Ameaças mantêm retomada indígena sob tensão
no MS: 'Pode resultar em conflito a qualquer momento'
Desde que
guarani-kaiowá retomaram área na Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica, em 13
de julho, tensão tem aumentado na região de Douradina, em Mato Grosso do Sul.
Na noite de
segunda-feira (22), dezenas de caminhonetes com cerca de 100 fazendeiros
acenderam os faróis em direção à área retomada. Indígenas ouvidos pela Sputnik
Brasil relataram que um membro de sua comunidade foi baleado na perna e que
proprietários rurais destruíram barracas e roubaram objetos durante a retomada.
A TI Panambi-Lagoa
Rica já foi reconhecida e delimitada, mas o processo de demarcação está
estagnado desde 2011. Os guarani-kaiowá afirmam que a área é ancestral e que
estão há séculos aguardando a demarcação. "Não somos invasores. Somos a
natureza da terra", disse uma das lideranças.
Por outro lado,
produtores rurais afirmam que têm o direito de usufruir da área.
O deputado estadual
Coronel David (PL), presidente da Frente Parlamentar Invasão Zero, da
Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul (Alems), tem acompanhado a
questão. "É uma situação tensa, por uma disputa histórica pela posse das
terras", afirma.
"Todos os
produtores possuem títulos de propriedade concedidos pelo Estado brasileiro. No
caso de Douradina são pequenos produtores, que dependem do que produzem para
sobreviver. Do outro lado tem os indígenas, que alegam ser donos das terras por
questões históricas. Sem entrar no mérito, entendemos que o direito de
propriedade está consagrado na Constituição e precisa ser respeitado."
Nesta semana, uma
reunião na sede do Ministério Público Federal (MPF) em Dourados buscou uma
solução provisória para o conflito. Ficou acordado que a comunidade indígena
permaneceria na área ocupada, mas dentro de um perímetro delimitado a 150
hectares, o que não tem sido praticado, já que a aldeia possui 400 hectares.
Uma nova reunião para
buscar um consenso está marcada para segunda-feira (29). Produtores rurais se
manifestaram em frente ao MPF, protestando contra a ocupação das terras.
Segundo Coronel David, o Ministério Público Federal já concedeu a reintegração
de posse aos produtores afetados.
Estudos da Fundação
Nacional dos Povos Indígenas (Funai) indicam que cerca de 12 mil hectares são
terras pertencentes aos povos indígenas nessa região.
Um vídeo que circula
nas redes sociais mostra um homem ao lado das caminhonetes enfileiradas
convocando para o "grande conflito". Ele menciona a chegada do
deputado federal Marcos Pollon (PL-MS), que defende os produtores rurais.
À Sputnik Brasil,
Pollon descreve a situação como "extremamente tensa" e acusa os
indígenas de agirem com impunidade.
Segundo o deputado, os
produtores rurais temem pela integridade física e pela segurança de suas
propriedades. Ele negou que os fazendeiros tenham cometido atos de violência,
atribuindo os conflitos a brigas internas entre os próprios indígenas e
acusando os ocupantes de serem de fora da região. "Esse pessoal que está
invadindo não pertence à região, eles são de fora, então o pessoal da própria
aldeia que tem lá já andou brigando com eles."
Ele também afirma que
há provas das ameaças e da violência por parte dos indígenas. "Nós temos
documentado muitas ameaças dos invasores em relação aos produtores ali da
região, ameaças sérias, e violência já [foi] perpetrada, desde destruição do
patrimônio até botar fogo na lavoura. Nós temos imagens, inclusive, em que eles
estão com arma de fogo."
Pollon também critica
a politização do conflito, atribuindo a responsabilidade a organizações não
governamentais (ONGs) e políticos de esquerda. "Eu não entro no mérito de
quem tem o direito sobre a terra, porque isso quem decide é o Judiciário. Agora,
quando você vive no Estado Democrático de Direito, você tem que esperar o
Judiciário decidir, não é através da violência que você resolve."
"A única forma
que eu vejo de resolver de forma pacífica e justa é permitindo que o Judiciário
dê a última palavra. Como eu disse, se você vive em um Estado Democrático de
Direito, não há espaço para resolver as coisas na violência. E o Estado tem que
responder à altura: sempre quando ações criminosas forem tomadas, invasões
forem perpetradas, tem que conduzir, prender os responsáveis em
flagrante", afirma.
Além de Douradina,
outros conflitos envolvendo terras indígenas ocorreram em julho em Mato Grosso
do Sul e em estados como Paraná, Rio Grande do Sul, Pará e Ceará.
·
Cenário de conflito
Segundo a deputada
estadual Gleice Jane (PT), os indígenas "retomaram esse território, e
desde então iniciou-se um conflito com os proprietários rurais, que incluem
grandes e pequenos proprietários, alguns assentados na era Getúlio
Vargas".
"No final de
semana, percebemos uma politização do processo, com a chegada de um deputado
federal que acompanha os ruralistas", afirmou à Sputnik Brasil.
