêndios, quando ocorrem, queimam tudo. E queimam principalmente as palmeiras, árvores, ninhos. Para as araras, que dependem dessas duas, três plantas para sobreviver na natureza, é um grande problema. Principalmente por serem especializadas na alimentação, isto é, comerem basicamente dois tipos de frutos de palmeiras durante toda a sua vida. Elas acabam ficando com alimentação deficitária, porque esses frutos levam cerca de um ano e meio, dois anos, para formar novos cachos. E nos incêndios passados já encontrávamos as araras comendo frutos queimados, o que leva a uma baixa imunidade dos filhotes e até desenvolvimento de algumas doenças.

·        Como observa a reação dos governos estaduais e mesmo federal a este respeito?

Neiva Guedes: Inicialmente houve uma certa demora, de alguns dias, no início de combate aos incêndios no Pantanal e no Cerrado, mas logo depois houve uma grande movimentação. Isso foi até um ponto positivo neste ano, porque rapidamente tanto o governo estadual como o governo federal com suas diversas instituições, se mobilizaram e chegaram a decretar estado de calamidade, modificação de algumas leis para que exército e corpo de bombeiro possam atuar, com aviões etc.

Enfim, houve e está havendo uma grande mobilização não só para apagar o fogo, que neste momento inclusive está apagado, depois da pequena chuva dos últimos dias e baixas temperaturas, mas também para mitigar os efeitos dos incêndios. Este foi um ponto positivo porque houve uma mobilização mais rápida dos governos em todas as esferas.

·        Em entrevista de 2020, você alertava para a repetição desses episódios se nada fosse feito. Acredita que os incêndios do Pantanal estão diretamente relacionados com o ataque de 2020, quando sob evidentes incentivos do então ministro do meio ambiente e da presidência da República um terço do bioma foi queimado em menos de um mês? O ressecamento progressivo do bioma aumenta as possibilidades de novos incêndios?

Neiva Guedes: Os incêndios de 2020 contribuem para que a vegetação agora não esteja tão alta em lugares que já foram queimados. O maior problema é quando ficam áreas por anos, por muito tempo sem queimar, sem algum controle de manejo integrado de fogo, e aí sim viram grandes incêndios. Não acredito que a atual onda de incêndios seja efeito direto de 2020, na realidade os efeitos são das mudanças climáticas que vêm ocorrendo já nos últimos anos de uma forma mais acelerada, com a quantidade de chuva cada vez menor, mais espaçada, o menor volume, aumento das temperaturas, aumento da baixa umidade e os ventos fortes, que geram uma confluência inclusive de fatores externos ao Pantanal ou ao Cerrado. Isso porque muitas vezes nem se consegue agir só localmente, pois o efeito é global, vem de uma série de fatores, não só dos incêndios passados.

Mas, sim, o Pantanal vem se encaminhando desde aqueles incêndios para um período de maior seca, de grandes temporadas de seca. Há toda uma alteração do ecossistema, com maiores danos somados aos incêndios atuais, porque se uma espécie ou algumas espécies já estavam fragilizadas com os incêndios de 2020, com novos incêndios agora só vão se tornar mais frágeis.

Cito o exemplo das araras azuis, que são atingidas pelo fogo não só no momento em que ocorrem, como foi em 2019 e 2020, quando monitoramos sua época de reprodução e vieram os incêndios, com quase 50% dos ninhos afetados, perda de árvores, ovos e filhotes. O que não foi diretamente queimado, acabou afetado pela fumaça, que perdurou até a última estação reprodutiva. As araras tiveram diminuição em suas taxas de reprodução. E os filhotes apresentavam lesões na cloaca, com uma maior manifestação de baixa imunidade, como lesões na pele, desenvolvimento mais lento, maior número de filhotes anões em relação ao observado nos 30 anos anteriores. Temos um artigo publicado sobre isso, no qual mostramos que cerca 7% dos nascimentos têm desenvolvimento mais lento e podem ser araras anãs. Depois dos incêndios houve um aumento de nascimento de araras anãs no Pantanal. Os efeitos do fogo perduram.

·        O Brasil registra queda no desmatamento da Amazônia e mesmo de outros biomas, mas isso ainda é suficiente? Não deveríamos entender que uma política mais assertiva de meio ambiente é urgente como nunca?

