Como o recaatingamento dá
fôlego ao semiárido
Era uma vez três ou
quatro mulheres que entraram na caatinga para catar umbu.
Enquanto faziam a
colheita, conversavam, contavam histórias e comentavam coisas de suas vidas, o
que deixava a tarefa mais leve. Então, uma delas constatou algo que todas já
tinham percebido: já não havia umbuzeiros jovens onde elas costumavam ir. As
árvores eram sempre as mesmas, todas adultas, as mesmas de onde elas colhiam as
frutas desde que eram meninas.
Aquele era um sinal
claro que a vegetação não estava se renovando.
Ninguém sabe ou não
lembra quem eram as mulheres ou onde isso teria acontecido – há quem diga que
foi em Sento Sé, outros falam em Canudos, Jeremoabo ou Uauá.
Na verdade, quem foi e
onde foi já deixaram de ser informações essenciais. O que importa é o que
aconteceu depois que essa história passou a correr solta na zona rural do lado
baiano do sertão do São Francisco. Fato ou ficção, o relato impulsionou, há 15
anos, o surgimento do recaatingamento, uma técnica até então inédita de
conservação e recuperação de áreas degradadas da caatinga.
Para recaatingar uma
área é preciso cercá-la para impedir que bodes, ovelhas e gado bovino a usem
como pasto, possibilitando que a vegetação cresça sem o risco de ser devorada
pelos animais de criação. Para dar certo, o terreno tem de permanecer fechado por
anos. Por escrito, parece fácil, mas, na prática, um cercamento desses esbarra
tanto na tradição quanto nos interesses econômicos dos próprios agricultores.
Dois agricultores,
representantes de duas gerações diferentes, explicam que a maior dificuldade é
“conseguir dialogar com o pensamento individualista”, como resume Alcides
Peixinho do Nascimento, de 70 anos, provavelmente a principal liderança dos
agricultores naquela região da Bahia. Ao seu lado, Jair Cardoso de Matos, de 25
anos, que se define sem hesitar como um discípulo de seu Alcides, emenda: “quem
mais reclama é que mais tem área cercada para fazer sua própria reserva
enquanto seus animais estão soltos no fundo de pasto da comunidade”.
A diferença de idade
não é entrave. Os dois trabalham juntos nos cuidados dos 52 hectares que estão
isolados há nove anos, encravados nos mais de 2.570 hectares do fundo de pasto
da comunidade de Ouricuri, no município de Uauá. A área se tornou uma referência
de recaatingamento bem sucedido na região.
Aqui, é necessário
entender o que significa “fundo de pasto”, pois sua existência é fundamental
para os bons resultados do recaatingamento:
Os fundos de pasto são
terras devolutas, pertencentes ao poder público, usadas por comunidades
tradicionais como pastagem por seus rebanhos. Animais de dezenas de famílias
pastam juntos, sem cercas ou currais. Esta prática nasceu na Bahia, onde foi
regulamentada por uma lei estadual de 2013, o que
garantiu “a concessão de direito real de uso das terras públicas estaduais,
rurais e devolutas, ocupadas tradicionalmente, de forma coletiva, pelas
comunidades”.
A regulamentação,
assinada pelo então governador Jaques Wagner (PT), consolidou o direito dos
pequenos produtores rurais sobre áreas que sofrem ameaças de grandes
fazendeiros, empresas de energia eólica e mineradoras. No entanto, a lei
garante a sobrevivência de outros aspectos do modo de vida dos sertanejos
baianos, relacionados às relações solidárias entre vizinhos e tradições
culturais.
O fundo de pasto não
existe nos outros estados do Nordeste, onde predomina a criação de animais
soltos no pasto.
A área fechada para
recaatingar, portanto, não é propriedade privada de uma família específica, faz
parte do território gerido e usado coletivamente. Por isso, a resistência de
alguns, afinal fechar parte do fundo de pasto, reduz o território por onde cabras,
bodes, ovelhas, carneiros e reses perambulam para se alimentar.
·
Famílias que protegem
Há, pelo menos, 40
recaatingamentos acontecendo nesse momento em 15 municípios do noroeste da
Bahia, área de atuação do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada
(IRPAA), organização não governamental que atua na assistência técnica e
organização social das famílias agricultoras desde o início da década de 1990.
Dois deles, como em Pau Ferro, em Curaçá, e Fartura, no município de Sento Sé,
estão fechadas desde 2009, pois as famílias do entorno decidiram não retirar as
cercas.
