'Como
descobrimos que nosso pai sobreviveu ao Holocausto e pode ter ajudado a caçar
nazista'
"Quando penso
nessa história sobre quem era meu pai, o que sinto é a fragilidade da vida.
Passei muito perto de não existir."
Quem fala é Viviane
Gislaine Anibal, uma psicóloga de 49 anos que, após décadas procurando saber
quem é seu pai, descobriu finalmente ser filha de um sobrevivente do
Holocausto.
Nos últimos dois anos,
ela investigou a vida do misterioso Ivan Muller, um homem branco de 1,86 metro
de altura, judeu húngaro com cidadania israelense, chamado de "vigarista
internacional" pelos poucos que se lembram dele, bígamo, e suspeito de
participar da caçada a um notório nazista que se escondeu na América Latina.
Essa história trágica
e cheia de suspense, personagens fugidios e votos de silêncio, começa em 8 de
novembro de 1944, quando o jovem Ivan foi capturado em Budapeste e enviado ao
campo de concentração de Dachau, próximo de Munique, na Alemanha.
Ivan foi transportado
para a morte no momento derradeiro da Segunda Guerra Mundial: as tropas dos
Aliados cercavam a Alemanha de Adolf Hitler, a derrota do Eixo era iminente,
mas, ainda assim, os nazistas trabalhavam para acelerar a chamada "Solução
Final", como ficou conhecida a ordem do Führer para o extermínio em massa
dos judeus da Europa.
Não se sabe como, mas
Ivan sobreviveu ao massacre e conseguiu fugir em abril de 1945, momento em que
a Alemanha perdeu finalmente a guerra que matou 6 milhões de judeus como ele —
no total, entre 50 e 70 milhões de pessoas morreram em todo o conflito.
Depois de Dachau,
acredita-se que Ivan tenha ido parar nos territórios palestinos, participado da
incipiente população do Estado de Israel, porque ele tinha cidadania
israelense, como indicam seus documentos obtidos pela família.
No ano de 1960, ele
apareceu na Argentina, país que serviu de esconderijo para milhares de nazistas
e de onde ele e sua mulher — a húngara-israelense Judit Weiss — foram para o
Brasil.
O casal foi viver em
Higienópolis, bairro de São Paulo conhecido por sua comunidade judaica. No
início da década de 1970, Ivan foi dono da loja de decorações Judithy — nome em
homenagem à esposa — na alameda Lorena, próximo à avenida Paulista.
Mas ele também
mantinha relações extraconjugais — ou era, nas palavras de sua filha Viviane,
"um abusador" — e teve outros três filhos fora do casamento. Depois,
desapareceu da vida das crianças.
Três filhos de Ivan —
não se sabe o paradeiro do quarto — só descobriram ser da mesma família há dois
anos, por meio de um teste de DNA.
Desde então, o trio
está investigando a história do pai e desconfia que ele pode ter participado da
operação que prendeu um dos nazistas mais importantes da Segunda Guerra, Adolf
Eichmann, capturado em Buenos Aires em maio de 1960 por um grupo de agentes do
Mossad, a polícia secreta de Israel.
Toda essa história,
conhecida apenas por fragmentos, será contada no documentário Papai era
Espião!, do cineasta Luiz Carlos Lucena, previsto para estrear no segundo
semestre de 2025.
"Sou amigo da
Viviane há alguns anos. Um dia, ela me perguntou se eu não queria acompanhá-la
em um exame de DNA. Por que não? Foi quando o mundo do Ivan Muller se abriu
para mim. Quem era esse cara? Ele era um espião? Era um vigarista?", diz
Lucena, enquanto dirigia seu carro na marginal Pinheiros em uma sexta-feira de
abril.
Este será o 12º filme
do currículo de Lucena, que é autor do livro Como fazer documentários (Ed.
Summus).
"É a história de
uma vida, com muitas camadas: Segunda Guerra, diáspora dos judeus para a
América Latina, caçada por nazistas, machismo, racismo. Fiquei absolutamente
obcecado."
• 1 - O judeu húngaro
O exame de DNA colocou
Viviane e sua irmã, a corretora de imóveis Mônica Anibal, de 50 anos, frente a
frente com o produtor cultural Ronaldo André Muller, de 62 anos.