No último sábado (20),
Jane visitou o local e descreveu o cenário como tenso. "Os indígenas estão
em uma área devastada, sem água, sem energia, enquanto os proprietários rurais
montaram uma barraca a cerca de 200 metros dali."
"É um cenário
preocupante, que pode resultar em conflito a qualquer momento", relatou a
deputada.
Apesar das
dificuldades, houve um esforço de mediação, em meio a um momento de delicadeza.
"Conseguimos estabelecer um congelamento, onde cada um fica onde está, até
pensarmos em alternativas possíveis."
Durante a visita ao
território, Jane diz ter encontrado um cenário de intimidação, com caminhonetes
alinhadas e faróis altos voltados para os indígenas. "Os indígenas
resistem, dizendo que vão lutar por essa terra. É um clima preocupante."
"Não existe um
vilão e um mocinho, mas sim um problema sério que o Estado criou. Estamos
tentando dialogar sobre quais são as possibilidades para que o Estado possa
atender à comunidade e destravar esse conflito", afirma, completando que
muitos indígenas têm alguma desconfiança em relação ao poder público como um
todo.
O deputado estadual
Coronel David cita o marco temporal das terras indígenas, aprovado pelo
Congresso brasileiro, que prevê que povos indígenas têm direito de ocupar
apenas terras dadas como oficiais ou em disputa até 5 de outubro de 1988, data
de promulgação da Constituição Federal. O projeto, no entanto, está em
avaliação por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) e pode ou não ser
invalidado.
"Lamento que
aquilo que foi aprovado de forma legítima pelo Congresso possa ainda estar
sendo contestado. Isso causa insegurança jurídica e traz inquietação a todos os
envolvidos nessa questão", afirma.
Segundo ele, a reunião
no MPF busca a solução do conflito "através da mediação, com a
possibilidade de haver, de forma inédita no Brasil, […] uma permuta de terras
com uma das proprietárias que tiveram suas terras invadidas, a fim de debelar o
conflito e […] invasões das outras áreas".
"Mas isso precisa
ser aceito pelas partes. Espero que isso se resolva logo."
·
Herança de uma política de colonização mal
planejada
De acordo com Anderson
Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), os
conflitos têm suas raízes em uma política de colonização realizada entre 1920 e
1945 e mal planejada.
"Mato Grosso do
Sul sempre tem conflito, sempre está tendo conflito envolvendo indígenas e
produtores, que é uma consequência da política de colonização mal feita que foi
realizada na década de 1920 a 1945, durante o governo de Getúlio Vargas, que reservou
oito espaços territoriais pequenos para toda a população guarani e kaiowá que
vivia aqui no sul do estado e também reservou outras sete áreas para o povo
terreno, que são áreas pequenas que não são espaços, à luz da Constituição,
tidos como tradicionalmente ocupados, mas que lá eles ficaram durante muito
tempo."
A situação se agrava
com a falta de demarcação das terras indígenas, segundo ele, levando a
tentativas de retomadas frequentes, como observado em Douradina. Santos aponta
que há um relatório da Funai, publicado há dez anos, em relação ao qual ainda
não houve nenhuma ação concreta. "Os indígenas chegam a um ponto em que
eles não têm mais nenhuma alternativa e não têm esperança de que o Estado vai
resolver a situação da demarcação."
"Tivemos uma
audiência no MPF onde teve participação dos produtores e uma mobilização grande
por parte deles. A comunidade indígena não foi para essa reunião, e foram
tentadas […] possibilidades, alternativas de resolução de uma forma mais
tranquila pelos produtores."
Segundo ele, o Cimi
apoia a comunidade indígena por meio de denúncias de violações e cobrando ações
governamentais. "A gente tem feito um trabalho desde o ano passado neste
novo governo, de cobrar do ministério medidas efetivas em relação à demarcação
das terras, de também cobrar medidas de segurança nesses momentos de conflito e
de acompanhar toda essa situação."
¨ Comissão de Anistia pede perdão a indígenas kaiowá em nome do
Brasil
A Comissão de Anistia
deu um passo importante no sentido de reparar parte das violações históricas
que os indígenas kaiowá, da Terra Indígena Sucurui´y, localizada no
Mato Grosso do Sul, sofrem há cinco séculos.
O colegiado aprovou,
nesta quinta-feira (25), um pedido de desculpas à comunidade em nome do Estado
brasileiro. A súplica é o reconhecimento oficial de que, entre as décadas de
1980 e 1990, com a conivência do Estado brasileiro, os kaiowá da Terra Indígena
Sucurui´y foram alvos de perseguição e violência.
A comissão também
aprovou o pedido de anistia política coletiva aos kaiowá de Sucuru´y, admitindo
que a comunidade foi atingida por atos de exceção decorrentes de motivação
exclusivamente política. Por se tratar de um requerimento coletivo, a anistia
política, com caráter de reparação constitucional, não comporta indenização
econômica – ao contrário dos casos individuais.
