Bolívia:
chaves da insurreição militar e suas consequências
Os tanques na Plaza Murillo acabaram se revelando uma espécie de farsa que poderia ter
resultado em tragédia, em um clima político cada vez mais deteriorado
pelas disputas internas do Movimento ao Socialismo (MAS), hoje
dividido em duas alas: evistas e arcistas. Na tarde de
quarta-feira, 26 de junho, o comandante-geral do Exército, Juan José
Zúñiga - que havia sido destituído na noite de terça-feira, mas se
recusava a reconhecer a decisão presidencial - ocupou a emblemática praça com tanques.
Utilizou até mesmo um deles para abrir à força a porta do Palácio Quemado, antiga sede do governo, agora compartilhada com a
vizinha Casa Grande del Pueblo. A confusão sobre as intenções e as
estratégias em jogo reinou durante quase toda o motim, enquanto vários
ministros colocavam móveis para evitar a entrada dos militares.
A
tensão aumentou depois que o general Zúñiga mencionou a
impossibilidade de o ex-presidente Evo Morales voltar a se candidatar
às eleições presidenciais e respondeu a várias de suas acusações, chamando-o de
"mitômano". Em uma entrevista ao programa local No Mentirás, em 24 de junho, o chefe militar disse que
"legalmente Evo Morales está inabilitado.
A CPE [Constituição Política do Estado] diz que não pode haver mais
de dois mandatos, e o senhor foi reeleito. O Exército e as Forças Armadas têm a
missão de fazer respeitar e cumprir a CPE. Esse senhor não pode voltar a
ser presidente deste país".
Zúñiga referia-se
a uma polêmica decisão do Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP)
que, em uma sentença sobre outra questão, incluiu uma interpretação forçada da
Constituição de 2009 que deixaria fora da corrida presidencial o presidente por
três vezes. A Constituição estabelece que só são possíveis dois mandatos
consecutivos, mas o tribunal "interpretou" que são dois no total -
consecutivos ou não -, o que foi apresentado por Morales como uma
tentativa de proscrição política por parte da "direita endógena", no
contexto de um "plano negro" para tirá-lo do jogo político,
orquestrado, segundo ele, pelos ministros da Justiça, Iván Lima, e do
governo, Eduardo del Castillo.
As
declarações ameaçadoras de Zúñiga, nomeado comandante do Exército no final
de 2022 pelo presidente Luis Arce Catacora, irritaram o ex-presidente e os
evistas, que começaram a falar de um "autogolpe" iminente. "O
tipo de ameaças feitas pelo comandante-geral do Exército, Juan José
Zúñiga, nunca ocorreram na democracia. Se não forem desautorizadas pelo
comandante em chefe das Forças Armadas [Luis Arce], ficará comprovado que o que
estão realmente organizando é um autogolpe",
denunciou Morales em sua conta no X, de onde critica diariamente o
governo de Arce, que ele considera um traidor ao chamado "Processo de
mudança".
Mas
não foi apenas o ex-presidente. As ameaças de Zúñiga violavam os
regulamentos militares e a Constituição, o que explica a decisão
de Arce de destituí-lo. Mas isso foi considerado pelo chefe militar
como uma expressão de "desprezo", apesar de sua lealdade ao
presidente. Na quarta-feira, 26 de junho, segundo informou o jornal El
Deber, ele foi convocado para ser formalmente substituído, mas chegou
à Plaza Murillo com blindados e soldados encapuzados. E o país
assistiu a um general agindo como um "movimento social", o que na
prática constitui um golpe de Estado, confrontando cara a cara o presidente Arce após entrar à força
no Palácio Quemado, enquanto os colaboradores do presidente gritavam
"golpista" e exigiam que ele retirasse os militares.
