sábado, 27 de julho de 2024

Ameaças mantêm retomada indígena sob tensão no MS: 'Pode resultar em conflito a qualquer momento'

Desde que guarani-kaiowá retomaram área na Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica, em 13 de julho, tensão tem aumentado na região de Douradina, em Mato Grosso do Sul.

Na noite de segunda-feira (22), dezenas de caminhonetes com cerca de 100 fazendeiros acenderam os faróis em direção à área retomada. Indígenas ouvidos pela Sputnik Brasil relataram que um membro de sua comunidade foi baleado na perna e que proprietários rurais destruíram barracas e roubaram objetos durante a retomada.

A TI Panambi-Lagoa Rica já foi reconhecida e delimitada, mas o processo de demarcação está estagnado desde 2011. Os guarani-kaiowá afirmam que a área é ancestral e que estão há séculos aguardando a demarcação. "Não somos invasores. Somos a natureza da terra", disse uma das lideranças.

Por outro lado, produtores rurais afirmam que têm o direito de usufruir da área.

O deputado estadual Coronel David (PL), presidente da Frente Parlamentar Invasão Zero, da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul (Alems), tem acompanhado a questão. "É uma situação tensa, por uma disputa histórica pela posse das terras", afirma.

"Todos os produtores possuem títulos de propriedade concedidos pelo Estado brasileiro. No caso de Douradina são pequenos produtores, que dependem do que produzem para sobreviver. Do outro lado tem os indígenas, que alegam ser donos das terras por questões históricas. Sem entrar no mérito, entendemos que o direito de propriedade está consagrado na Constituição e precisa ser respeitado."

Nesta semana, uma reunião na sede do Ministério Público Federal (MPF) em Dourados buscou uma solução provisória para o conflito. Ficou acordado que a comunidade indígena permaneceria na área ocupada, mas dentro de um perímetro delimitado a 150 hectares, o que não tem sido praticado, já que a aldeia possui 400 hectares.

Uma nova reunião para buscar um consenso está marcada para segunda-feira (29). Produtores rurais se manifestaram em frente ao MPF, protestando contra a ocupação das terras. Segundo Coronel David, o Ministério Público Federal já concedeu a reintegração de posse aos produtores afetados.

Estudos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) indicam que cerca de 12 mil hectares são terras pertencentes aos povos indígenas nessa região.

Um vídeo que circula nas redes sociais mostra um homem ao lado das caminhonetes enfileiradas convocando para o "grande conflito". Ele menciona a chegada do deputado federal Marcos Pollon (PL-MS), que defende os produtores rurais.

À Sputnik Brasil, Pollon descreve a situação como "extremamente tensa" e acusa os indígenas de agirem com impunidade.

Segundo o deputado, os produtores rurais temem pela integridade física e pela segurança de suas propriedades. Ele negou que os fazendeiros tenham cometido atos de violência, atribuindo os conflitos a brigas internas entre os próprios indígenas e acusando os ocupantes de serem de fora da região. "Esse pessoal que está invadindo não pertence à região, eles são de fora, então o pessoal da própria aldeia que tem lá já andou brigando com eles."

Ele também afirma que há provas das ameaças e da violência por parte dos indígenas. "Nós temos documentado muitas ameaças dos invasores em relação aos produtores ali da região, ameaças sérias, e violência já [foi] perpetrada, desde destruição do patrimônio até botar fogo na lavoura. Nós temos imagens, inclusive, em que eles estão com arma de fogo."

Pollon também critica a politização do conflito, atribuindo a responsabilidade a organizações não governamentais (ONGs) e políticos de esquerda. "Eu não entro no mérito de quem tem o direito sobre a terra, porque isso quem decide é o Judiciário. Agora, quando você vive no Estado Democrático de Direito, você tem que esperar o Judiciário decidir, não é através da violência que você resolve."

"A única forma que eu vejo de resolver de forma pacífica e justa é permitindo que o Judiciário dê a última palavra. Como eu disse, se você vive em um Estado Democrático de Direito, não há espaço para resolver as coisas na violência. E o Estado tem que responder à altura: sempre quando ações criminosas forem tomadas, invasões forem perpetradas, tem que conduzir, prender os responsáveis em flagrante", afirma.

Além de Douradina, outros conflitos envolvendo terras indígenas ocorreram em julho em Mato Grosso do Sul e em estados como Paraná, Rio Grande do Sul, Pará e Ceará.

·        Cenário de conflito

Segundo a deputada estadual Gleice Jane (PT), os indígenas "retomaram esse território, e desde então iniciou-se um conflito com os proprietários rurais, que incluem grandes e pequenos proprietários, alguns assentados na era Getúlio Vargas".

"No final de semana, percebemos uma politização do processo, com a chegada de um deputado federal que acompanha os ruralistas", afirmou à Sputnik Brasil.