Meses antes, Ronaldo
recebeu uma ligação. "Era uma mulher falando que podia ser minha irmã.
Achei que fosse um golpe e passei o telefone para minha esposa. Mas ela
insistiu", diz o produtor, em uma sala do condomínio onde mora, no
Morumbi, na Zona Sul de São Paulo.
"Como sempre tive
curiosidade sobre meu pai, resolvi fazer o exame."
O teste constatou que
há 97% de chance de Viviane e Ronaldo serem irmãos. Já entre Mônica e Ronaldo,
há 87% de probabilidade.
Uma coincidência entre
os três irmãos era o absoluto silêncio que suas mães mantinham sobre a figura
do pai.
Em nenhum momento, até
o final de suas vidas, Ana Maria Anibal — mãe de Viviane e Mônica —, e Katarina
Walter, mãe de Ronaldo, falaram com os filhos sobre a relação que tiveram com
Ivan Muller.
"Quando eu era
criança, não sabia nem o nome dele", conta Viviane.
"Perguntei várias
vezes sobre quem era meu pai. Minha mãe nunca falou nada, absolutamente nada.
Ela se fechava. Era só silêncio, silêncio, silêncio."
Mas um dia, na
infância, uma tia de Viviane soltou uma informação preciosa: "Ela sempre
me via perguntando. Chegou em mim, e falou: 'O nome do seu pai é Ivan Muller,
ele é judeu húngaro'. Não entendi nada, mas aquilo ficou por anos na minha
cabeça. Aquele nome. Judeu húngaro?".
Quando tinha 18 anos,
em 1995, uma amiga ajudou Viviane a conseguir o endereço de Ivan: um
apartamento em Moema, bairro de classe média alta na Zona Oeste da cidade.
"Pensei: 'quer
dizer que meu pai é um branco rico, e eu aqui passando esse perrengue?'",
lembra a psicóloga.
"Não sei, fiquei
com vergonha de procurá-lo. Então, deixei para lá". Mas as perguntas sobre
Ivan martelaram sua cabeça por décadas.
Na pandemia, trancada
em casa, resolveu mexer no vespeiro. "Decidi enquadrar minha mãe. Ela
estava idosa, no começo do Alzheimer. Mas quando toquei no assunto, ela passou
mal e foi parar no hospital. Vi que dali não iria sair nada", diz.
Ana Maria e Ivan se
conheceram por volta de 1970 em uma fábrica de bonecas que ele mantinha atrás
de sua loja, onde ela trabalhou como costureira.
"Na família, a
história que se conta é que uma noite minha mãe apareceu com um bebê
recém-nascido. Ela morava com meus avós. No dia seguinte, de manhã, o bebê não
estava mais lá, e aí não se falou mais nisso", conta Viviane.
Ela e sua irmã Mônica
acreditam que esse bebê, um menino entregue para adoção, seja o primeiro filho
de Ana Maria e Ivan. "É uma ponta solta que gostaríamos muito de
investigar, saber onde ele está. Mas não temos nenhuma informação", diz.
Mônica não quis dar
entrevista para esta reportagem nem ao documentário de Lucena.
Até a
pré-adolescência, ela foi criada por outra mulher, em uma casa na região
central de São Paulo, e depois voltou a morar com a família biológica.
Viviane acredita que a
relação de seus pais era pautada pelo racismo e pelo abuso.
"Minha mãe era
uma mulher negra, de 20 anos e lindíssima. Ele era o patrão europeu, 20 anos
mais velho, casado e rico", diz.
"Ela engravidou
três vezes, e ele fingiu que não era com ele. Nunca participou da nossa
criação. Minha mãe sofreu muito."
A aposentada Darcy
Antônia Braga, de 83 anos, conheceu Ivan nos tempos em que sua amiga Ana Maria
se relacionou com ele - Darcy confirma que ele tiveram outro filho, além de
Mônica e Viviane.
"Pensa em um
trapaceiro… O Ivan era um trapaceiro de primeira, um velho sem vergonha, mau
caráter", contou Darcy, em entrevista ao documentário.
Já a biomédica Juliana
Leibovitz, de 60 anos, conviveu com Ivan na infância, quando ele frequentava a
casa de sua família, também de origem húngara.
