segunda-feira, 1 de julho de 2024

Bolívia: chaves da insurreição militar e suas consequências

Os tanques na Plaza Murillo acabaram se revelando uma espécie de farsa que poderia ter resultado em tragédia, em um clima político cada vez mais deteriorado pelas disputas internas do Movimento ao Socialismo (MAS), hoje dividido em duas alas: evistas e arcistas. Na tarde de quarta-feira, 26 de junho, o comandante-geral do Exército, Juan José Zúñiga - que havia sido destituído na noite de terça-feira, mas se recusava a reconhecer a decisão presidencial - ocupou a emblemática praça com tanques. Utilizou até mesmo um deles para abrir à força a porta do Palácio Quemado, antiga sede do governo, agora compartilhada com a vizinha Casa Grande del Pueblo. A confusão sobre as intenções e as estratégias em jogo reinou durante quase toda o motim, enquanto vários ministros colocavam móveis para evitar a entrada dos militares.

A tensão aumentou depois que o general Zúñiga mencionou a impossibilidade de o ex-presidente Evo Morales voltar a se candidatar às eleições presidenciais e respondeu a várias de suas acusações, chamando-o de "mitômano". Em uma entrevista ao programa local No Mentirás, em 24 de junho, o chefe militar disse que "legalmente Evo Morales está inabilitado. A CPE [Constituição Política do Estado] diz que não pode haver mais de dois mandatos, e o senhor foi reeleito. O Exército e as Forças Armadas têm a missão de fazer respeitar e cumprir a CPE. Esse senhor não pode voltar a ser presidente deste país".

Zúñiga referia-se a uma polêmica decisão do Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) que, em uma sentença sobre outra questão, incluiu uma interpretação forçada da Constituição de 2009 que deixaria fora da corrida presidencial o presidente por três vezes. A Constituição estabelece que só são possíveis dois mandatos consecutivos, mas o tribunal "interpretou" que são dois no total - consecutivos ou não -, o que foi apresentado por Morales como uma tentativa de proscrição política por parte da "direita endógena", no contexto de um "plano negro" para tirá-lo do jogo político, orquestrado, segundo ele, pelos ministros da Justiça, Iván Lima, e do governo, Eduardo del Castillo.

As declarações ameaçadoras de Zúñiga, nomeado comandante do Exército no final de 2022 pelo presidente Luis Arce Catacora, irritaram o ex-presidente e os evistas, que começaram a falar de um "autogolpe" iminente. "O tipo de ameaças feitas pelo comandante-geral do Exército, Juan José Zúñiga, nunca ocorreram na democracia. Se não forem desautorizadas pelo comandante em chefe das Forças Armadas [Luis Arce], ficará comprovado que o que estão realmente organizando é um autogolpe", denunciou Morales em sua conta no X, de onde critica diariamente o governo de Arce, que ele considera um traidor ao chamado "Processo de mudança".

Mas não foi apenas o ex-presidente. As ameaças de Zúñiga violavam os regulamentos militares e a Constituição, o que explica a decisão de Arce de destituí-lo. Mas isso foi considerado pelo chefe militar como uma expressão de "desprezo", apesar de sua lealdade ao presidente. Na quarta-feira, 26 de junho, segundo informou o jornal El Deber, ele foi convocado para ser formalmente substituído, mas chegou à Plaza Murillo com blindados e soldados encapuzados. E o país assistiu a um general agindo como um "movimento social", o que na prática constitui um golpe de Estado, confrontando cara a cara o presidente Arce após entrar à força no Palácio Quemado, enquanto os colaboradores do presidente gritavam "golpista" e exigiam que ele retirasse os militares.

