A ascensão das gestoras de ativos
A crise financeira de
2008 marcou uma mudança fundamental no capitalismo americano. À medida que os
esforços de gerenciamento da crise feita pelo Federal Reserve e pelo Tesouro
levaram o poder do Estado mais profundamente para o coração do sistema
financeiro, sucessivas rodadas de flexibilização quantitativa facilitaram a
concentração e centralização sem precedentes da propriedade corporativa em um
pequeno grupo de empresas gigantes de gestão de ativos.
Na esteira da crise,
essas empresas – BlackRock, Vanguard e State Street – substituíram os bancos
como as instituições mais poderosas das finanças contemporâneas, acumulando
poder proprietário em escala e escopo nunca dantes vistos na história do
capitalismo. Essas empresas de gestão de ativos tornaram-se os nós centrais em
uma vasta rede que incorporou quase todas as grandes empresas de todos os
setores econômicos.
Esse advento
representou uma transformação histórica do poder corporativo. Desde o New
Deal, a separação de propriedade e controle tinha sido uma característica
central da forma organizacional da corporação: aqueles que possuíam a empresa
(acionistas) eram formalmente diferentes daqueles que controlavam a empresa
(gerentes). Nas décadas anteriores à crise de 2008, os mercados mediavam a
relação entre acionistas e gerentes: os acionistas “fugiam” das empresas de
baixo desempenho vendendo as suas ações.
Mas com a ascensão dos
Três Grandes após a crise financeira, a distinção entre propriedade e controle
foi rompida. Como “investidores passivos”, as empresas de gestão de ativos
podem negociar mudanças de posição das empresas que possuem em um índice de ações,
como o S&P 500 ou o Nasdaq. Contudo, como são incapazes simplesmente de se
desfazerem de ações conforme oscilam, eles procuram meios mais diretos de
controlar as corporações industriais.
Essa influência
financeira sobre as corporações industriais não era vista desde a primeira Era
Dourada (1870-1900), quando titãs como J. P. Morgan dominaram o capitalismo
americano. Por mais de um século, a concentração do poder de propriedade ficou
limitada por um trade-off básico: os investidores podiam
possuir uma parcela relativamente pequena de muitas empresas ou uma grande
parcela de um pequeno número de empresas.
Com maior
diversificação, em outras palavras, as participações acionárias eram diluídas
em muitas empresas, limitando o controle que os investidores poderiam exercer
sobre qualquer corporação em particular. Os investidores poderiam, assim,
acumular participações suficientes para exercer um poder substancial apenas
sobre um número relativamente pequeno de empresas. A ascensão das gigantescas
empresas de gestão de ativos desde 2008 reverteu essa dinâmica: as Três Grandes
se tornaram os maiores acionistas de quase todas as maiores e mais importantes
empresas.
Hoje, as Três Grandes
são coletivamente os maiores acionistas de empresas que compreendem quase 90%
da capitalização de mercado total da economia dos EUA. Isso inclui 98% das
empresas do índice S&P 500, que acompanha as maiores companhias americanas –
as Três Grandes possuem uma média de mais de 20% de cada empresa.
Igualmente notável é a
velocidade com essa concentração ocorreu durante e após a crise de 2008.
De 2004 a 2009, os ativos sob gestão da State Street aumentaram em 41%,
enquanto os da Vanguard aumentaram em 78%, um número ainda maior. O significado
único da BlackRock dentro dessa estrutura de poder, no entanto, se reflete na
explosão de seus ativos sob gestão em quase 879% durante esses anos,
tornando-se de longe a maior gestora global de ativos em 2009.
O ritmo e a escala
dessa mudança anunciaram uma nova fase do capitalismo americano, definida pela
concentração sem precedentes da propriedade, bem como pela centralização do
controle corporativo, em torno de um pequeno número de empresas financeiras. As
empresas gigantes de gestão de ativos agora desempenham um papel altamente
ativo, direto e poderoso na gestão corporativa – e o fazem em relação a quase
todas as empresas de capital aberto na economia americana. Eles se tornaram
“proprietários universais”, administrando o capital social total dos Estados
Unidos.
- Queda e ascensão das finanças nos EUA
O vínculo estreito
entre instituições financeiras e corporações não financeiras estabelecido após
2008 constituiu uma nova forma de fusão do capital financeiro e industrial que
o economista político marxista Rudolf Hilferding apelidou de “capital financeiro”
em 1910. Embora o termo tenha sido amplamente mal utilizado, o capital
financeiro não se refere simplesmente ao capital de finanças, muito menos ao
capital bancário.