"Ela ia em casa
com a Judit. Ficavam conversando com meus pais, como amigos. A memória que
tenho dele é de um bon vivant, um homem que gastava muito dinheiro, gostava de
sair e de se divertir. Ele não era muito levado a sério", diz Juliana.
Ana Maria nunca mais
falou sobre seu relacionamento com Ivan até sua morte, em dezembro de 2023, aos
73 anos. Mas suas filhas queriam desvendar o mistério.
Elas contrataram um
detetive, que achou alguns documentos de Ivan. Um deles apontava que ele tinha
um filho registrado em seu nome: o produtor cultural Ronaldo Muller, nascido em
1961. As duas foram atrás dele.
• 2 - Um vigarista internacional
"Fui criado com
minha mãe, avó e tias. Eu perguntava quem era meu pai, e elas ficavam nervosas,
mudavam de assunto", conta Ronaldo.
"A única coisa
que ouvia era: 'Seu pai é um bígamo, um vigarista internacional. Essas palavras
nunca saíram da cabeça: bígamo e vigarista."
Quando tinha 10 anos,
Ronaldo foi chamado no portão da sua escola. "Apareceu um homem
bem-vestido, em um carro bonito. Lembro muito bem do que ele disse: 'Sou Ivan
Muller, seu pai e, a partir de agora, a gente vai se ver sempre'. Lembro de ter
ficado muito feliz", conta o produtor.
"Por um ano, ele
sempre aparecia. Eu ia no apartamento dele. Ele era casado com uma mulher
chamada Judit. Fui na loja. A gente jogava futebol, e ele me levava no
(estádio) Parque Antártica para ver jogos do Palmeiras", diz.
"Mas, de repente,
ele sumiu. Fui ao apartamento, e o porteiro disse que ele não morava mais lá.
Perguntei para minha família, mas ninguém respondia. Minha mãe nunca tocava no
assunto. Nunca mais o vi. Cresci com isso", conta Ronaldo.
A mãe de Ronaldo,
Katarina Walter, também era húngara e se refugiou do nazismo no Brasil, mais
precisamente na Vila Buarque, bairro vizinho a Higienópolis, onde Ivan morava.
Ronaldo conta que a
família escondia a origem judaica — ele só descobriu isso já adulto, e acredita
que seus pais podem ter se conhecido em encontros da comunidade de imigrantes
húngaros que viviam em São Paulo no início dos anos 1960.
Ivan e Katarina
chegaram a se casar, mas ela pediu o divórcio logo depois, ao descobrir que seu
marido já era casado com outra mulher.
Katarina nunca mais
falou sobre Ivan, mantendo um voto de silêncio até sua morte, de câncer, em
1994, aos 51 anos.
Mas a curiosidade
sobre o pai nunca abandonou Ronaldo. No início da década de 1990, ele pediu
ajuda ao rabino Henry Sobel (1944-2019), então a principal liderança judaica em
São Paulo.
"Contei a
história e perguntei se ele me ajudaria a encontrar o Ivan. Ele falou que iria
tentar. Passou um tempão, até que um dia ele ligou e disse que não tinha
encontrado nada. E, nessa época, o Ivan ainda estava vivo."
Em 1997, Ronaldo
recebeu um telefonema de um estranho. "Era um homem que dizia ser amigo do
Ivan. Falou que ele tinha morrido de câncer e que, no final da vida, me
procurou em São Paulo, mas não me encontrou", diz o produtor.
O atestado de óbito
aponta que Ivan Muller morreu de câncer no pulmão no hospital Albert Einstein,
em São Paulo, em 8 de outubro de 1997.
• 3 - Ivan Muller e Adolf Eichmann
Ivan Muller nasceu em
8 de junho de 1929, segundo os documentos obtidos pela família em Budapeste e
em Dachau.
Mas seu passaporte e
ficha na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo apontam outra data: 15 de
junho de 1920.
Um amigo de Viviane,
um historiador que vive na Europa e colaborou anonimamente com o filme,
encontrou o nome de Ivan na lista de pessoas que sobreviveram a Dachau, um dos
maiores campos de concentração da Alemanha nazista.
A vida dele está
relacionada à ação do tenente-coronel Adolf Eichmann, como mostram os
documentos relativos aos dois.
Ivan e Eichmann
estiveram ao mesmo tempo na mesma cidade em duas ocasiões. A primeira foi em
abril de 1944, em Budapeste.
