Cidades: convite a outras cosmovisões
Escuta? São os gritos
de socorro das cidades. A catástrofe no Rio Grande do Sul, deixando rastros de
lama e mortes, é o mais recente deles no Brasil. Afinal, são tempos de eventos
climáticos extremos – de grandes inundações e secas a ondas de calor extremo –
nas cidades. E o preço da inação é mais alto que o boleto enviado ao poder
público por consultorias estrangeiras e grandes empreiteiras para a
reconstrução de cidades.
Neste ano pré-COP, os
olhos do mundo estão voltados para a Amazônia – e outros biomas ameaçados. Com
justiça, evidentemente. Os ativismos, principalmente os indígenas, lançam-se em
defesa da “floresta em pé”, numa batalha corajosa contra o agronegócio, as
mineradoras e as petroleiras. A questão urbana diante da crise climática, no
entanto, é uma pauta a se batalhar por mais espaço – afinal, segundo a ONU
Habitat, as cidades ocupam 2% da superfície da Terra, mas consomem 78% da
produção de energia e produzem mais de 60% das emissões de gases de efeito
estufa.
No Brasil, elas
representam menos de 1% do território nacional (0,63%) e concentram 160 milhões
de pessoas, ou seja, 84,3% da população; quase um terço dela em metrópoles. O
modelo de assentamento, quase sempre, é o de “fortaleza de concreto, aço e
asfalto” que assassinou, no último século, biomas inteiros, rios, lagos e
lençóis freáticos; devastou a biodiversidade que resistia no espaço urbano; e
expulsou milhões para as periferias, muitas delas erigidas em áreas de risco.
Os furos no muro das
cidades-fortalezas são visíveis e, cada vez mais, grotescos, sustenta o
filósofo Aílton Krenak, primeiro indígena eleito para a Academia Brasileira de
Letras. “O corpo da Terra não aguenta mais cidades”, diz em seu O Futuro
Ancestral, “pelo menos não essas que se configuram como uma continuidade das
pólis do mundo antigo, com gente protegida por muros, e o resto do lado de fora
– que pode, inclusive, tanto ser bichos selvagens quanto indígenas,
quilombolas, ribeirinhos, beiradeiros”. Não trata-se de um sentimento
anti-urbano infantilóide nem de uma visão ecológica romantizada de “volta ao
passado”: Krenak busca escancarar a potência destrutiva do capitalismo, o
aceleracionismo da vida nas cidades grandes e o modelo colonial que forjou o
Brasil urbano num contexto em que os velhos paradigmas ocidentais mostram-se
insuficientes para a formulação de políticas públicas que possam mitigar a
crise socioambiental em curso.
Apesar da propaganda
negacionista da ultradireita, a população brasileira parece dar-se conta do
abismo a que o indígena se refere, se nada mudar. A mais recente pesquisa do
Datafolha mostra que 97% dela percebe no dia a dia que o planeta enfrenta uma
crise climática. Um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), em parceria com a Universidade de Oxford, aponta que 76% da população
brasileira está preocupada com os efeitos desta crise sobre a próxima geração.
Afinal, é difícil fechar os olhos ao fato de que mais de 2,2 milhões de
moradias no Brasil foram danificadas ou destruídas por tempestades e inundações
nos últimos 10 anos. E 708 mil pessoas tiveram de abandonar suas casas – boa
parte em áreas inadequadas à moradia – em 2022, como mostra a Confederação
Nacional dos Municípios (CNM). São os “desterrados climáticos”.
No entanto, quatro em
cada dez brasileiros afirmam que o governos federal, as gestões estaduais, as
prefeituras, a sociedade e as grandes empresas do país nada fazem para mitigar
os impactos – com razão, pois mais de 90% dos municípios brasileiros não têm
estratégias suficientes contra enchentes e deslizamentos, mostra uma pesquisa
realizada pelo Instituto Cidades Sustentáveis.
Não faltam planos nem
leis “avançadíssimos” para lidar com esta crise urbana, é o que sempre insiste
a urbanista Ermínia Maricato. Virão muitos outros agora – necessários, claro,
para nossa incompleta democracia liberal. Porém, em quais bases eles serão erigidos?
