Autonomia financeira do Banco Central: mais
interferência econômica do mercado no Brasil?
Defendida pelo atual
presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, o Senado Federal discute a
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que dá autonomia financeira à entidade.
Especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil divergem da iniciativa e também apontam
riscos caso o tema seja aprovado.
Passadas as semanas de
maiores tensões entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Campos Neto
diante das discordâncias com relação à condução do Banco Central, o Congresso
Nacional voltou a colocar em pauta a PEC que amplia a autonomia da entidade
frente ao governo. Além de maior liberdade financeira, a proposta faz o órgão
passar de autarquia especial para empresa pública, a exemplo do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Na prática, a mudança dá maior
poder de decisão sobre o próprio orçamento, além de realizar contratações.
A expectativa era de
que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado votasse o texto nesta
quarta-feira (17), o que definiria se o tema avançaria ou não no Parlamento.
Porém, após um encontro do líder de governo na Casa, Jaques Wagner (PT-BA) com
o relator e o autor da proposta, os senadores Plínio Valério (PSDB-AM) e
Vanderlan Cardoso (PSD-GO), respectivamente, as discussões foram adiadas.
Mais um passo para
aumentar a autonomia do Banco Central do Brasil vai permitir maior
interferência do mercado financeiro na política econômica do país?
O professor do
Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF)
André Nassif defendeu à Sputnik Brasil que a questão é controversa. Conforme o
especialista, a independência dos bancos centrais ganhou força no mundo a
partir da década de 1990, muito em função da pressão norte-americana para que
os demais países do mundo também abrissem seus mercados financeiros e fluxos de
capitais para a livre circulação. Tudo isso ainda reflete uma tendência
econômica de que essas entidades devem atuar unicamente para promover e
assegurar a estabilidade de preço, por meio da manutenção da inflação baixa e
estável, acrescenta Nassif.
No capitalismo
contemporâneo, de acordo com o especialista, há cerca de 40 países que ainda
adotam o regime de metas de inflação explícitas, quando elas devem ser seguidas
a todo custo — é o caso do Brasil.
"E usar o regime
de meta de inflação explícita é uma forma de ancorar a estabilidade de preço, e
acabou sendo fortalecida por conta da liberalização do fluxo de capitais, o que
acaba deixando as taxas de câmbio voláteis, principalmente nos países em
desenvolvimento. Junto com esse cardápio também veio a defesa da independência
dos bancos centrais", declara.
Enquanto isso, outros
objetivos governamentais que podem usar como ferramenta os bancos centrais,
como o estímulo ao emprego e ao crescimento econômico, ficam em segundo plano.
"Estudos
empíricos não são conclusivos para referendar que bancos centrais independentes
conseguem manter a inflação baixa e estável mais do que bancos centrais que não
são. Há entidades independentes que mantêm a inflação relativamente baixa,
outros que não têm [independência] e fazem a mesma coisa. Após a crise de 2008,
principalmente fora do Brasil, a teoria macroeconômica passou a ser uma
autocrítica com relação principalmente ao conservadorismo das políticas
monetárias. Em especial, o papel de só almejar a estabilidade de preço",
enfatiza.
Diante desse novo
cenário mundial, regimes de metas de inflação norteados por objetivos flexíveis
passaram a ser defendidos no mundo, ao contrário da América Latina e,
consequentemente, do Brasil, aponta Nassif. "O regime de metas de
inflação, se ele é rígido demais, acaba tendo um custo social muito grande,
porque toda vez que a inflação desancorar da meta, isso vai exigir uma política
de juros às vezes muito alta, como tem acontecido no Brasil. O custo social
disso é maior do que quando você vai comparar com o benefício de, às vezes,
demorar muito para trazer a inflação para a meta."
·
Quem controla o Banco Central do Brasil?
Atualmente, uma
autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda, o Banco Central do
Brasil, foi criado em dezembro de 1964. Após a autonomia do órgão aprovada no
governo Jair Bolsonaro (PL), os presidentes passaram a ter mandatos fixos de
quatro anos, que não são coincidentes ao período em que o chefe do Executivo
fica no cargo. Com isso, Campos Neto segue até o fim do ano e, como foi
indicado na gestão anterior, tem apresentado diversas rusgas com o Palácio do
Planalto sob o comando de Lula.
Com a nova proposta,
que pode transformar a entidade em empresa pública, o Banco Central também
passa a acompanhar a dinâmica comercial vigente. Para o coordenador do MBA em
gestão financeira da FGV, Ricardo Teixeira, não ficou tão claro qual foi o
motivo dessa mudança. Esse também é um dos motivos do adiamento da votação na
CCJ, já que a equipe econômica do governo, liderada pelo ministro Fernando
Haddad, tem se colocado contra.