“A mata ficou tão
bonita que deixaram fechado para não acabar tudo de novo”, explica Nestor
Rodrigues Costa, o agricultor de 66 anos que está à frente do manejo de 13
hectares fechados de um total de 145 do fundo de pasto na comunidade do Frade,
em Curacá, a 468 quilômetros de Salvador. O engenheiro agrônomo Luís Almeida,
assessor técnico do IRPAA, confirma que realmente isso acontece: “hoje, as
comunidades que participaram dos primeiros cercamentos, em 2009, ainda executam
a metodologia porque compreenderam a importância da catinga em pé como uma
questão vital para as suas próprias vidas”.
De acordo com Almeida,
900 famílias estão diretamente envolvidas com a experiência, seja na manutenção
das áreas cercadas em processo de recuperação ou conservando outras que estão
em bom estado. Sem as famílias agricultoras, a ideia não seguiria adiante.
Segundo o agrônomo do
IRPAA, a tese de que é necessário tirar os seres humanos dos ecossistemas a
serem protegidas é equivocada: “existe uma afirmativa muito forte nos próprios
debates entre ambientalistas de que para se recuperar ou conservar é preciso tirar
as pessoas, mas a gente olha de outra perspectiva e vê que onde tem caatinga em
pé é onde tem comunidades tradicionais porque essas já fazem uso sustentável há
muitos anos. A partir do momento que a comunidade participa, ela cria a
consciência e o conhecimento por meio da educação ambiental”.
Recaatingar não é só
fechar a área, conforme explica Tamilo de Souza Costa, de 34 anos, filho de
Nestor e técnico agrícola do IRPAA. No início do processo, é necessário ajudar
a natureza para que ela possa fazer seu trabalho: “além do solo receber esterco
dos animais para nutrir as novas plantas, nos pontos com erosão são feitos
pequenos barramentos para reduzir a força d’água quando chove, o que controla a
desertificação”.
As intervenções
humanas são mínimas, mas um pequeno sistema de irrigação “de salvação” é
instalado para ser usado em períodos de estiagem. A água vem de um
barreiro-trincheira, escavado de maneira a reduzir a evaporação.
O recaatingamento do
Frade é recente, foi isolado há menos de dois anos, mas Nestor já é capaz de
fazer um inventário detalhado das mudanças. “Antes, tava tudo aberto, com
muitas clareiras emendando umas nas outras. Não tinha angico, não tinha jurema,
não tinha umbuzeiro, não tinha carquejo, até o caroá tava se acabando. Agora,
já tem mudas dessas plantas todas, já tem um pouco de tudo isso, algumas
plantas dessas que tinham sumido já passam de um metro de altura”, celebra.
É preciso dinheiro
para arame, estacas de concreto, bomba d’água, escavação de barreiro e
mangueira para irrigação, por exemplo. Por isso, os novos projetos de
recaatingamento estão sendo financiados pelo Ministério do Meio Ambiente e o
programa Pró-Semiárido, do Governo da Bahia, mas outras instituições como Cáritas e
Petrobras Ambiental contribuíram para tirar os primeiros projetos do papel. No
início de junho, a metodologia foi apresentada oficialmente à ministra Marina
Silva, quando visitou Juazeiro e Petrolina.
·
Proteção ambiental e
prosperidade
Em Uauá, não demorou
para as famílias envolvidas no recaatingamento perceberem que, ao invés do que
diziam os agricultores contrários à redução da área de pasto, a recuperação do
meio ambiente era um bom negócio para a economia das comunidades. E não só por
causa do aumento da coleta de umbu para fazer geleia, umbuzada, doce e até
cerveja artesanal.
Luís Almeida explica
que o aspecto produtivo é um dos pilares da metodologia do recaatingamento. “A
geração de renda é um dos pilares, é um potencial para manter as famílias no
projeto. Um diferencial para os projetos de recuperação e conservação de áreas
degradadas é a participação das pessoas, tanto no pensar quanto na execução”.
O jovem Jair Matos,
aquele que trabalha com seu Alcides Peixinho na área cercada no fundo de pasto
de Ouricuri, é uma dessas pessoas que aderiram à intensidade tanto em razão dos
resultados ambientais quanto econômicos. O recaatingamento foi decisivo para
que ele desistisse da pecuária e passasse a se dedicar à produção de mel de
abelhas nativas sem ferrão, que voltaram a frequentar a região por causa da
recuperação da mata. Essa história já contamos em outra
reportagem da série A reinvenção do
Nordeste.