Conforme estabelece
a Lei 10.559, de 2002, podem ser declarados anistiados políticos aqueles
que, entre 18 de setembro de 1946 e 5 e outubro de 1988, foram prejudicados por
atos institucionais, complementares ou de exceção, bem como quem tenha sido
punido ou perseguido por motivos exclusivamente políticos.
“Esperamos, nesta
sessão, em relação a esta comunidade kaiowá, que comece a haver, por parte do
estado brasileiro, alguma reparação”, disse a presidenta da comissão, Enéa de
Stutz e Almeida, durante a terceira sessão de julgamentos de requerimentos
de anistia coletiva realizada pelo colegiado, órgão autônomo de assessoramento
do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
“Mais uma vez, nos
colocamos à disposição da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] e do
Ministério dos Povos Indígenas [MPI] para tudo aquilo em que pudermos colaborar
na luta dos povos indígenas – que é secular – no sentido de [conquistarem] melhores
condições de vida e reparações por mais de cinco séculos de violações dos
direitos humanos”, acrescentou Enéa antes de pedir perdão à comunidade, de
joelhos perante os representantes dos kaiowá. “Em nome do Estado brasileiro,
quero pedir perdão, desculpas, pelos séculos de violações de seus corpos e de
suas terras, e por tanta perseguição, barbárie e sofrimento. E agradecer pela
resistência de vocês, homenageando a seus antepassados”.
Presente à sessão, a
presidenta da Funai, Joênia Wapichana, classificou o caso dos kaiowá da Terra
Indígena Sucurui´y como “muito emblemático”. “Este é apenas um dos casos de
violências e de violações aos direitos dos povos indígenas e é importante as pessoas
conhecerem estes casos que, muitas vezes, não se permitiu que a sociedade
tomasse conhecimento”.
Uma das lideranças da
comunidade kaiowá presente
na sessão, Jety Jagar Guasu relembrou fatos que afirma
ter testemunhado quando criança, época em que a agropecuária se expandia na
Região Centro-Oeste. Com a ajuda de um intérprete, Jety contou que os
produtores rurais já então estabelecidos no estado, mais os que chegavam de
outras partes do país, atraídos por incentivos públicos, contaram com o apoio
de autoridades locais.
“Vem agora, a minha
memória, imagens dos fazendeiros avançando sobre nossas roças, passando o
trator e lançando implementos agrícolas sem nos perguntar se queríamos ou não,
se aquele era nosso território. E, depois, mais e mais fazendeiros foram
chegando até que, um dia, nos mandaram sair de nosso território que passaria a
ser deles. Começamos a sentir medo quando eles ameaçaram queimar nossas casas,
nossa casa de reza e destruir tudo relacionado a nossas tradições. Ao perceber
que não tínhamos escolha, tivemos que sair de nosso território e acamparmos na
beira da rodovia, de onde também fomos expulsos por policiais”, contou o líder
indígena.
·
Histórico
Localizada na cidade
de Maracaju (MS), a Terra Indígena Sucurui´y já foi batizada como um “símbolo
do absurdo” pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão vinculado
à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). E um exemplo da luta dos
povos indígenas para retomar parte de seus territórios originais,
principalmente no centro-oeste do país.
A Funai reconheceu e
delimitou a área em 1996, destinando cerca de 533 hectares para o usufruto
exclusivo dos kaiowá. Cada hectare corresponde, aproximadamente, às medidas de
um campo de futebol oficial. A portaria declaratória reconhecendo o direito territorial
dos kaiowá foi assinada em 1996. Apesar disso, produtores rurais e a prefeitura
recorreram da decisão, impedindo os indígenas de retornarem imediatamente à
área, forçando-os, assim, a permanecer acampados às margens de estradas
próximas.
Como forma de
pressionar as autoridades públicas a retirarem os não indígenas da área e
concluírem o processo demarcatório, um grupo indígena ocupou parte da reserva
em 1997. Foi necessária a intermediação do Ministério Público Federal (MPF)
para garantir que os kaiowá pudessem ocupar apenas 65 hectares da área total.
Em 1999, a reserva foi homologada pelo então presidente da República Fernando
Henrique Cardoso. No mesmo ano, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região
rejeitou, por unanimidade, o recurso que tentava impedir os kaiowá de se
instalar na área, mantendo decisão judicial anterior determinando a
desobstrução de Sucurui´y.
“A partir daí, é
proteger [a área e a comunidade]. Porque os direitos dos povos indígenas não
acabam com a finalização dos procedimentos demarcatórios que, sim, estabelece
os limites territoriais para que o Estado brasileiro possa incluir em seus
planejamentos o exercício de outros direitos, como programas de desenvolvimento
sustentável”.
O pedido de perdão aos
índios kaiowá se segue à súplica de mesmo teor feita, em abril deste ano, aos
indígenas krenak, do leste de Minas Gerais, e aos guarani kaiowá, do Mato
Grosso do Sul, por graves violações aos direitos das comunidades indígenas cometidas,
principalmente, durante o regime militar (1964/1985).
Fonte: Sputnik Brasil
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