No último sábado (20), Jane visitou o local e descreveu o cenário como tenso. "Os indígenas estão em uma área devastada, sem água, sem energia, enquanto os proprietários rurais montaram uma barraca a cerca de 200 metros dali."

"É um cenário preocupante, que pode resultar em conflito a qualquer momento", relatou a deputada.

Apesar das dificuldades, houve um esforço de mediação, em meio a um momento de delicadeza. "Conseguimos estabelecer um congelamento, onde cada um fica onde está, até pensarmos em alternativas possíveis."

Durante a visita ao território, Jane diz ter encontrado um cenário de intimidação, com caminhonetes alinhadas e faróis altos voltados para os indígenas. "Os indígenas resistem, dizendo que vão lutar por essa terra. É um clima preocupante."

"Não existe um vilão e um mocinho, mas sim um problema sério que o Estado criou. Estamos tentando dialogar sobre quais são as possibilidades para que o Estado possa atender à comunidade e destravar esse conflito", afirma, completando que muitos indígenas têm alguma desconfiança em relação ao poder público como um todo.

O deputado estadual Coronel David cita o marco temporal das terras indígenas, aprovado pelo Congresso brasileiro, que prevê que povos indígenas têm direito de ocupar apenas terras dadas como oficiais ou em disputa até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. O projeto, no entanto, está em avaliação por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) e pode ou não ser invalidado.

"Lamento que aquilo que foi aprovado de forma legítima pelo Congresso possa ainda estar sendo contestado. Isso causa insegurança jurídica e traz inquietação a todos os envolvidos nessa questão", afirma.

Segundo ele, a reunião no MPF busca a solução do conflito "através da mediação, com a possibilidade de haver, de forma inédita no Brasil, […] uma permuta de terras com uma das proprietárias que tiveram suas terras invadidas, a fim de debelar o conflito e […] invasões das outras áreas".

"Mas isso precisa ser aceito pelas partes. Espero que isso se resolva logo."

·        Herança de uma política de colonização mal planejada

De acordo com Anderson Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), os conflitos têm suas raízes em uma política de colonização realizada entre 1920 e 1945 e mal planejada.

"Mato Grosso do Sul sempre tem conflito, sempre está tendo conflito envolvendo indígenas e produtores, que é uma consequência da política de colonização mal feita que foi realizada na década de 1920 a 1945, durante o governo de Getúlio Vargas, que reservou oito espaços territoriais pequenos para toda a população guarani e kaiowá que vivia aqui no sul do estado e também reservou outras sete áreas para o povo terreno, que são áreas pequenas que não são espaços, à luz da Constituição, tidos como tradicionalmente ocupados, mas que lá eles ficaram durante muito tempo."

A situação se agrava com a falta de demarcação das terras indígenas, segundo ele, levando a tentativas de retomadas frequentes, como observado em Douradina. Santos aponta que há um relatório da Funai, publicado há dez anos, em relação ao qual ainda não houve nenhuma ação concreta. "Os indígenas chegam a um ponto em que eles não têm mais nenhuma alternativa e não têm esperança de que o Estado vai resolver a situação da demarcação."

"Tivemos uma audiência no MPF onde teve participação dos produtores e uma mobilização grande por parte deles. A comunidade indígena não foi para essa reunião, e foram tentadas […] possibilidades, alternativas de resolução de uma forma mais tranquila pelos produtores."

Segundo ele, o Cimi apoia a comunidade indígena por meio de denúncias de violações e cobrando ações governamentais. "A gente tem feito um trabalho desde o ano passado neste novo governo, de cobrar do ministério medidas efetivas em relação à demarcação das terras, de também cobrar medidas de segurança nesses momentos de conflito e de acompanhar toda essa situação."

 

¨      Comissão de Anistia pede perdão a indígenas kaiowá em nome do Brasil

A Comissão de Anistia deu um passo importante no sentido de reparar parte das violações históricas que os indígenas kaiowá, da Terra Indígena Sucurui´y, localizada no Mato Grosso do Sul, sofrem há cinco séculos.

O colegiado aprovou, nesta quinta-feira (25), um pedido de desculpas à comunidade em nome do Estado brasileiro. A súplica é o reconhecimento oficial de que, entre as décadas de 1980 e 1990, com a conivência do Estado brasileiro, os kaiowá da Terra Indígena Sucurui´y foram alvos de perseguição e violência.

A comissão também aprovou o pedido de anistia política coletiva aos kaiowá de Sucuru´y, admitindo que a comunidade foi atingida por atos de exceção decorrentes de motivação exclusivamente política. Por se tratar de um requerimento coletivo, a anistia política, com caráter de reparação constitucional, não comporta indenização econômica – ao contrário dos casos individuais.