Aliás, foram as
abelhas que proporcionaram a Jair uma noção clara dos efeitos das mudanças do
clima em seu cotidiano. Antes do cercamento da área perto de sua casa, ele
deixou de ver os enxames de abelhas tão comuns na sua infância e adolescência –
o que não faz tanto tempo assim. “Eram três, quatro minutos de abelhas passando
voando pelo quintal. Isso acabou de uma hora para outra”, recorda. Quando elas
começaram a voltar aos poucos, ele percebeu que criá-las poderia garantir tanto
seu sustento quanto o da natureza.
Na visita à área
isolada, ele aponta os efeitos da experiência comparando o tamanho dos pés de
carquejo, um dos alimentos preferidos de caprinos e ovinos: “fora, não passa de
um palmo de altura, não conseguem crescer porque o bode vem e come logo. Aqui dentro,
já passou de um metro”.
Seu “mestre”, Alcides
Peixinho, conhece na prática a certeza que manter a caatinga é mais rentável do
que desmatá-la para plantar milho ou feijão, correndo o risco de uma estiagem
acabar com a lavoura. Ele mantêm uma roça inusitada nos fundos da casa. Ele
planta mandacaru.
Toda a produção dos
mandacarus de seu Alcides tem comprador certo: a marca francesa de cosméticos
L’Occitane, que comercializa uma linha de sabonete, hidratante, esfoliante e
óleo para as mãos com base no cacto mais imponente do semiárido. O contrato entre
a empresa e a Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Canudos
(Coopercuc), que faz a ponte entre os franceses e o agricultor, levou a cantora Juliette a visitar o sítio de Alcides em novembro de 2021.
Alcides Peixinho, no
entanto, não ficou nem um pouco impressionado com a visita artista e
ex-participante do programa Big Brother Brasil. Ele está acostumado a receber
jornalistas, líderes políticos ou cientistas. Para ele, o recaatingamento é
resultado do conhecimento acumulado pelas comunidades rurais.
“A gente tem que ficar
atento, entender as coisas e mudar a mente. Mudando a mente com o conhecimento
a gente elimina as carências de água, saúde e educação. Nós, agricultores, não
somos respeitados pela política partidária nem pela Justiça, mas o conhecimento
veio nos libertar. Saímos do modo escravo”, declara.
O experiente
agricultor diz “acreditar nos mistérios da caatinga” e, por isso, “vê muito
sentido em fechar uma área para recaatingar: é o mesmo que criar um banco de
alimentos para os animais”.
Seu Alcides arremata a
entrevista com uma frase de efeito: “nossos direitos e saberes não têm um teto,
queremos mais, sempre mais”.
·
As mulheres do
Esfomeado
Nessa comunidade de
nome bastante incomum – a versão mais aceita para a origem do lugar é que lá
havia um ponto de parada de tropeiros, que ficaram esfomeados quando uma saca
de farinha rasgou e o alimento se perdeu -, as mulheres estão agregando valor aos
alimentos produzidos nos roçados ou colhidas na área conservada do fundo de
pasto. Reunidas na Associação das Mulheres da Fazenda Esfomeado (Amafe), em
Curaçá, as agricultoras produzem queijos, geleias, antepasto, doces e licores.
São 19 mulheres
diretamente envolvidas no cotidiano da pequena fábrica, montada com apoio do
IRPAA, de organizações internacionais e também do governo baiano. “Outras
mulheres não conseguem participar da produção, mas voltaram a colher umbu para
vender para nossa fábrica”, explica Cristiane Ribeiro, de 45 anos, que além de
agricultora é professora, historiadora e ocupa a presidência da entidade.
Produtos como geleia
de umbu, de cebola roxa, de maracujá-da-caatinga, antepasto de palma e queijo
de cabra são comercializados em feiras da agricultura familiar, em um dos Centros Públicos de Economia Solidária
(Cesol) ou no sofisticado Armazém da Caatinga,
provavelmente a loja mais sofisticada de Juazeiro, mantida pelas cooperativas
de agricultura familiar da região. Tudo que sai do Esfomeado é vendido com a
marca “Tia Odete”, em homenagem a Odete Ferreira, a principal liderança social
e política da comunidade, que está acamada com Mal de Alzheimer.
Segundo Cíntia
Graciela dos Santos, de 38 anos, “até 2023 a Amafe só se pagava, mas de um ano
pra cá começou a dar lucro. Na fundação, ninguém acreditou quando eu dizia que,
um dia, a gente teria carro, mas ano passado nosso projeto foi aprovado no
programa Pró-Semiárido e pudemos comprar nosso próprio veículo”.
O lucro não é o único
objetivo das mulheres da Amafe. “Nós somos as protagonistas das transformações
sociais, mas trazemos isso chamando os homens para discutir o feminismo e os
direitos das mulheres”, explica a presidente Cristiane.
Fonte: Por Inácio
França, no Marco Zero
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