O
isolamento de Zúñiga, sem apoio político ou social, explica possivelmente
sua tentativa de dar um conteúdo político à sua rebelião: ele disse que iria
libertar "presos políticos", como a ex-presidente Jeanine
Áñez e o ex-governador de Santa Cruz Fernando Camacho, e que iria
restaurar a democracia. "Uma elite se apoderou do país, vândalos que
destruíram o país", declarou às portas de seu veículo blindado, em frente
ao Palácio Quemado e ao Parlamento. Seu argumento de que "as Forças
Armadas pretendem reestruturar a democracia, [para] que seja uma verdadeira
democracia, não de alguns donos que já estão há 30 e 40 anos no poder"
caiu em saco roto. A reação interna e externa foi contundente. Até opositores
atualmente presos, como Áñez e Camacho, condenaram a ação
militar. Também o fizeram os ex-presidentes Carlos D.
Mesa e Jorge "Tuto" Quiroga. Fora do país, mandatários de
diversos signos ideológicos - exceto o argentino Javier Milei, que deixou a questão a cargo de seu chanceler - chamaram a
defender as instituições e condenaram os sublevados.
Entretanto,
organizações como a Central Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da
Bolívia (CSUTCB) e a Central Obrera Boliviana (COB), assim
como Evo Morales, que continua sendo o líder dos sindicatos de
cultivadores de coca do Chapare em Cochabamba (onde tem
suas oficinas e seu empreendimento de piscicultura), convocaram a greve geral,
o bloqueio de estradas e uma grande marcha para La Paz.
Arce,
por sua vez, fez um breve discurso, também chamando à mobilização, em meio a
confrontos na Plaza Murillo, onde os manifestantes eram expulsos com gás
lacrimogêneo. E decidiu nomear uma nova liderança militar nas três forças.
Sem
rebelião nos quartéis militares ou policiais, a corda de Zúñiga para
manter o levante e conseguir permanecer em seu posto pela força estava se
esgotando. Envolvido em pelo menos um caso de desvio de fundos - do pagamento
do bônus Juancito Pinto, nas mãos de militares - durante o governo
de Evo Morales, e sem um grande desempenho em sua carreira, este militar
era considerado muito próximo de Arce e parece ter reagido de maneira
impulsiva. Sua retirada da Plaza Murillo se assemelhou a uma
debandada, com manifestantes perseguindo os soldados remanescentes.
Após
ser detido, junto com o vice-almirante Juan Arnez, ex-comandante da
Armada, Zúñiga disse que havia agido por ordem do presidente: "O
presidente [Arce] me disse que a 'situação está muito difícil, é necessário
preparar algo para aumentar minha popularidade'". Isso deixou uma granada
ativada para os próximos dias. A ideia de um autogolpe stricto sensu parece
desmentida pelo próprio desenrolar dos acontecimentos - qual era exatamente o
plano? -, que se assemelham mais a uma sucessão de eventos descontrolados no
contexto de uma forte erosão da institucionalidade - e da gestão do governo -,
produto em grande parte do enfrentamento interno no MAS.
Depois
de retornar ao poder em dezembro de 2020 com Luis Arce, o candidato
escolhido por Morales desde seu exílio na Argentina, as relações
entre o ex-presidente e seu ministro da economia por mais de uma década se
desgastaram rapidamente e terminaram em uma disputa aberta pelo
poder. Arce, que aparentemente havia se comprometido a não disputar a
reeleição em 2025, decidiu posteriormente que buscará um segundo mandato;
e Evo Morales, que tentou uma reeleição após a outra, sem levar em conta a
letra e o espírito da nova Carta Magna, considera que foi deposto por um golpe de Estado em 2019 e que tem o direito de disputar novamente a presidência.
Essa disputa paralisou a Assembleia Legislativa, em um contexto econômico que
hoje tem pouco a ver com os anos de auge econômico pré-2019.
A
escassez de dólares e combustíveis revela um esgotamento do
modelo aplicado desde 2006, quando Evo Morales foi eleito como o
primeiro presidente indígena da Bolívia e, em meio a uma espetacular épica
política, deu início à "Revolução democrática e cultural", que no plano econômico implantou um "populismo
prudente" muito preocupado em não aumentar o déficit fiscal e acumular
reservas cambiais recordes no Banco Central.
