CORY DOCTOROW: ‘NEM TODA DÍVIDA DEVE SER
PAGA’
HÁ UMA SOCIOPATIA muito
reconfortante aninhada na ideologia capitalista: se os mercados são sistemas
que reconhecem e recompensam a virtude, a capacidade e o valor, quem fracassa
no sistema não é azarado, é indigno. Isso significa que os
vencedores não são apenas pessoas de sorte (muito menos só uns egoístas), mas
são de fato os melhores, e não devem nada aos socialmente
inferiores, salvo o que seus próprios impulsos caridosos determinem.
É um verniz econômico
para a velha doutrina teológica da providência divina, que afirma que Deus
demonstra suas preferências dando às pessoas fortuna e status, enquanto lança
os ímpios na pobreza. E como a crença religiosa na providência, a crença capitalista
na meritocracia é essencial para resolver a dissonância cognitiva: permite aos
vencedores de barriga cheia se sentirem moralmente justificados em passar por
cima dos perdedores famintos.
A discussão sobre
mérito e sorte nos acompanha há milênios, e mesmo os monarcas absolutistas
hereditários da Idade do Bronze precisaram encontrar uma forma de solucioná-la.
Para os governantes da antiguidade, o caminho para a quadratura do círculo era
o jubileu.
Os jubileus da Idade
do Bronze eram celebrações periódicas em que todas as dívidas eram perdoadas.
Diferentes reinos tinham diferentes calendários de jubileu, mas podemos
imaginar uma mistura entre “a cada x anos”, “toda vez que um novo governante
assumir o trono”, e “sempre que algo realmente magnífico acontecer”. Para a
sensibilidade moderna, a ideia de que poderíamos simplesmente perdoar todas as
dívidas de vez em quando é praticamente inconcebível. Por que uma sociedade
praticaria o jubileu? E, mais importante, como um governante
conseguiria fazer com que toda a classe dos credores ricos aceitasse um
jubileu, sem responder com uma derrubada revolucionária?
As melhores respostas
para essa pergunta podem ser encontradas na produção acadêmica do
historiador Michael Hudson, que
escreveu extensamente sobre o assunto. Hudson não escreve apenas para um
público acadêmico, ele também é um excelente comunicador, com um verdadeiro
compromisso de levar sua pesquisa para o público leigo.
A máxima mais famosa
de Hudson é: “dívidas que não podem ser pagas, não serão pagas”. É nessa densa
pérola que podemos encontrar a resposta para o enigma do jubileu.
Vamos começar com um
modelo simples de dívida e crédito em uma sociedade agrícola. Nas sociedades
agrícolas, tudo existe a partir da agricultura, que é a atividade central da
civilização. Se os agricultores tiverem sucesso, todos podem comer, e isso significa
que também podem fazer outras coisas, todo o trabalho não agrícola da
sociedade.
Para ter sucesso na
agricultura, é preciso ter crédito. Os agricultores chegam à estação de plantio
precisando de insumos: sementes, fertilizantes, trabalho; e precisam de mais
trabalho ainda durante a colheita. Sem algum meio de adquirir esses insumos antes de
ter uma safra que pague por eles, os agricultores não têm como produzir safra
nenhuma.
Não é de se espantar,
então, que o registro mais antigo que temos de “dinheiro” sejam livros
contábeis de crédito, que registram as dívidas dos agricultores que tomam
empréstimos garantidos pela próxima safra, para pagar pelos insumos e pelo
trabalho necessários para cultivá-la. A verdadeira origem do dinheiro não é a
permuta, é a dívida. O conto de fadas de que o dinheiro em moeda teria surgido
espontaneamente para ajudar os negociantes de permuta no mercado a facilitarem
o comércio não tem comprovação histórica, mas os livros contábeis babilônicos
podem ser vistos presencialmente em museus do mundo inteiro.
A agricultura requer
uma habilidade enorme, mas mesmo o agricultor mais habilidoso é prisioneiro da
sorte. Não importa o quanto alguém seja excelente agricultor, não importa o
quanto trabalhe duro, não importa o cuidado no planejamento, ainda é possível perder
uma colheita para doenças, seca, tempestades, ou pragas.