O isolamento de Zúñiga, sem apoio político ou social, explica possivelmente sua tentativa de dar um conteúdo político à sua rebelião: ele disse que iria libertar "presos políticos", como a ex-presidente Jeanine Áñez e o ex-governador de Santa Cruz Fernando Camacho, e que iria restaurar a democracia. "Uma elite se apoderou do país, vândalos que destruíram o país", declarou às portas de seu veículo blindado, em frente ao Palácio Quemado e ao Parlamento. Seu argumento de que "as Forças Armadas pretendem reestruturar a democracia, [para] que seja uma verdadeira democracia, não de alguns donos que já estão há 30 e 40 anos no poder" caiu em saco roto. A reação interna e externa foi contundente. Até opositores atualmente presos, como Áñez e Camacho, condenaram a ação militar. Também o fizeram os ex-presidentes Carlos D. Mesa e Jorge "Tuto" Quiroga. Fora do país, mandatários de diversos signos ideológicos - exceto o argentino Javier Milei, que deixou a questão a cargo de seu chanceler - chamaram a defender as instituições e condenaram os sublevados.

Entretanto, organizações como a Central Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB) e a Central Obrera Boliviana (COB), assim como Evo Morales, que continua sendo o líder dos sindicatos de cultivadores de coca do Chapare em Cochabamba (onde tem suas oficinas e seu empreendimento de piscicultura), convocaram a greve geral, o bloqueio de estradas e uma grande marcha para La Paz.

Arce, por sua vez, fez um breve discurso, também chamando à mobilização, em meio a confrontos na Plaza Murillo, onde os manifestantes eram expulsos com gás lacrimogêneo. E decidiu nomear uma nova liderança militar nas três forças.

Sem rebelião nos quartéis militares ou policiais, a corda de Zúñiga para manter o levante e conseguir permanecer em seu posto pela força estava se esgotando. Envolvido em pelo menos um caso de desvio de fundos - do pagamento do bônus Juancito Pinto, nas mãos de militares - durante o governo de Evo Morales, e sem um grande desempenho em sua carreira, este militar era considerado muito próximo de Arce e parece ter reagido de maneira impulsiva. Sua retirada da Plaza Murillo se assemelhou a uma debandada, com manifestantes perseguindo os soldados remanescentes.

Após ser detido, junto com o vice-almirante Juan Arnez, ex-comandante da Armada, Zúñiga disse que havia agido por ordem do presidente: "O presidente [Arce] me disse que a 'situação está muito difícil, é necessário preparar algo para aumentar minha popularidade'". Isso deixou uma granada ativada para os próximos dias. A ideia de um autogolpe stricto sensu parece desmentida pelo próprio desenrolar dos acontecimentos - qual era exatamente o plano? -, que se assemelham mais a uma sucessão de eventos descontrolados no contexto de uma forte erosão da institucionalidade - e da gestão do governo -, produto em grande parte do enfrentamento interno no MAS.

Depois de retornar ao poder em dezembro de 2020 com Luis Arce, o candidato escolhido por Morales desde seu exílio na Argentina, as relações entre o ex-presidente e seu ministro da economia por mais de uma década se desgastaram rapidamente e terminaram em uma disputa aberta pelo poder. Arce, que aparentemente havia se comprometido a não disputar a reeleição em 2025, decidiu posteriormente que buscará um segundo mandato; e Evo Morales, que tentou uma reeleição após a outra, sem levar em conta a letra e o espírito da nova Carta Magna, considera que foi deposto por um golpe de Estado em 2019 e que tem o direito de disputar novamente a presidência. Essa disputa paralisou a Assembleia Legislativa, em um contexto econômico que hoje tem pouco a ver com os anos de auge econômico pré-2019.

A escassez de dólares e combustíveis revela um esgotamento do modelo aplicado desde 2006, quando Evo Morales foi eleito como o primeiro presidente indígena da Bolívia e, em meio a uma espetacular épica política, deu início à "Revolução democrática e cultural", que no plano econômico implantou um "populismo prudente" muito preocupado em não aumentar o déficit fiscal e acumular reservas cambiais recordes no Banco Central.