O
próprio Arce reconheceu recentemente que a situação do diesel era
"patética" e ordenou a militarização do sistema de abastecimento
de combustíveis, com o objetivo de evitar o contrabando de diesel subsidiado
pelo Estado boliviano para os países vizinhos. A crise econômica afeta
especialmente Arce, que, sem grande carisma, construiu sua legitimidade
como o ministro do "milagre econômico". No plano político, a pinça
entre o Poder Executivo e o Judiciário enfraqueceu o Poder Legislativo, cuja
maioria também se divide em arcistas e evistas, e cada grupo acusa o outro de
"jogar o jogo da direita". Também foram prolongados os mandatos das
autoridades judiciais, o que é denunciado diariamente pelos evistas.
O
presidente do Senado, Andrónico Rodríguez, um sindicalista cocalero formado
por Evo Morales como uma espécie de sucessor, tuitou após o recuo dos
militares: "De magistrados autoprorrogados a um suposto golpe ou
autogolpe, o povo boliviano se afunda na incerteza. Esta desordem institucional,
onde as autoridades estendem ilegalmente seus mandatos e se minam os princípios
democráticos, está levando o país a uma situação de caos e desconfiança,
agravando a crise e ameaçando a estabilidade e o bem-estar do país". Os
efeitos da asonada continuarão. Longe de uma trégua no espaço 'masista', a luta
interna se intensificará.
Parte
da disputa é pelas siglas do Movimento ao Socialismo (MAS), um
partido de movimentos sociais que mostrou, em 2020, sua capacidade de
mobilização eleitoral, mesmo em contextos difíceis como o vivido sob o governo
de Áñez - e do ministro do Governo Arturo Murillo,
posteriormente detido nos Estados Unidos por corrupção. Os congressos
de cada ala foram judicializados, com vistas a 2025, ano do bicentenário
boliviano.
A
fragilidade da oposição, que ficou associada ao governo autoritário,
ineficiente e marcado pela corrupção de Jeanine Áñez, e tem grandes dificuldades para encontrar novas figuras,
alimenta a "ch'ampa guerra" entre evistas e arcistas, que veem o
poder como uma disputa "interna". Mas em meio à volatilidade
eleitoral regional e global, essa visão representa um risco, mesmo se
considerarmos que a base eleitoral em torno do MAS continua forte e
que a experiência de Áñez funciona como uma "dose de
reforço" para os movimentos sociais e indígenas.
Ainda
é cedo para saber como o putsch fracassado impactará nas relações de força
dentro do espaço do MAS (que hoje já não existe como partido unificado). Após
superar o desafio do grupo militar sublevado, Arce enfrenta
agora o fogo político cruzado de evistas e opositores, que já começaram a falar
de "show político" para tentar desvalorizar o capital político que o
presidente poderia conseguir pelo apoio nacional e internacional às
instituições e à vigência da democracia, e sua decisão de confrontar cara a cara
o "general golpista".
¨
Um motim que deixou
muitas dúvidas. Por Gustavo Veiga
O golpe na Bolívia poderia
ter sido um autogolpe. A teoria exige muito cuidado e tomou tanta
velocidade quanto os tanques militares que se deslocaram em direção
à Plaza Murillo para interromper a ordem constitucional. A ideia é
apoiada por certezas e algumas interpretações após o ato de sedição. A única
prova, até agora, são as declarações do general Juan José Zúñiga,
comandante do exército, a menos que tenha mentido. No caminho para sua prisão,
ele explicou sem hesitação diante de um grupo de jornalistas: “O presidente me
disse: a situação está muito complicada, muito crítica. É preciso preparar algo
para aumentar minha popularidade. ‘Devemos tirar dos quartéis os veículos
blindados?’ — ele teria perguntado a Luis Arce Catacora e ele respondeu — 'Tire'. Então, no
domingo à noite, os veículos blindados começaram a descer. "Seis sinos e
seis urutus, mais 14 Z do Regimento Achacachi".
Juan
Ramón Quintana, ex-ministro da presidência de Evo Morales, aderiu à mesma hipótese em diálogo com a Página|12: “Esta
é uma grande encenação”. O líder histórico do MAS já
tinha manifestado que estava sendo preparado um “autogolpe”. Seja como
for, a situação coloca em risco a governabilidade do atual presidente que
enfrenta uma longa disputa interna com Evo que tem um fim em aberto.