Assim, com o tempo,
todo agricultor perde alguma safra. Quando isso acontece, ele não consegue
pagar suas dívidas, que precisam então ser roladas e pagas com futuras
colheitas. Isso significa que, aos poucos, a parte de cada colheita a que o
agricultor tem direito vai diminuindo. Por causa dos juros compostos, nenhuma
colheita abundante consegue zerar as dívidas das colheitas ruins.
Ao longo do tempo,
então, “agricultor” se transforma em sinônimo de “devedor”. A produção dos
agricultores é cada vez mais apropriada pelos ricos e poderosos. E não importa
o quanto todos precisem de alimentos, são os caprichos da classe de credores
hereditários que passam a ditar as prioridades agrícolas do país. Mais flores
ornamentais para a mesa dos ricos, menos produtos básicos para as massas.
“Credor” e “devedor” já não descrevem relações econômicas: tornam-se castas
hereditárias.
É aí que entra o
jubileu. Sem alguma forma de interromper esse ciclo da espiral de dívida, a
sociedade se torna tão instável que o sistema entra em colapso.
Em outras palavras:
dívidas que não podem ser pagas, não serão pagas. Ou você perdoa as dívidas dos
agricultores com a classe credora, ou a sua sociedade entra em colapso, e com
ela, as relações políticas que tornavam essas dívidas possíveis de pagar.
O jubileu já acabou há
muito tempo, mas isso não significa que dívidas que não podem ser pagas serão
pagas. A sociedade moderna preencheu o espaço do jubileu com a falência, um
procedimento jurídico para livrar um devedor de suas dívidas.
A falência tem muitas
formas. A divisão mais importante em termos de falência se dá entre a falência
das elites e a falência das pessoas comuns. A sociedade de responsabilidade
limitada foi criada para permitir que pessoas com dinheiro unissem seus recursos
para financiar empresas sem se responsabilizarem por suas dívidas. Essa
“formação de capital” é considerada “eficiente” pelos economistas porque ela
cria o suporte necessário para grandes projetos ambiciosos, desde a colonização
e extração de riquezas de terras distantes (como a Companhia da Baía de
Hudson), até a criação de cadeias globais de fornecimento (Apple).
A responsabilidade
limitada significa que as empresas podem assumir dívidas sem expor seus
investidores a riscos para além de sua participação no capital. Se você
adquirir mil dólares em ações da Apple, é só isso que você pode perder se a
Apple tomar decisões ruins. A Apple pode acumular bilhões em
passivo – por exemplo, abusando de sua força de trabalho subcontratada – mas
os proprietários da Apple não responderão por isso.
Os economistas gostam
disso porque significa que você pode investir na Apple sem precisar estar a par
de todas as decisões cotidianas de gestão, o que significa que a Apple pode
acumular enormes volumes de capital, “alavancá-los” pegando ainda mais empréstimos,
e depois colocar todo esse dinheiro para trabalhar em P&D, desenvolvimento
de produtos, marketing, e, claro, “incentivos” para os principais funcionários
e gestores.
Mas a responsabilidade
limitada também faz muita coisa na esfera política. Uma vez que um
indivíduo atravessa um certo limiar de riqueza, ele se torna uma sociedade
limitada. Contadores, gestores de patrimônio e consultores financeiros insistem
nisso. Para freelancers e outros profissionais autônomos, os benefícios de
constituir uma empresa são poucos – alguns benefícios fiscais e a possibilidade
de obter um cartão de crédito empresarial com algumas vantagens.
Mas para os realmente
ricos, tornar-se a pessoa física no centro de um vasto conjunto de sociedades
limitadas é essencial, porque permite que eles acumulem dívidas e se livrem
delas. Você pode ter propriedades para alugar e maltratar seus inquilinos em segredo,
acumular um passivo enorme enquanto as autoridades aplicam pilhas de multas, e
depois simplesmente descartar a empresa e suas dívidas. Se a jogada for
planejada com bastante cuidado, a empresa devedora não terá ativos em sua massa
falida além do prédio de apartamentos em ruínas, e o credor com maior grau de
preferência e garantia será uma de suas outras empresas. Isso permitirá que o
especulador transfira seu bloco de apartamentos de um bolso para o outro,
deixando a dívida para trás.