"Não há clareza
sobre a vantagem da transformação do Banco Central em uma empresa pública do
ponto de vista da independência da entidade. O que é necessário é fazer com que
o Banco Central tenha um corpo técnico qualificado e que tenha tranquilidade
para trabalhar. A gente não quer ter um corpo técnico que eventualmente possa
sofrer pressão por conta, por exemplo, de eventuais substituições ou quando
você tem uma orientação do Banco Central e uma eventual divergência do governo
federal. É crucial um banco que possa efetivamente ser o guardião da moeda e
proteger o país da melhor maneira possível", defende o especialista.
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'Todos gostaríamos de ter juros baixos'
Ao contrário do
professor da UFF, Teixeira acredita que, com a independência da instituição, há
liberdade para tomar as decisões necessárias para que o poder de compra da
moeda, no caso o real, seja preservado.
"Então a gente
quer trabalhar com o Banco Central de tal forma que, nos momentos em que houver
necessidade, ele dê maior liquidez ao mercado e, nos momentos em que
contrários, ele enxugue um pouco dessa liquidez. Com isso, atue de forma a
sempre atender aos interesses maiores do país", pontua.
A taxa básica de
juros, principal instrumento para controle inflacionário, é atualmente o maior
motivo de embate entre governo e instituição. Uma pesquisa divulgada pela
Quaest mostrou que 66% dos brasileiros concordam com as críticas de Lula à
manutenção dos juros em 10,5% como entrave para o crescimento do país, índice
que chega a 77% entre eleitores do petista e fica em 51% entre os
bolsonaristas. Apesar do resultado, o coordenador da Fundação Getulio Vargas
(FGV) defende que as decisões tomadas pelo Banco Central são técnicas e possuem
embasamento.
"Claro que todos
nós gostaríamos, por exemplo, de ter uma taxa de juros básica mais baixa.
Agora, isso seria bom para o país? A princípio é bom para as famílias, para as
pessoas físicas, num primeiro momento, porque você estaria pagando uma taxa de juros
mais baixa, mas levaria a um problema com a inflação. Quando o Banco Central
toma as decisões dele, por exemplo, de manter uma taxa mais elevada, o que ele
está pensando é exatamente como controlar a inflação, como fazer com que a
atividade do mercado seja regulada em parte por esse juros para não ter nem um
aquecimento nem um desaquecimento […]. Então não necessariamente as pessoas
físicas entendem qual é a dinâmica desse tipo de decisão", argumenta.
Além disso, Teixeira
vê como acertadas as medidas tomadas pelo Banco Central nos últimos anos,
quando a Selic chegou a 13,75% em 2022. Só no ano passado foi iniciada a
redução na taxa, interrompida em 2024. Na época, o indicador colocou o Brasil
com o segundo maior juro real do mundo e, ao mesmo tempo, a inflação no período
ficou em 4,62%, a menor desde 2020.
"Então a grande
pergunta que se faz é se você vai ser permissivo para que depois conserte a
situação ou vai desde o primeiro momento manter sob controle? O que se tem
feito nos últimos anos no Brasil é procurado manter a situação sob controle [a
inflação]. Mesmo que algumas pessoas discordem das decisões tomadas, mas elas
têm se mostrado acertadas", detalha.
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Como a pandemia mexeu com a economia?
Ao longo de dois anos
de pandemia, o índice inflacionário no Brasil superou 15%, o que foi reflexo do
período. Porém, o professor André Nassif defende que o aumento "não teve a
ver com o excesso de demanda" após a retomada das atividades, mas foi
causado "basicamente por um choque de oferta e depois das cadeias
produtivas no mundo inteiro, além da incerteza". Diante disso, o
especialista discorda da decisão do Banco Central na época de aumento dos juros
com tamanha intensidade. Situações como essa podem se tornar mais constantes
com a autonomia maior da entidade, acredita Nassif.
"A tese é de que
os bancos centrais devem ser independentes da pressão das políticas almejadas
pelo governo, que é eleito democraticamente pela população. Em relação à
autonomia financeira, isso me parece, no caso brasileiro, ainda mais
estapafúrdio. Tem um trecho da lei que justifica a medida para que o Banco
Central possa executar de forma mais eficiente as suas atividades, inclusive
recrutar e manter pessoal de alta qualificação. Mas sempre foi assim",
justifica.
Ainda em relação à
taxa básica de juros, outro mecanismo que a entidade usa no Brasil para
garantir que os demais bancos pratiquem um valor próximo ao definido é a venda
dos títulos da dívida pública — quando há a constatação, por exemplo, de
excesso de reservas e liquidez das instituições financeiras. Para fazer frente
a isso, são vendidos os títulos do Tesouro, o que também garante recursos para
a entidade brasileira. "O principal argumento que o Banco Central utiliza
para a autonomia financeira é conseguir independência, inclusive para gerar
lucros e receitas [no caso com os títulos]", diz.
Mas os dados da dívida
pública consolidada no fim do ano passado, segundo Nassif, mostram que esses
títulos usados para fazer política monetária chegam a consumir R$ 1,2 trilhão
ou mais de 11% do produto interno bruto (PIB), "compostos no Banco Central
para fazer operações".