Na
terça-feira passada, Zúñiga acelerou o tempo deste grave conflito com
as suas declarações políticas – proibidas pela Constituição boliviana –
sobre Morales: “Ele não pode mais ser presidente deste país. Se
necessário, não permitirei que ele pise na Constituição, desobedeça ao mandato
do povo”. Quintana, oficial reformado do Exército, sociólogo e ativista no
espaço de Evo, disse que essas declarações de Zúñiga “consternaram o
país, estavam deslocadas e eu diria que eram uma loucura”.
A
tentativa sediciosa desta quarta-feira durou cerca de três horas e não recebeu
apoio da maioria das unidades militares do país. “É cenário de um aparente
golpe, eu diria mais uma encenação do que um golpe”, acrescentou Quintana,
que concordou com Evo. Enquanto o ex-ministro de Morales em três
períodos diferentes fez este comentário, os promotores departamentais
de La Paz envolvidos no caso, Franklin Alborta e Omar
Mejillones, acusaram Zúñiga dos crimes de terrorismo e levante armado
contra a segurança e a soberania do Estado.
A
história daquela que pode ter sido a tentativa de golpe mais fugaz da
história da Bolívia começou
quando três unidades do exército avançaram em direção ao centro do poder
político com os seus tanques. Um deles não conseguiu chegar à Plaza
Murillo. Os demais, com Zúñiga na frente, cercaram o quilômetro zero
em La Paz e ao chegarem retiraram-se devido à rápida resposta do
governo mais as mobilizações e a ameaça de greve geral por tempo indeterminado
por parte da Central Obrera Boliviana (COB).
Os
repúdios nacionais ao golpe militar incluíram setores de extrema
direita que se levantaram contra Morales em 2019. O atual governador de Santa Cruz, Luis
Fernando Camacho, o mesmo que entrou na Casa do Governo em novembro daquele ano
com uma nota de renúncia para o ex-presidente e líder do MAS assinar,
declarou: "O mandato do MAS deve ser respeitado. Qualquer ação
contra ela é absolutamente ilegal e inconstitucional”.
O
ex-presidente Jorge Tuto Quiroga e até a ex-presidente de fato, Jeanine Añez, falaram no mesmo sentido desde seu local de detenção, onde
cumpre pena pelos episódios de novembro de 2019.
A Bolívia,
com a sua história marcada por golpes de Estado em quase 200 anos de vida
independente – que se completarão em 6 de agosto de 2025 – sempre foi prolífica
neste tipo de atos sediciosos, muitas vezes demasiado sangrentos. Enquanto os
acontecimentos se desenrolavam, Evo Morales se pronunciou contra o
golpe a partir de sua conta X e apelou à mobilização em todo o país: “Apelamos
aos movimentos sociais do campo e da cidade para defenderem a democracia”,
escreveu. Não houve fissuras com o seu principal adversário no MAS, o
próprio Arce, que confrontou Zúñiga quando este tentou entrar na
sede do governo.
Esta
tentativa fugaz de virar a democracia boliviana aparentemente não incluiu a
intervenção de terceiros países, como aconteceu em 2019 com o golpe liderado
por Añez, apoiado pelo governo dos Estados Unidos, pelo Brasil de Jair Bolsonaro, e até pela Argentina de Macri e a
própria OEA. Também não houve apoio visível da população civil, que não
acompanhou o golpe de Zúñiga, com a suposta mise en scène dos
seus soldados marchando pelo centro de La Paz a ritmo redobrado e com um
punhado de tanques de origem chinesa e a participação de jovens oficiais que
obtiveram a promoção no mesmo dia.
Quintana,
muito crítico de Lucho Arce, ex-ministro da Economia
de Morales até 2019, explicou que o presidente “precisa restaurar a
sua credibilidade política durante o ano ou mais que lhe resta no governo. Mas
este é um ponto de ruptura. O segundo objetivo seria alcançado
por Zúñiga se conseguisse o que queria, que era deter Evo”.
Fonte:
Por Pablo Stefanoni, em Nueva Sociedad/
Página 12
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