Neiva Guedes: Sem dúvida nenhuma diminuíram os desmatamentos na Amazônia, no Cerrado, o que certamente vão ajudar na melhora de nossas questões ambientais. Mas penso o seguinte: não é só questão de governos, as pessoas também têm de pensar suas atitudes. É claro que governo é importante, porque faz a legislação, fiscaliza, autua, mas não acredito que seja só uma questão de governo, tem que ser das pessoas, todo mundo precisa tomar decisões sobre sua vida diária, sobre o que deixar para o futuro, porque estamos num momento de mudanças climáticas. Elas já estão acontecendo e já estamos diante de efeitos que não têm mais volta.

A única coisa que podemos decidir é a profundidade disso, o que queremos fazer daqui por diante para as futuras gerações, porque os efeitos já chegaram. Se eu fosse totalmente pessimista não trabalharia com conservação ambiental. Portanto, acredito que podemos mudar, não só com grandes ações, mas também escolhas diárias, pensando nas futuras gerações, na qualidade de vida e na saúde e bem-estar de todos. E quando falo todos não me refiro somente ao ser humano, mas a todos os seres da Terra.

Dito isso, é óbvio que o governo precisa exercer seu papel, legislar de forma abrangente pelo país. Não adianta proteger só um bioma, está tudo interligando e o que ocorre em um bioma afeta o outro.

·        O Rio Grande do Sul acabou de passar por chuvas que destruíram o estado em proporções inéditas e, segundo diversos climatologistas, o fenômeno, que vem se repetindo, tem relação direta com o aquecimento atmosférico gerado no centro-oeste do país. Que consequências podemos vislumbrar diante de mais temporada de incêndios na região? Acredita que haverá repercussões climáticas severas em pouco tempo?

Neiva Guedes: Sem dúvida nenhuma vamos ter os efeitos desses incêndios na nossa pele, não tenha dúvida disso. No ano passado já tivemos alguns picos de altíssimas temperaturas, chegamos a registrar numa tarde no Pantanal 54 graus. Nós ainda temos ar condicionado, água gelada, nos protegemos, mas e os bichos? E as plantas? E os outros seres? Eles não têm defesa e tudo está interligado. Portanto, tem consequência para todos, inclusive humanos.

O Rio Grande do Sul foi só um fato, mas eu acredito que se não tomarmos medidas isso vai se tornar cada vez mais frequente. Cada vez mais calamidades, umas regiões como a nossa sofrendo com incêndios, altas temperaturas, tempo seco, inclusive escassez de água. O ano passado tivemos seca severa na Amazônia, neste ano possivelmente podemos ter no Pantanal, já tem rios secando... Alguns lugares vão sofrer por falta de água, por alta temperatura e outros por frio e excesso de água.

Já estamos sentindo isso, os efeitos já estão presentes. Mas volto a repetir: não é uma decisão só de governo, mas também das pessoas, inclusive em relação a quem elas elegem e entregam o poder.

·        O bioma caminha para um padrão irreversível de destruição?

Neiva Guedes: Se o bioma caminha para um padrão irreversível, eu não sei, mas de grandes mudanças com certeza. Isso é fato, nosso trabalho é um dos poucos de longo prazo onde temos observado os efeitos diretos na questão das araras azuis, na reprodução, na população. Os danos já estão acontecendo. Por mais que as pessoas, às vezes, não entendam ou não queiram aceitar, é fato.

No entanto, acredito que ainda temos tempo, sim, de pensar e tomar decisões para viver num mundo melhor, onde não só o homem possa viver bem, mas todos os outros seres.E quando há qualidade ambiental para os bichos, também há para os humanos e toda a biodiversidade, que nos proporciona qualidade de ar, de vida, psicológica, emocional e também de saúde. Porque a saúde está diretamente ligada às condições ambientais, tem abrangência global, como a pandemia deixou de exemplo.

·        Quais seriam as ações corretas de mitigação e o que poderia ser feito no longo prazo para a preservação do Pantanal?

Neiva Guedes: Existem várias. A primeira delas é evitar desmatamento. Devemos ampliar ações de educação ambiental e ações sustentáveis. O Mato Grosso está elaborando uma lei de proteção do Pantanal e agora há uma tentativa de criar uma lei federal para o bioma, o que é superimportante. É um ambiente extremamente delicado, precisa de um regramento e de um olhar mais atento porque senão pode virar um grande deserto. É um terreno arenoso, hoje é um dos biomas mais conservados do Brasil, mas se não for cuidado pode acabar.

 

Fonte: Por Gabriel Brito, no Correio da Cidadania



 

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