Naquele mês, Eichmann
foi enviado à Húngria para tentar acelerar o transporte de judeus para campos
de extermínio, como Auschwitz, na Polônia.
Eichmann chegou a
levar seus subordinados para Budapeste, porque a cúpula nazista acreditava que
o massacre estava lento demais naquele país.
Em pouco mais de dois
meses, o trabalho de Eichmann em Budapeste causou a morte de pelo menos 470 mil
judeus, a maioria deles enviados para a câmara de gás em Auschwitz.
Já Ivan Muller foi
capturado pelos nazistas em 8 de novembro de 1944. Dias depois, foi enviado a
Dachau. Tinha 15 anos quando chegou.
A passagem de Eichmann
pela capital húngara é narrada pela filósofa alemã Hannah Arendt em Eichmann em
Jerusalém (ed. Cia. das Letras), um relato jornalístico sobre o julgamento do
nazista em Israel, em 1962.
Arendt descreve
Eichmann como um burocrata sem grandes qualidades, mentiroso contumaz,
carreirista que entrou no partido nazista para crescer profissionalmente, fiel
à hierarquia e servidor dedicado a seguir ordens — mesmo que a ordem fosse
assassinar milhões de pessoas.
Segundo a acusação,
Eichmann foi o único alemão que, do início ao fim do regime de Hitler, ficou
integralmente dedicado a solucionar a chamada "Questão Judaica" - ou
seja, o que fazer com os milhões de judeus da Europa, pois, para os nazistas, o
judaísmo era o "oponente".
Eichmann foi um dos
principais responsáveis por viabilizar as três "soluções" conhecidas
como judenrein (limpeza de judeus), embora ele nunca tenha ocupado um cargo no
primeiro escalão da ditadura de Hitler.
A primeira solução foi
a deportação forçada dos judeus da Alemanha e dos países anexados pelo Terceiro
Reich.
A segunda foi a
"concentração" em guetos e campos. Eichmann liderou a burocracia que
identificava e transportava judeus por meio de redes ferroviárias.
Já a "Solução
Final" foi a ordem de Hitler para o assassinato em massa de toda a
população judaica da Europa, comunicada à cúpula nazista na Conferência de
Wannsee, em 20 de janeiro de 1942.
Eichmann estava na
reunião e, segundo seu depoimento, não apenas nenhum dos presentes se opôs à
ordem do Führer, como todos passaram imediatamente a planejar como colocá-la em
prática.
Eichmann foi um dos responsáveis
pela criação dos campos de extermínio e por levar milhões para a morte por
fuzilamento ou nas câmaras e caminhões com gás venenoso.
Em 1962, ele foi
condenado à morte por enforcamento. "Falar demais foi o vício que arruinou
Eichmann", escreve Hannah Arendt.
"Era bazófia pura
quando ele disse aos seus homens nos últimos dias de guerra: 'Eu vou dançar no
meu túmulo, rindo, porque a morte de 6 milhões de judeus na consciência me dá
enorme satisfação'. Ele não dançou."
• 4 - Ivan na Marcha da Morte
"A gente
precisava ir à Europa para entender a história do Ivan na Segunda Guerra",
conta o cineasta Luiz Carlos Lucena.
Ele conseguiu
autorização para gravar em Dachau e levou os irmãos Viviane e Ronaldo para a
Alemanha e, depois, para Budapeste, em junho deste ano.
Eles visitaram os
dormitórios onde Ivan ficou por cinco meses, além dos crematórios usados pelos
nazistas para desaparecer com os corpos das vítimas.
"Quando entrei,
tive uma sensação pavorosa. Não dei conta", relata Viviane.
"Achei que fosse
vomitar, mas não consegui. Fiquei com aquele peso por três dias, até que
finalmente coloquei para fora."
Ronaldo conta que, só
de entrar naquele lugar já ficou emocionado, tentando imaginar Ivan ali.
"Ele tinha 15
anos. Na ficha, falava que ele seria em breve enviado para a morte", conta
o produtor.
Ivan Muller ficou em
Dachau até 29 de abril de 1945, quando o Exército americano já cercava a
região.
"Descobrimos que
ele participou das Marchas da Morte", conta Viviane.