Para uma pessoa
jurídica, a eliminação das dívidas por meio da falência é uma prática honrosa.
Longe de ser motivo de vergonha, uma falência oportuna e bem estruturada é
apenas uma comprovação de tino para os negócios. Pense nos aproveitadores de
private equity, que adquirem uma empresa com empréstimos que usam a própria
empresa como garantia, pagam a si mesmos imensos “dividendos especiais”, depois
cancelam a dívida levando a empresa à falência (o que também permite rescindir
suas obrigações com fornecedores, empregados, e, principalmente, aposentados e
suas aposentadorias). Como diria Trump (um falido em série que já passou a
perna em hordas de prestadores de serviço e credores): “isso significa que eu
sou esperto”.
A apoteose da falência
de elite pode ser vista nas colossais falências corporativas, em que uma
sociedade anônima mata e mutila inúmeras pessoas, e depois manobra para levar o
caso a um dos três tribunais federais dos EUA onde juízes especialistas batem um
carimbo “exoneração involuntária de responsabilidade de terceiros”, e assim
liquidam as obrigações da empresa perante as vítimas por centavos de dólar,
enquanto a empresa consegue manter seus bilhões.
Houve um abuso tão
óbvio do processo por empresas como a Johnson & Johnson (que passou anos
conscientemente aconselhando as mulheres a passarem em suas vulvas talco
contaminado por amianto, o que ocasionou uma epidemia de cânceres genitais
horríveis que podem levar à morte), que isso finalmente está gerando investigações e resistência em
alguma medida.
Mas a situação
precária das falências de elite tem mais a ver com a corrupção individual
do seleto grupo de juízes que
controlam o sistema do que com a indignação pública sobre suas decisões; como
um juiz no estado americano do Texas que estava secretamente transando com a
advogada para quem ele também entregava centenas de milhões de dólares.
Realmente não ouvimos
muito sobre o “risco moral” de permitir que a família Sackler, envolvida no
tráfico de opioides, mantenha dez bilhões de dólares em contas offshore, ao
mesmo tempo em que vira as costas para as vítimas de
seu império de promoção das drogas, independentemente das artimanhas bizarras
que eles empreguem para colocar em prática o golpe.
Mas quando se trata de
perdoar as dívidas de pessoas normais, o “risco moral” fica em primeiro plano.
Se você é uma pessoa que tomou um empréstimo de 79 mil dólares (R$ 432 mil) em
financiamento estudantil, pagou 190 mil (R$ 1,03 milhão) e ainda deve
236 mil (R$ 1,3 milhão), não podemos perdoar sua dívida, em razão
da mensagem que isso transmitiria às
pessoas que desejam (confere as anotações) ter um curso superior.
O lado antijubileu
também quer que a gente pense nos pobres credores: quem emprestaria dinheiro à
próxima geração de estudantes se o perdão das dívidas estudantis fosse uma
possibilidade? Claro, esses são empréstimos com garantia federal, sem risco,
dinheiro de graça para quem já tem dinheiro, uma espécie de renda básica
universal para as pessoas que menos precisam. A ideia de que esse poço de
recursos possa secar se estiver limitado a cobrar apenas as dívidas que podem
ser pagas, em vez de insistir no pagamento das dívidas que não podem ser
pagas, eleva a classe de credores hereditários ao lugar de espécie frágil, que
se assusta à toa e está ameaçada de extinção.
Mas os argumentos mais
fortes contra a falência estão assentados na noção de providência divina. Em um
mercado eficiente, qualquer pessoa que vá à falência foi necessariamente imprudente.
Ela recebeu crédito a que não tinha direito, porque lhe faltava o mérito
intrínseco que permitiria administrar esse crédito com sabedoria. Permitir que
ela deixe suas dívidas para trás significa que nunca aprenderá com seus erros,
e que os demais nascidos-para-ser-pobres aprenderão a lição errada com
essas dívidas: de que existe uma vida fácil fazendo empréstimos, gastando, e se
livrando das dívidas na falência.