O próprio Arce reconheceu recentemente que a situação do diesel era "patética" e ordenou a militarização do sistema de abastecimento de combustíveis, com o objetivo de evitar o contrabando de diesel subsidiado pelo Estado boliviano para os países vizinhos. A crise econômica afeta especialmente Arce, que, sem grande carisma, construiu sua legitimidade como o ministro do "milagre econômico". No plano político, a pinça entre o Poder Executivo e o Judiciário enfraqueceu o Poder Legislativo, cuja maioria também se divide em arcistas e evistas, e cada grupo acusa o outro de "jogar o jogo da direita". Também foram prolongados os mandatos das autoridades judiciais, o que é denunciado diariamente pelos evistas.

O presidente do Senado, Andrónico Rodríguez, um sindicalista cocalero formado por Evo Morales como uma espécie de sucessor, tuitou após o recuo dos militares: "De magistrados autoprorrogados a um suposto golpe ou autogolpe, o povo boliviano se afunda na incerteza. Esta desordem institucional, onde as autoridades estendem ilegalmente seus mandatos e se minam os princípios democráticos, está levando o país a uma situação de caos e desconfiança, agravando a crise e ameaçando a estabilidade e o bem-estar do país". Os efeitos da asonada continuarão. Longe de uma trégua no espaço 'masista', a luta interna se intensificará.

Parte da disputa é pelas siglas do Movimento ao Socialismo (MAS), um partido de movimentos sociais que mostrou, em 2020, sua capacidade de mobilização eleitoral, mesmo em contextos difíceis como o vivido sob o governo de Áñez - e do ministro do Governo Arturo Murillo, posteriormente detido nos Estados Unidos por corrupção. Os congressos de cada ala foram judicializados, com vistas a 2025, ano do bicentenário boliviano.

A fragilidade da oposição, que ficou associada ao governo autoritário, ineficiente e marcado pela corrupção de Jeanine Áñez, e tem grandes dificuldades para encontrar novas figuras, alimenta a "ch'ampa guerra" entre evistas e arcistas, que veem o poder como uma disputa "interna". Mas em meio à volatilidade eleitoral regional e global, essa visão representa um risco, mesmo se considerarmos que a base eleitoral em torno do MAS continua forte e que a experiência de Áñez funciona como uma "dose de reforço" para os movimentos sociais e indígenas.

Ainda é cedo para saber como o putsch fracassado impactará nas relações de força dentro do espaço do MAS (que hoje já não existe como partido unificado). Após superar o desafio do grupo militar sublevado, Arce enfrenta agora o fogo político cruzado de evistas e opositores, que já começaram a falar de "show político" para tentar desvalorizar o capital político que o presidente poderia conseguir pelo apoio nacional e internacional às instituições e à vigência da democracia, e sua decisão de confrontar cara a cara o "general golpista".

 

¨      Um motim que deixou muitas dúvidas. Por Gustavo Veiga

golpe na Bolívia poderia ter sido um autogolpe. A teoria exige muito cuidado e tomou tanta velocidade quanto os tanques militares que se deslocaram em direção à Plaza Murillo para interromper a ordem constitucional. A ideia é apoiada por certezas e algumas interpretações após o ato de sedição. A única prova, até agora, são as declarações do general Juan José Zúñiga, comandante do exército, a menos que tenha mentido. No caminho para sua prisão, ele explicou sem hesitação diante de um grupo de jornalistas: “O presidente me disse: a situação está muito complicada, muito crítica. É preciso preparar algo para aumentar minha popularidade. ‘Devemos tirar dos quartéis os veículos blindados?’ — ele teria perguntado a Luis Arce Catacora e ele respondeu — 'Tire'. Então, no domingo à noite, os veículos blindados começaram a descer. "Seis sinos e seis urutus, mais 14 Z do Regimento Achacachi".

Juan Ramón Quintana, ex-ministro da presidência de Evo Morales, aderiu à mesma hipótese em diálogo com a Página|12: “Esta é uma grande encenação”. O líder histórico do MAS já tinha manifestado que estava sendo preparado um “autogolpe”. Seja como for, a situação coloca em risco a governabilidade do atual presidente que enfrenta uma longa disputa interna com Evo que tem um fim em aberto.