Conforme estabelece a Lei 10.559, de 2002, podem ser declarados anistiados políticos aqueles que, entre 18 de setembro de 1946 e 5 e outubro de 1988, foram prejudicados por atos institucionais, complementares ou de exceção, bem como quem tenha sido punido ou perseguido por motivos exclusivamente políticos.

“Esperamos, nesta sessão, em relação a esta comunidade kaiowá, que comece a haver, por parte do estado brasileiro, alguma reparação”, disse a presidenta da comissão, Enéa de Stutz e Almeida, durante a terceira sessão de julgamentos de requerimentos de anistia coletiva realizada pelo colegiado, órgão autônomo de assessoramento do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

“Mais uma vez, nos colocamos à disposição da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] e do Ministério dos Povos Indígenas [MPI] para tudo aquilo em que pudermos colaborar na luta dos povos indígenas – que é secular – no sentido de [conquistarem] melhores condições de vida e reparações por mais de cinco séculos de violações dos direitos humanos”, acrescentou Enéa antes de pedir perdão à comunidade, de joelhos perante os representantes dos kaiowá. “Em nome do Estado brasileiro, quero pedir perdão, desculpas, pelos séculos de violações de seus corpos e de suas terras, e por tanta perseguição, barbárie e sofrimento. E agradecer pela resistência de vocês, homenageando a seus antepassados”.

Presente à sessão, a presidenta da Funai, Joênia Wapichana, classificou o caso dos kaiowá da Terra Indígena Sucurui´y como “muito emblemático”. “Este é apenas um dos casos de violências e de violações aos direitos dos povos indígenas e é importante as pessoas conhecerem estes casos que, muitas vezes, não se permitiu que a sociedade tomasse conhecimento”.

Uma das lideranças da comunidade kaiowá presente na sessão, Jety Jagar Guasu relembrou fatos que afirma ter testemunhado quando criança, época em que a agropecuária se expandia na Região Centro-Oeste. Com a ajuda de um intérprete, Jety contou que os produtores rurais já então estabelecidos no estado, mais os que chegavam de outras partes do país, atraídos por incentivos públicos, contaram com o apoio de autoridades locais.

“Vem agora, a minha memória, imagens dos fazendeiros avançando sobre nossas roças, passando o trator e lançando implementos agrícolas sem nos perguntar se queríamos ou não, se aquele era nosso território. E, depois, mais e mais fazendeiros foram chegando até que, um dia, nos mandaram sair de nosso território que passaria a ser deles. Começamos a sentir medo quando eles ameaçaram queimar nossas casas, nossa casa de reza e destruir tudo relacionado a nossas tradições. Ao perceber que não tínhamos escolha, tivemos que sair de nosso território e acamparmos na beira da rodovia, de onde também fomos expulsos por policiais”, contou o líder indígena.

·        Histórico

Localizada na cidade de Maracaju (MS), a Terra Indígena Sucurui´y já foi batizada como um “símbolo do absurdo” pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). E um exemplo da luta dos povos indígenas para retomar parte de seus territórios originais, principalmente no centro-oeste do país.

A Funai reconheceu e delimitou a área em 1996, destinando cerca de 533 hectares para o usufruto exclusivo dos kaiowá. Cada hectare corresponde, aproximadamente, às medidas de um campo de futebol oficial. A portaria declaratória reconhecendo o direito territorial dos kaiowá foi assinada em 1996. Apesar disso, produtores rurais e a prefeitura recorreram da decisão, impedindo os indígenas de retornarem imediatamente à área, forçando-os, assim, a permanecer acampados às margens de estradas próximas.

Como forma de pressionar as autoridades públicas a retirarem os não indígenas da área e concluírem o processo demarcatório, um grupo indígena ocupou parte da reserva em 1997. Foi necessária a intermediação do Ministério Público Federal (MPF) para garantir que os kaiowá pudessem ocupar apenas 65 hectares da área total. Em 1999, a reserva foi homologada pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso. No mesmo ano, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região rejeitou, por unanimidade, o recurso que tentava impedir os kaiowá de se instalar na área, mantendo decisão judicial anterior determinando a desobstrução de Sucurui´y.

“A partir daí, é proteger [a área e a comunidade]. Porque os direitos dos povos indígenas não acabam com a finalização dos procedimentos demarcatórios que, sim, estabelece os limites territoriais para que o Estado brasileiro possa incluir em seus planejamentos o exercício de outros direitos, como programas de desenvolvimento sustentável”.

O pedido de perdão aos índios kaiowá se segue à súplica de mesmo teor feita, em abril deste ano, aos indígenas krenak, do leste de Minas Gerais, e aos guarani kaiowá, do Mato Grosso do Sul, por graves violações aos direitos das comunidades indígenas cometidas, principalmente, durante o regime militar (1964/1985).

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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