Acontece que essa é
uma proposição que pode ser testada empiricamente. Se essa visão de falência
individual como fracasso pessoal estiver correta, as pessoas físicas que pedem
falência, no Brasil chamada de insolvência civil, e sobrevivem para pegar empréstimos
novamente, deveriam terminar falindo de novo, também. Por outro lado, se
aceitarmos a perspectiva do jubileu, de que a dívida resulta do acúmulo de
infortúnios, muitas vezes incluindo o infortúnio do próprio nascimento em
situação de pobreza, então a falência representa uma segunda chance, com a
oportunidade de evitar o infortúnio.
Um estudo recente dos
pesquisadores Gustaf Bruze, Alexander Kjær Hilsløv e Jonas Maibom, do Instituto
IZA de Economia do Trabalho, fez exatamente essa análise empírica. O título é “The
Long-Run Effects of Individual Debt Relief”
(Os efeitos de longo prazo do perdão individual de dívidas), e analisa a vida
das pessoas por um quarto de século após uma insolvência civil.
O estudo acompanha
algumas dessas insolvências na Dinamarca, após a introdução do primeiro sistema
moderno de falências da Europa continental, instituído pela Dinamarca em 1984.
Antes disso, os dinamarqueses, como a maior parte da Europa, não permitiam a
quitação de dívidas pessoais por meio da falência. Se um devedor fosse à
falência, aproximadamente 20% de seu salário seria extorquido pelo resto da
vida para pagar os credores, até que as dívidas fossem pagas ou o devedor
morresse (o que viesse primeiro).
Após 1984, o sistema
de falências da Dinamarca importou características da falência nos EUA/Reino
Unido/Comunidade das Nações, incluindo a possibilidade de reestruturar e quitar
as dívidas. Nem todas as pessoas se qualificam para esse tipo de falência: há
um sistema burocrático que verifica se as pessoas que estão em busca de perdão
das dívidas pela falência não têm um grande número de bens que poderiam ser
entregues a seus credores.
Mas para as pessoas de
(pouca) sorte que se qualificam para os benefícios da falência, há um
fascinante experimento natural em que o destino das pessoas que obtiveram
perdão das dívidas pode ser comparado ao de pessoas falidas que não conseguiram
se livrar de suas dívidas.
Aparentemente, a Idade
do Bronze tinha algumas coisas para nos ensinar. A conclusão principal do
estudo: as pessoas que recebem o perdão de suas dívidas na falência
experimentam “um grande aumento nos índices de renda auferida, emprego, bens,
imóveis, dívidas com garantia, casa própria e riqueza, que persiste por mais de
25 anos após uma decisão judicial”.
Após receberem os
benefícios da falência, as pessoas têm menor probabilidade de depender de ajuda
do governo. Elas conseguem empregos melhores. Suas famílias vivem melhor. Seus
credores conseguem receber alguma parte do dinheiro de volta
(que é tudo que eles podem esperar de forma realista, já que “dívidas que não
podem ser pagas, não serão pagas”).
Como Jason Kilborn
escreveu para o blog Credit Slips: “os benefícios do perdão das dívidas não são
apenas substanciais, mas robustos, uma vez que os devedores aprendem a lição
(como se houvesse algo a aprender) sobre administração de finanças, e capitalizam
(literalmente) seu recomeço”.
Mais um ponto para a
teoria da riqueza baseada na sorte, e um a menos para a hipótese da
meritocracia providencial.
Os americanos deveriam
prestar atenção nessas conclusões. Afinal, os dinamarqueses estão protegidos da
principal causa de falência nos EUA: dívidas de saúde. Nos EUA, quebrar um osso
ou ter câncer, ou até pedra nos rins, pode acabar com uma vida inteira de
trabalho duro, planejamento cuidadoso e gastos prudentes. Os EUA se recusam a
levar esse problema a sério. O melhor que conseguiram foi uma medida
(bem-vinda, mas ínfima) para proibir os serviços de proteção ao crédito de destruírem sua pontuação de crédito por dívidas de
saúde.
Milênios atrás, todos
entendiam que as dívidas que não podem ser pagas, não serão pagas, e criaram um
sistema para perdoar dívidas e libertar as pessoas produtivas da tirania do
passivo acumulado, para benefício de todos. Desmontar esse sistema exigiu de
nós a invenção de um elaborado sistema teológico, revestido com uma linguagem
econômica.
Fonte: The Intercept
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