Na terça-feira passada, Zúñiga acelerou o tempo deste grave conflito com as suas declarações políticas – proibidas pela Constituição boliviana – sobre Morales: “Ele não pode mais ser presidente deste país. Se necessário, não permitirei que ele pise na Constituição, desobedeça ao mandato do povo”. Quintana, oficial reformado do Exército, sociólogo e ativista no espaço de Evo, disse que essas declarações de Zúñiga “consternaram o país, estavam deslocadas e eu diria que eram uma loucura”.

A tentativa sediciosa desta quarta-feira durou cerca de três horas e não recebeu apoio da maioria das unidades militares do país. “É cenário de um aparente golpe, eu diria mais uma encenação do que um golpe”, acrescentou Quintana, que concordou com Evo. Enquanto o ex-ministro de Morales em três períodos diferentes fez este comentário, os promotores departamentais de La Paz envolvidos no caso, Franklin Alborta e Omar Mejillones, acusaram Zúñiga dos crimes de terrorismo e levante armado contra a segurança e a soberania do Estado.

A história daquela que pode ter sido a tentativa de golpe mais fugaz da história da Bolívia começou quando três unidades do exército avançaram em direção ao centro do poder político com os seus tanques. Um deles não conseguiu chegar à Plaza Murillo. Os demais, com Zúñiga na frente, cercaram o quilômetro zero em La Paz e ao chegarem retiraram-se devido à rápida resposta do governo mais as mobilizações e a ameaça de greve geral por tempo indeterminado por parte da Central Obrera Boliviana (COB).

Os repúdios nacionais ao golpe militar incluíram setores de extrema direita que se levantaram contra Morales em 2019. O atual governador de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho, o mesmo que entrou na Casa do Governo em novembro daquele ano com uma nota de renúncia para o ex-presidente e líder do MAS assinar, declarou: "O mandato do MAS deve ser respeitado. Qualquer ação contra ela é absolutamente ilegal e inconstitucional”.

O ex-presidente Jorge Tuto Quiroga e até a ex-presidente de fato, Jeanine Añez, falaram no mesmo sentido desde seu local de detenção, onde cumpre pena pelos episódios de novembro de 2019.

A Bolívia, com a sua história marcada por golpes de Estado em quase 200 anos de vida independente – que se completarão em 6 de agosto de 2025 – sempre foi prolífica neste tipo de atos sediciosos, muitas vezes demasiado sangrentos. Enquanto os acontecimentos se desenrolavam, Evo Morales se pronunciou contra o golpe a partir de sua conta X e apelou à mobilização em todo o país: “Apelamos aos movimentos sociais do campo e da cidade para defenderem a democracia”, escreveu. Não houve fissuras com o seu principal adversário no MAS, o próprio Arce, que confrontou Zúñiga quando este tentou entrar na sede do governo.

Esta tentativa fugaz de virar a democracia boliviana aparentemente não incluiu a intervenção de terceiros países, como aconteceu em 2019 com o golpe liderado por Añez, apoiado pelo governo dos Estados Unidos, pelo Brasil de Jair Bolsonaro, e até pela Argentina de Macri e a própria OEA. Também não houve apoio visível da população civil, que não acompanhou o golpe de Zúñiga, com a suposta mise en scène dos seus soldados marchando pelo centro de La Paz a ritmo redobrado e com um punhado de tanques de origem chinesa e a participação de jovens oficiais que obtiveram a promoção no mesmo dia.

Quintana, muito crítico de Lucho Arce, ex-ministro da Economia de Morales até 2019, explicou que o presidente “precisa restaurar a sua credibilidade política durante o ano ou mais que lhe resta no governo. Mas este é um ponto de ruptura. O segundo objetivo seria alcançado por Zúñiga se conseguisse o que queria, que era deter Evo”.

 

Fonte: Por Pablo Stefanoni, em Nueva Sociedad/  Página 12

 

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