segunda-feira, 22 de julho de 2024

Armas e 'homeschooling' afastam evangélicos em SP do bolsonarismo, aponta Datafolha

Não é sempre que valores bolsonaristas arrebatam os evangélicos paulistanos. Armas e 'homeschooling' são temas que afastam as igrejas de Jair Bolsonaro (PL) e aliados, mostra pesquisa Datafolha.

Outros tópicos, como educação sexual e igualdade de gênero na sociedade, bandeiras que poderiam muito bem tremular em raias progressistas, também têm simpatia nos templos da capital paulista.

O descompasso diminui quando se fala de aborto e casamento homoafetivo. Nesses pontos há um alinhamento maior entre fiéis e falanges conservadoras, embora a rigidez ideológica amoleça a depender de como o debate se coloca -prender mulheres que abortam, por exemplo, não é uma causa popular.

Para entender como pensa o evangélico típico da maior cidade do país, o Datafolha entrevistou entre 24 e 28 de junho 613 paulistanos que declaram essa fé. A margem de erro é de quatro pontos percentuais.

A polarização não dá todas as cartas aqui. Quando você pergunta se o aborto deve deixar de ser crime, 68% desses religiosos vão dizer que não. O jogo vira se a questão é sobre processar e encarcerar a mulher que interrompe uma gravidez. Aí só três em cada dez evangélicos concordam que sim.

Preservar o atual status legal do aborto agrada a 48% do grupo -que o procedimento valha, portanto, para casos de estupro, risco de vida para a mãe e feto anencéfalo.

A parcela que aceita ampliar o escopo para mais situações é de 17%, e os que defendem liberar a suspensão da gravidez em todos os casos encolhe ainda mais: 4%. Proibir o aborto em qualquer contexto tem aderência de 25% da amostra.

A perspectiva de aprisionar quem aborta voltou à berlinda após a Câmara dos Deputados pôr em regime de urgência um projeto de lei que equipara quem aborta com mais de 22 semanas a um homicida. Caso aprovado, a legislação brasileira seria tão dura quanto a de países como Afeganistão.

A premissa de que pessoas do mesmo sexo têm direito à união civil tem a bênção de 26% dos evangélicos. Os contrários são 57%, enquanto o restante se divide entre indiferentes ao assunto ou quem não sabe responder. A possibilidade de um casal gay adotar filhos recebe acolhida maior: 43% acham ok, 42% são avessos.

Pode parecer um contrassenso que uma ampla maioria evangélica (86%) subscreva a ideia de que igrejas devam se abrir a homossexuais e trans, já que tantos não toleram que essas mesmas pessoas se casem ou adotem crianças. A postura, contudo, está em sintonia com discurso recorrente no cristianismo, de que Deus ama o pecador e repudia o pecado -como a identidade LGBTQIA+ em geral é vista nesses círculos.

A pauta das armas, cara ao bolsonarismo, não empolga os crentes de São Paulo. Apenas 28% aprovam a prerrogativa de que o cidadão possa ter uma arma para se defender. Essa agenda nunca foi pop nos púlpitos, mas a aliança entre pastores e Bolsonaro, e também entre as ditas bancadas da Bíblia (evangélica) e da bala (segurança pública), levou líderes a abandonar críticas mais diretas.

Se em 2015 o pastor Silas Malafaia afirmava que rever o Estatuto do Desarmamento era "um verdadeiro absurdo", em 2022 passou a dizer que, ainda que pessoalmente não seja afeito a armas, cabe ao povo, "soberano", decidir se as pessoas têm direito a andar armadas.

Enquanto presidente, Bolsonaro encampou a causa da educação domiciliar, o homeschooling, uma demanda de famílias que temem a intervenção do Estado na formação dos filhos e uma suposta doutrinação da esquerda nos colégios.