Com a iminência da
derrota e a rede de transporte destruída, a cúpula alemã ordenou que os
prisioneiros em outros países fossem levados a pé para campos de extermínio na
Alemanha.
Essas longuíssimas
caminhadas, cuja organização também coube a Eichmann, ficaram conhecidas como
"Marchas da Morte" por conta do alto número de mortos por cansaço,
fome ou fuzilamento.
"Em Dachau, nos
disseram que muitos se salvaram se fingindo de mortos quando ouviam um tiro
perto. Pode ter sido dessa forma que Ivan sobreviveu. Ele era um menino",
conta Viviane.
O que aconteceu com
Ivan depois de escapar dos nazistas também é um mistério que os dois irmãos e
Lucena ainda não conseguiram desvendar. O que ele fez entre 1945 e 1960? Onde
estava?
"Há várias
lacunas na vida do Ivan. Os documentos mostram que ele tinha cidadania
israelense. Mas ele foi viver em Israel mesmo? Ele foi trabalhar com o
Mossad?", diz a psicóloga.
No entanto, os
documentos obtidos pela família apontam em uma direção: Adolf Eichmann.
• 5 - Operação Final
A segunda vez que Ivan
Muller e Adolf Eichmann estiveram ao mesmo tempo na mesma cidade foi em maio de
1960, em Buenos Aires, quando o nazista foi sequestrado por agentes do Mossad.
Após o fim da guerra,
Eichmann viveu escondido por alguns anos na Áustria. Em 1950, entrou na
Argentina usando documentos falsos.
Estima-se que 9 mil
nazistas fugiram para a América do Sul utilizando as chamadas "rotas de
ratos", que passavam por países como Dinamarca, Itália e Suécia. O
principal destino foi a Argentina, cujo presidente, Juan Domingo Perón, era
simpatizante do nazismo.
Como escreveu Hannah
Arendt, Eichmann morreu pela boca. Embora vivesse em Buenos Aires com o nome
falso de Ricardo Klement, ele não se furtava a falar sobre sua verdadeira
história na comunidade alemã da cidade, relata a escritora.
Porém, foi seu filho
Klaus quem o denunciou. O jovem tinha um relacionamento com uma adolescente
judia chamada Sylvia, e um dia contou à namorada que seu pai tivera um cargo
importante no Terceiro Reich.
O pai da garota,
Lothar Hermann, um judeu alemão que emigrara para a Argentina antes da guerra,
desconfiou que o sogro da filha era Adolf Eichmann. Ele acionou a polícia de
Israel, que montou uma operação para prendê-lo.
Essa história é
narrada em Baviera Tropical (ed. Todavia), da jornalista Betina Anton, que
investigou a saga de Josef Mengele, um dos médicos de Auschwitz, conhecido como
"Anjo da Morte" por suas experiências macabras e por ser responsável
pela morte de milhares nas câmaras de gás.
Segundo o livro,
Mengele também viveu na Argentina, se encontrou algumas vezes com Eichmann,
mas, após o sequestro e julgamento do colega nazista, se escondeu no Paraguai
e, finalmente, no Brasil, onde viveu por quase 20 anos até morrer afogado em
1979 em uma praia de Bertioga, no litoral paulista.
"O
primeiro-ministro de Israel na época, David Ben-Gurion, queria que um nazista
famoso fosse levado a julgamento em Jerusalém. Ele queria mostrar à geração
mais jovem o que foi o Holocausto, pois, no imediato pós-guerra, não se sabia
direito como tinha sido", diz Anton.
"O julgamento de
Eichmann ficou famoso, porque ele foi o primeiro a ser encontrado. Os
depoimentos das vítimas foram televisionados com tradução simultânea."
Eichmann foi capturado
por agentes do Mossad quando voltava para casa depois de um dia de trabalho na
fábrica da Mercedes-Benz.
"Os agentes
israelenses do Mossad tiveram ajuda de várias pessoas da comunidade judaica de
Buenos Aires, que era grande. Pessoas que cederam carros, alugaram casas,
mostraram a cidade. Dezenas de pessoas participaram", diz Anton.
A jornalista
entrevistou, em 2017, Rafi Eitan (1926-2019), comandante de operações do Mossad
no sequestro do nazista.
Eichmann foi mantido
em uma casa em Buenos Aires por dez dias até ser levado, dopado, para Israel em
um voo comercial.