A resposta não demanda grande esforço: a economia capitalista, estúpido! Outra
questão, no entanto, pode ser mais complexa: para o campo progressista, quais
os pilares que deveriam reorientar o planejamento urbano? A resposta rápida
seria direcioná-lo para a redução das desigualdades a partir da justiça
socioclimática. Ponto! Mas e se outras cosmovisões de mundo pudessem – e muito
– contribuir para isso?
Afinal, a promessa da
cidade moderna, forjada na Idade Média, era de transcender as trocas mercantis,
tornando-se um lugar privilegiado de novas sociabilidades e sensibilidades –
uma plataforma de igualdades! Ela não se cumpriu. Por isso, aqui proponho um
exercício. Em vez de elucubrar ações concretas emergenciais ou mesmo de longo
prazo, nos debruçarmos sobre estas outras cosmovisões de cidade, a partir de
duas delas: a indígena e a quilombola, teorizadas respectivamente por Antônio
Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, falecido ano passado; e o já citado Krenak.
Mesmo de forma tímida e localizada, o pensamento destes autores começa a ganhar
algum relevo na mídia, na Academia e na gestão pública, alavancado pela crise
climática. E mostra a necessidade urgente do planejamento urbano brasileiro
encarar as alteridades humanas e não-humanas – em “um inexorável esforço
analítico para entender, com o intuito de superar, a lógica da colonialidade
por trás da retórica da modernidade, a estrutura de administração e controle
surgida a partir da transformação da economia do Atlântico”, como sugeriu o
pensador argentino Walter Mignolo. E, assim, procurar dentro do território
nacional insumos teóricos para romper com as “ideias fora do lugar”: a
inadequação de certas referências intelectuais e culturais na compreensão do
Brasil, geralmente made in Europa e Estados Unidos.
Vamos a elas.
• Antolhos urbanóides?
Nêgo Bispo é incômodo.
Viveu cinco anos na “cidade grande” e relatou vividamente os absurdos que viu
na urbanidade ocidental, revelando-se nas miudezas da vida cotidiana. Para
começar, certa cisão entre necessidade e capacidade. Até mesmo as tecnologias elementares
para o viver são transformadas em mercadoria: “as pessoas não sabiam fazer suas
próprias casas, como sabíamos fazer no lugar de onde viemos!”, escreveu em A
terra dá, a terra quer. Depois, uma arquitetura irracional, segundo ele, sem a
centralidade da cozinha e do quintal, tão elementares nos quilombos: “pensamos
na comida e na festa, nas formas compartilhadas de vida”. E a grande quantidade
de restaurantes e hotéis que, de acordo com o quilombola, revelava a falácia da
hospitalidade: “eles têm medo de gente”. Também intrigou-se com a vida
supostamente asséptica da cidade: vindo de uma casa onde “galinhas e os outros
animais conviviam conosco dentro de casa”, não compreendeu a necessidade de um
chão de cerâmica cuja serventia era “enxergar qualquer outra vida, qualquer
outro vivente que estiver ali, para poder desinfetar e matar qualquer
microrganismo. Matar até o que não se vê”. E com o conceito de resíduos
sólidos. “Não conhecíamos a palavra lixo”, relembrou: o que apodrecia no
quilombo onde ele cresceu alimentava o solo da mata “para gerar outras vidas”.
Cito esta espécie de
antropologia do sujeito urbanóide de Nêgo Bispo como exemplo de que ideias
aparentemente monolíticas para o estilo de vida metropolitano podem ser
pitorescas se tomadas a partir de outras cosmovisões, ao revelar como as
cidades tomaram o termo natureza como uma totalidade que é externa ao ser
humano – uma oposição à cultura.
Krenak aponta que esta
cisão entre natureza e cultura como um dos cernes da crise civilizatória, cujo
exemplo mais gritante está na relação das cidades com os rios. Se desde cedo
aprendemos nas salas de aula que as antigas civilizações cresceram no delta de
rios – como o Nilo, no Egito –, analisa ele, esta mesma “civilização”
espalhou-se de forma inconsequente sobre as sinuosidades das águas,
retificando-as sob avenidas no planejamento urbano: “Os rios foram asfixiados
nas cidades” e os solos, impermeabilizados. Catástrofes como a do Rio Grande do
Sul escancarariam este descaso histórico, que agora cobra seu preço.