O modelo não encontra eco na base evangélica. Só 19% apreciam a sugestão de que pais possam substituir a escola por aulas em casa. Sobretudo para quem está na periferia, o sistema de ensino é uma importante rede de apoio e até fonte de alimentação via merenda, o que explica em parte a rejeição ao homeschooling.

A cada quatro fiéis, três acham que a escola deve abordar educação sexual. A fatia é expressiva, considerando que ultraconservadores propalam há anos o falso pressuposto de que a esquerda usa salas de aula para promover uma iniciação sexual precoce e inclinada a plataformas LGBTQIA+.

Claro que a compreensão sobre o que é educação sexual vai variar de interlocutor para interlocutor. A senadora Damares Alves, enquanto servia ao governo Bolsonaro como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chegou a defender que a abstinência sexual fosse ensinada como método contraceptivo.

A pesquisa mostra ainda uma gangorra, no segmento, entre princípios associados a esquerda e direita.

Da leva mais progressista: 89% concordam que homens e mulheres devem ter papel igual na sociedade, e 81% defendem o equilíbrio entre gêneros dentro da família, a despeito de pastores que pregam a submissão feminina usando a passagem bíblica que diz: "O marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja".

Pelo viés mais conservador, 79% ratificam justamente a sentença "a Bíblia deve ser levada ao pé da letra em todos os aspectos". Já 81% apoiam que a mulher deve ter modéstia ao se vestir.

Para a socióloga Christina Vital, que coordena o Laboratório de Estudos em Política, Arte e Religião da UFF, a sondagem revela rachaduras entre o que espera a base e o que apregoa a liderança evangélica.

A questão armamentista é um exemplo. "É sabido pelos moradores de favelas e periferias que as armas vulnerabilizam suas condições de vida cotidianas. Os números são do Atlas da Violência: 104 mil crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram assassinados entre 2012 e 2022, 81,5 % deles por armas de fogo."

Posições sobre o aborto também chamam a atenção de Vital. Ainda que a maioria não acate a descriminalização do recurso, só 29% são a favor da prisão para mulheres que a ele recorram. "Mais um ponto que leva à reflexão sobre as nuances entre a percepção do que é certo do ponto de vista legal, moral e religioso e o modo como evangélicos lidam com as questões no cotidiano."

•        Entrevista de Lula na Record fez aceno aos evangélicos e demonstra preocupação com a classe C

A entrevista de Lula (PT) ao Jornal da Record na terça-feira, 16, foi mais um gesto do presidente para se aproximar do eleitorado evangélico, segmento em que a desaprovação de sua gestão chega a 52%, segundo pesquisa Genial/Quaest divulgada este mês. A emissora, ligada à Igreja Universal do Reino de Deus, é considerada uma das mais influentes no meio religioso.

Na entrevista, que durou cerca de 40 minutos, Lula repetiu a receita de bolo que vem sendo usada desde o início de sua terceira gestão: buscar a aproximação com os evangélicos não por meio das pautas de costumes, como fez seu antecessor, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), mas através da agenda socioeconômica do governo.

O presidente tratou de descrever um cenário otimista sobre o seu terceiro mandato. Disse que o Brasil vive um “momento excepcional”, citou bons resultados na área econômica e enumerou realizações do governo, como o reajuste da merenda escolar e a valorização do salário mínimo. Assim como fez em outras ocasiões, Lula declarou guerra ao mercado e defendeu que o mais importante é o Brasil crescer.

Uma fala do presidente dizendo que o governo não tem obrigação de cumprir a meta fiscal se houver coisas mais importantes para fazer gerou nervosismo no mercado. O ministro da Fazenda teve que vir a público dizer que a fala havia sido retirada do contexto. Segundo ele, o presidente reforçou o arcabouço fiscal.

A estratégia do presidente de apelar para a temática social tem como pano de fundo o fato de uma parcela significativa do eleitorado evangélico no Brasil pertencer à classe C, segmento em que esse discurso pode, de fato, ganhar tração, segundo especialistas.