"Esse problema é
muito mais complexo do que simplesmente o fato de argumentar a necessidade da
autonomia financeira para pagar melhor aos funcionários, porque essa mudança
pode servir como estímulo para o próprio Banco Central aumentar as suas receitas,
e, com isso, ser impelido a aumentar mais os juros do que seria o necessário
para trazer a inflação para a meta", conclui.
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Como o mercado financeiro influencia a
economia?
Nem pelo mercado
financeiro nem pelo governo federal. Retomando o questionamento da reportagem
e, apesar de defender a independência financeira do Banco Central, Ricardo
Teixeira critica a interferência na entidade pelos dois lados.
"Quando vai para
a votação [a PEC] no Congresso, ajustes podem ser feitos e deixar a porta mais
aberta para que houvesse pressão maior sobre o órgão. E logicamente o que a
gente quer é que a instituição esteja protegida dessa pressão para que as decisões
possam ser decisões técnicas e, logicamente, com um olhar de médio e longo
prazo de política pública, e não de política partidária. Nem pressionada pelo
mercado nem pressionada pelo governo. Deve ser aquela decisão do melhor para o
país", finaliza.
¨ Comissão do Senado adia para agosto análise da PEC da autonomia
financeira do BC
A Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) do Senado adiou, em sessão nesta quarta-feira, a votação
da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que concede autonomia financeira e
orçamentária ao Banco Central, prevendo retomada do debate sobre o tema em
agosto, após o recesso parlamentar.
O adiamento ocorreu a
pedido do líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), para quem houve
avanço nas negociações sobre o tema nos últimos dias, mas o texto ainda “não
está completo”. Respaldado por outros membros da comissão, o presidente da CCJ,
senador Davi Alcolumbre (União-AP), acatou o pedido.
“Se sairmos dos
extremos, do debate político e ideológico, e construirmos um caminho de centro,
que é institucional, é o cerne da proposta, conseguiremos os 49 votos
necessários para aprovar o texto no Senado e 308 na Câmara”, disse Alcolumbre.
Nesta semana, o
governo sugeriu a parlamentares que o BC passe a arcar com custos do programa
de seguro rural Proagro caso a instituição saia do Orçamento geral da União
como previsto na proposta. Atualmente, a autoridade monetária administra o
Proagro, que é custeado com recursos do Tesouro.
Uma fonte com
conhecimento do assunto já havia afirmado à Reuters que a proposta envolvendo o
Proagro era parte da estratégia do governo de postergar o debate com a inserção
de uma espécie de bode na sala, já que sem acordo não haveria votação do texto
na CCJ.
Na sessão da comissão,
o relator da matéria, senador Plínio Valério (PSD-AM), disse que foi procurado
pelo governo com sugestões de mudanças no texto apenas nesta quarta, o que
inviabilizaria uma análise mais aprofundada.
Wagner voltou a
afirmar nesta quarta que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não é contra a
autonomia financeira do BC, mas não concorda com pontos do texto. Um deles é a
transformação da autarquia em empresa pública.
A interpretação do
governo é que a nova regra mudaria a forma de contabilização dos fluxos de
recursos entre BC e Tesouro, passando a impactar o resultado primário do
governo, o que inviabilizaria o cumprimento do arcabouço fiscal. Atualmente, o
Tesouro cobre eventuais resultados negativos da autoridade monetária, mas os
fluxos são contabilizados como despesa financeira, não primária.
Os resultados
negativos do BC decorrem principalmente de suas operações cambiais, que são
afetadas por contratos de swap e flutuações nas reservas internacionais do
Brasil. No ano passado, o resultado do BC foi negativo em R$ 114 bilhões.
A proposta agora
adiada, que dá um passo além da autonomia operacional do BC, em vigor desde
2021, é defendida pela maioria dos membros da diretoria da autoridade
monetária, mas criticada pelo governo Lula.
O texto altera o
regime jurídico da autarquia para transformá-la em empresa pública de natureza
especial com autonomia orçamentária e financeira. Com a medida, o orçamento do
órgão seria financiado por receitas próprias, deixando de depender de repasses do
Tesouro.
Lula vinha fazendo
reiteradas críticas ao BC e ao modelo de autonomia operacional, com foco em
ataques contra o presidente da autarquia, Roberto Campos Neto, indicado pelo
governo Jair Bolsonaro. O presidente interrompeu as críticas nas últimas
semanas em meio a uma rápida desvalorização do real, que refletia em parte as
incertezas geradas por suas declarações.
A PEC da autonomia
financeira também já foi alvo de questionamentos do ministro de Haddad, que
disse em março que não concordava com pontos do texto e que o BC deveria ter
dialogado com o governo antes de sair em defesa da proposta.
Fonte: Sputnik Brasil/Reuters
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