Será possível criar
ambientes permeáveis, onde podemos nos sentir pertencendo aos espaços, em vez
de sobre os espaços, em cima deles? Esta é uma das questões suscitadas por
Krenak e Nêgo Bispo, o que exige repensar o que é uma cidade.
• Cidades cosmofóbicas
A Chapeuzinho Vermelho
atravessa a floresta para levar doces para a vovozinha e, no intercurso, é
ameaça pela vida selvagem (no caso, o lobo mau). Esta célebre parábola
infantil, diz Krenak, resumiria a cidade ocidental: uma tentativa de ser o
oposto do que ela mesma delimitou como floresta/mata, vista como a
barbárie/primitivo e perigosa para uma criança embrenhar-se – e que, ao longo
dos séculos, como uma plataforma necessária ao capitalismo, foi se instituindo
como o destino inescapável da humanidade. Deve ser por isso que o Ocidente fica
chocado com a “promiscuidade da urbanidade indiana” com animais e pessoas
compartilhando as ruas, as casas e as águas do rio Ganges, ironiza o pensador
indígena, “como se existisse apenas um jeito de viver – o modelo ocidental”.
O filósofo chinês Yuk
Hui tem uma anedota que ilustra bem isso. Foi tirada do diário de viagem de um
escritor francês. Conta ele que ao chegar numa cidade do Equador, uma mulher de
Manaus que participava da incursão pela região amazônica entrou num parque
urbano e exclamou: “ah, finalmente a natureza” – após ter atravessado de canoa
o rio Amazonas por dias a fio! A natureza, portanto, era para ela o que a
modernidade ocidental colocou numa moldura, delimitando fronteiras e
apartando-a da civilização…
Afinal, a “cidade
[eurocêntrica] é o contrário de mata. […] um território arquitetado
exclusivamente para os humanos”, sublinha Nêgo Bispo. Ela, portanto, seria a
expressão máxima do humanismo – conceito tomado sem a positividade filosófica
renascentista do “homem no centro do mundo”. A urbe é humanista para Nêgo Bispo
pois é uma construção artificial do humano desconectada do reino animal do qual
faz parte, excluindo todas as outras formas de vida possíveis – e, portanto,
cosmofóbica. Esse seria o “pecado original” da concepção urbanística do
Ocidente: apartar-se de forma sistemática da natureza, reduzida a fonte de
matérias-primas, em nome da expropriação, da acumulação de riquezas e da
extração desnecessária à reprodução da vida. “A cidade é um território
colonialista”, sublinha o pensador quilombola.
A Roma Antiga seria um
grande símbolo disso. Quando césares expandiam fronteiras para construir um
grandioso império, a capital era chamada de “cidade eterna”. Era a crença de
que ela resistiria a qualquer ascensão ou colapso de civilizações – ou seja, as
urbes representariam a busca ocidental pela imortalidade terrena. “É muito
bonito esse título”, analisa Krenak. “Mas o que será que se esconde por trás
dele? Não será justamente esse desejo insistente dos humanos de quererem se
perpetuar no planeta?”.
• Refloresta
Esta concepção de
cidades eternas soa anômala a povos originários, claro, em que a efemeridade
forja outras concepções de tempo e espaço. Com o colonialismo, impôs-se esta
por esta banda do Atlântico uma racionalidade que propunha-se universal – uma
violenta tentativa de unicidade de cosmovisão.
No entanto, esta
cosmofobia não tem cura, diagnostica Nêgo Bispo sem hesitar. Ela entranhou-se
de forma inescapável no mundo. Mas há formas de imunização, diz. Uma delas
seria abraçar o politeísmo, que desafiaria aquilo que Mignolo apontou como uma
“hierarquia espiritual/religiosa que privilegiava espiritualidades cristãs em
detrimento de espiritualidades não cristãs/não ocidentais” com a “globalização
da Igreja Cristã (católica e depois protestante)”.