“O que mais chamou atenção na entrevista foi quando ele abordou a agenda econômica. Ele defende os resultados do governo e sinaliza que os resultados sociais são mais importantes do que agradar o mercado”, diz Vinicius do Valle, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Observatório Evangélico. “Ao falar de economia, principalmente para os mais pobres, Lula também está buscando se aproximar dos evangélicos, mas ele faz isso pelo aspecto econômico, pelo estômago, por aquilo que está melhorando a vida das pessoas mais pobres, que em grande parte são evangélicas.”

Essa estratégia, porém, tem dois problemas. O primeiro, diz Valle, é que parte considerável do eleitorado brasileiro está menos sensível a mudar de opinião, em razão da polarização. O segundo problema é a distorção entre os indicadores econômicos e a realidade da população de baixa renda, onde estão muitos evangélicos.

Embora as pesquisas quantitativas mostrem uma melhora nos números da avaliação de governo entre os evangélicos, nas pesquisas qualitativas a percepção sobre a situação do País não é tão positiva quanto Lula descreve na entrevista à Record, afirma o cientista político Renato Dorgan, que trabalha com pesquisa de opinião pública há mais de 20 anos e é sócio-proprietário do Instituto Travessia, especializado qualis.

“Há uma percepção de que o custo de vida aumentou, mas o governo não admite isso. Lula insiste em dizer que nunca houve uma queda tão grande no preço dos produtos, mas as pesquisas qualitativas mostram o contrário: na percepção das pessoas, os preços estão aumentando, a gasolina está mais cara, os alimentos estão mais caros. E nas classes mais baixas, onde estão boa parte dos evangélicos, o impacto disso é muito significativo, pois o salário não acompanha o aumento do custo de vida”, afirma Dorgan.

Desde o início do mandato, Lula tem buscado se aproximar do eleitorado evangélico. Em maio, ele lançou a campanha publicitária Fé no Brasil, destinada a divulgar as realizações do governo e acenar aos evangélicos. Embora não tenha participado da Marcha para Jesus, o presidente enviou uma carta elogiando o evento e destacando que a Igreja desempenha um “papel vital” no compromisso de construir um país mais “justo e inclusivo”. Além disso, Lula escalou alguns aliados, como o ministro da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias, e a vereadora de Goiânia, Aava Santiago (PSDB), para melhorar a interlocução com o segmento religioso.

Os dois especialistas concordam que, embora o governo faça acenos ao eleitorado evangélico, a aproximação de Lula com esse grupo enfrenta dois obstáculos significativos: a atuação do PT e a resistência dos evangélicos à primeira-dama Janja da Silva.

“Lula não é um rompedor de costumes, não é um vanguardista dos costumes. A rejeição é causada muito mais pelo entorno dele. Pautas como aborto, casamento civil de homossexuais, descriminalização do porte da maconha são capitaneadas pela esquerda e assustam o povo evangélico. Você não vê Lula defendendo essas pautas”, afirma Dorgan.

Vinicius do Valle também cita o PT e a primeira-dama como obstáculos para a aproximação de Lula e os evangélicos. “A Janja tem um estigma com esse público. Isso vem de uma rivalidade com a Michelle (Bolsonaro) e também do fato de a Janja ser publicamente uma pessoa que professa uma outra fé. Ela está no campo das religiões de matriz africana. São religiões que os evangélicos têm um histórico de embate e até intolerância”, afirma.

Devido às limitações em abordar pautas ideológicas, Lula tenta se comunicar com o segmento evangélico por outras vias, diz Valle. “Uma delas é econômica e a outra é mostrar que, apesar de não ser alguém do meio evangélico e ter posições progressistas em relação a parte da agenda de costumes, ele valoriza a família, o bem-estar, a solidariedade e acredita em Deus”, analisa o especialista.

 

Fonte: FolhaPress

 

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