O problema é que a
operação foi ilegal e violou a soberania da Argentina, aponta a Anton.
"O sequestro
criou um problema diplomático por alguns meses. Israel chegou a ser condenado
no Conselho de Segurança das Nações Unidas", diz a jornalista.
Segundo uma reportagem
do jornal argentino Infobae, que anos depois tentou reconstituir a famosa
operação, a casa usada como cativeiro era de uma mulher chamada Yudith Nasiahu.
Ela supostamente
trabalhava para o Mossad e havia simulado um casamento com outro israelense
para conseguir alugar a residência.
A família de Ivan e o
cineasta Luiz Carlos Lucena acreditam que Yudith Nasiahu e Judit Weiss, mulher
de Ivan, podem ter sido a mesma pessoa, mas reconhecem que dificilmente
conseguirão provar essa teoria, mais de 64 anos depois.
A BBC News Brasil
procurou o Museo del Holocausto de Buenos Aires, dedicado à história dos
refugiados judeus na Argentina. Após um mês de buscas, os pesquisadores
disseram não ter encontrado nenhuma informação sobre a passagem de Ivan e Judit
Weiss pela cidade em 1960.
Também afirmaram não
haver elementos para dizer que Judit Weiss e Yudith Nasiahu eram a mesma
pessoa. A reportagem não encontrou nenhuma informação sobre Judit Nasiahu, além
das poucas citações ao seu nome em textos sobre a chamada "Operação Final".
• 6 - Um novo nome
Os documentos mostram
que Ivan e Judit Weiss entraram no Brasil por Porto Alegre em 19 de junho de
1960, com um "salvo-conduto" expedido pelo Consulado de Israel na
Argentina.
Segundo um defensor
público federal especialista em imigração consultado pela reportagem, o
salvo-conduto, normalmente dado em tempos de guerra ou conflitos territoriais,
é um documento de viagem ligado ao asilo diplomático, concedido para pessoas
sob risco de sofrer alguma perseguição ou sanção, como prisão.
O defensor falou à BBC
News Brasil em condição de anonimato por ter comentado sobre o tema de forma
geral e não ter analisado o caso específico.
O especialista explica
que esse documento, geralmente expedido por uma embaixada estrangeira, permite
que uma pessoa possa entrar em outro país sem a necessidade de visto ou
passaporte.
O que não era o caso
de Ivan e Judit, que, embora tivessem o salvo-conduto, entraram no Brasil com
passaportes e cidadania israelenses.
Esse é outro ponto
que, para a família, só aumenta o mistério em torno de Ivan. Para Lucena, essa
história talvez nunca seja revelada por inteiro.
Ele participou do
sequestro de Eichmann? Caçava outros nazistas no Brasil? Ou era só um vigarista
bem de vida que engravidava mulheres e as abandonava com os filhos nos braços?
"Para mim, o
importante da história não é o resultado", diz o cineasta.
"Se eu fosse
chutar, diria que eles estavam envolvidos no sequestro, sim. Eles pareciam
estar fugindo da Argentina. Entraram no Brasil com salvo-conduto, em um período
em que não havia guerra. Mas não sei se chegaremos a uma resposta. Para mim, o
importante é a busca, a procura dos filhos por esse pai."
Dois anos depois do
início das gravações, Ronaldo e Viviane dizem que mudaram sua perspectiva sobre
o pai.
"Ele sempre foi
um vigarista, um bígamo que abandonou minha mãe. Hoje, acredito que ele estava
nos protegendo de alguma forma. Para mim, ele é um herói. Ganhei um pai e duas
irmãs", diz Ronaldo.
Para Viviane, a busca
por Ivan Muller a ajudou a se reconciliar com o "pai ausente e
abusador".
"Hoje ele é outra
pessoa para mim, fiz as pazes, por tudo o que ele passou… Descobri essa minha
origem judaica, descendente do Holocausto, judia preta, filha de mãe retinta.
Não é pouca coisa. Foi Ivan quem me deu essa história. E sei que passei muito
perto de não estar aqui”.
Nos últimos meses, a
psicóloga finalmente conseguiu incluir o sobrenome do pai em seus documentos:
Viviane Gislaine Anibal Muller.
Fonte: BBC News Brasil
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