Abraçar outros deuses
seria uma rebelião do ponto de vista epistemológico. O sentido deste
politeísmo, é bom destacar, não seria estritamente religioso, mas cosmológico,
pois em muitas culturas ancestrais o mundo é habitado por sujeitos, humanos e
não humanos, que o vivenciam de forma singular. “O que acontece na modernidade
ocidental é que o homem se considera como um ser de exceção”, apontou o
antropólogo Eduardo Viveiro de Castro, em entrevista à Pública. “Ele é um
animal, mas ele tem alguma coisa que os animais não têm. Antigamente chamava de
alma, agora é cultura, ciência, tecnologia… […] Já os povos tradicionais,
porque a história os conduziu a outra direção, não se veem acima das demais
criaturas. Eles podem achar que os homens são mais inteligentes do que os
jacarés, mas eles não acham que essa diferença é uma diferença de grau, não é
uma diferença de natureza”.
“Nós somos os
diversais, os cosmológicos, os naturais, os orgânicos. Nós pensamos sempre na
circularidade, quebrando o monoísmo, a dualidade e o binarismo”, aponta Nêgo
Bispo – e assumir isso seria o começo do que ele chama de contracolonialidade:
se o colonialismo é cada vez mais sofisticado, diz, seria hora inspirar-se nos
povos que lutam para não a se subordinarem a esta lógica. E, ao invés do
desenvolvimento, apostar no envolvimento: com a terra,“os animais, nossos
corpos, nossas roças, formas de comer, de construir casas e, sobretudo, de
falar e pensar”.
Nesta mesma direção,
Krenak sugere que a cidade pode ser espaço para imaginar outras formas de
habitar a Terra fora da política vigente, a partir de “alianças afetivas”: em
vez de reclamar a igualdade, seria preciso reconhecer “uma intrínseca
alteridade em cada pessoa, em cada ser”. Isso “introduz uma desigualdade
radical diante da qual a gente se obriga a uma pausa antes de entrar: tem que
tirar as sandálias, não se pode entrar calcado” – ou seja: certa humildade (ou
abertura, se preferirmos) para abrir-se ao outro e construir os “afetos entre
mundos não iguais”. A grande tarefa seria reflorestar o imaginário coletivo e,
assim, quem sabe, “a gente consiga se reaproximar de uma poética de urbanidade
que devolva a potência da vida, em vez de ficarmos repetindo os gregos e os
romanos”.
Isto é uma baita
tarefa diante de tempo tão tenebrosos quanto sinistros. Realista?
• Bem-estar ou bem-viver?
Moysés Pinto Neto
pontuou em artigo publicado pelo Outras Palavras que o modelo clássico de
bem-estar social – que nunca desembarcou totalmente por aqui e sempre está
emparedado pela lógica neoliberal – tão almejado pelo governo Lula, pode ser
inviável ante os desafios que o Brasil enfrenta. Um plano de “transição verde”,
ou mesmo uma versão do Green New Deal estadunidense, é colocado sobre a mesa,
com propostas ainda incipientes. Porém, continua ele, “o colapso climático
coloca para a esquerda a possibilidade de reintroduzir questões radicais para
as pessoas: como queremos viver?”. Uma tensão, mais que semântica, parece
emergir: o bem-estar social ou o bem-viver?
160 milhões de
brasileiros não podem viver, hoje, da mesma forma de aldeias amazônicas, claro.
Isso até o Viveiros de Castro reconhece, por exemplo. Mas indígenas e
quilombolas têm outra relação com isso que chamamos de realidade. “Essas
populações se veem como parte de um universo no qual elas estão no mesmo nível
que os demais seres. Não quer dizer que eles preferem ser outros seres. Eles só
se percebem como no mesmo nível, como sujeitos às mesmas condições metafísicas
de existência, digamos assim”, diz Viveiros de Castro.
O governo Lula retoma,
agora, os ciclos de diálogos em municípios e estados que culminará na
Conferência Nacional das Cidades, prevista para novembro, onde serão
construídas as bases do Programa Nacional de Desenvolvimento Urbano. A pauta
climática será, indubitavelmente, central. E as eleições municipais convida as
esquerdas a pensar ações a partir da escala local e da democracia
participativa. O momento é oportuno para as provocações de Krenak e Nêgo Bispo.
Fonte: Por Rôney
Rodrigues, em Outras Palavras
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