Em vez disso, o capital
financeiro emergiu por meio da conjunção do capital de finanças e do capital
industrial. Trata-se de uma nova forma de existência do capital que se
estabelece por meio de sua união – uma síntese que suprime as formas
industriais e financeiras originais. Por meio desse processo, as instituições
financeiras passaram a desempenhar um papel ativo e direto na gestão das
corporações industriais. Ao moldar a direção estratégica e a estrutura
organizacional das corporações que controlavam, os financistas visavam
maximizar os retornos de seu capital-dinheiro tanto por meio dos preços de
ações, quanto por meio da obtenção de dividendos e de bonificações (formas de
pagamento de juros).
O capital financeiro é
uma forma específica de capitalismo financeirizado. Em geral, a financeirização
refere-se ao processo pelo qual o capital-dinheiro – ou o circuito pelo qual o
dinheiro é adiantado e depois devolvido com juros – alcança maior domínio sobre
a vida social e a economia. A expansão do capital-dinheiro foi, como muitas
vezes se observou, uma característica importante do período neoliberal. Isso se
refletiu na doutrina do “valor dedicado ao acionista”, segundo a qual as
empresas deveriam dar maior peso à recompensa dos investidores por meio de
dividendos e recompras de ações.
O capital financeiro
em sua forma atual representa uma forma muito mais concentrada de
financeirização e um vínculo muito mais estreito entre o capital financeiro e o
industrial. Um argumento central deste livro é que nem a tendência mais ampla
de financeirização nem o surgimento do capital financeiro indicam o declínio do
capitalismo, ou mesmo o enfraquecimento da indústria, como tem sido
frequentemente afirmado. Em vez disso, a financeirização tem ocorrido para
aumentar a competitividade, maximizar o lucro e aumentar a produtividade e a
exploração do trabalho.
Além disso, ao
contrário dos muitos estudos que retratam a financeirização como uma ruptura
abrupta com um capitalismo não financeirizado que antecedeu o neoliberalismo,
argumentamos que as raízes da financeirização se encontram já no período
pós-guerra – eis que surgiu como consequência dos esforços do Estado para impor
uma separação “estanque” entre a finança e a indústria.
Traçando a ascensão do
poder financeiro nos últimos dois terços do século XX até as duas primeiras
décadas do século XXI, desde o colapso do império de J. P. Morgan até a
ascensão da BlackRock, apresentamos uma história alternativa das finanças
americanas que desafia os relatos mais difundidos. No traçado que esboçamos, a
história da financeirização tem quatro fases distintas: capital financeiro
clássico, gerencialismo, neoliberalismo e novo capital financeiro.
Essas fases formam um
ciclo que consiste no declínio e, em seguida, na reconstrução gradual, desigual
e contraditória do poder financeiro. Cada fase é caracterizada por formas
organizadas específicas de poder estatal, corporativo e de classe, com transições
marcadas não por “rupturas” bruscas, mas sim por transições que envolvem
continuidades e mudanças.
A teoria do capital
financeiro de Hilferding foi derivada de sua investigação sobre o
desenvolvimento capitalista na Alemanha no final do século XIX; no entanto, a
tese principal de seu estudo também se aplicava amplamente no caso dos Estados
Unidos. Durante este período clássico do capital financeiro (1880-1929),
os bancos de investimento formaram grandes corporações por meio da fusão de
empresas menores. O poder desses bancos dependia da propriedade detida de ações
corporativas e de sua capacidade de fornecer crédito.
À medida que os bancos
de investimento emprestavam grandes somas de dinheiro a empresas industriais,
os interesses de ambos se tornavam intimamente interligados: enquanto as
empresas industriais dependiam do acesso ao crédito, os bancos de investimento
procuravam garantir que os empréstimos fossem pagos e, portanto, monitoravam as
operações corporativas para salvaguardar seus investimentos. A posição dos
bancos como os maiores acionistas garantiu seu poder sobre as corporações,
permitindo-lhes adquirir assentos nos conselhos de administração e estabelecer
“diretorias interligadas” das empresas que controlavam.
Essas redes de capital
financeiro tornaram-se mais frouxas com a crescente fragmentação da propriedade
acionária na primeira parte do século XX. Um novo estrato de gerentes
profissionais passou a exercer um controle cada vez mais autônomo das
corporações industriais, de tal modo que os bancos ficaram reduzidos à função
de apoio. O período gerencial (1930-1979) foi posto pelos regulamentos
promulgados na esteira do crash do mercado de ações de 1929, que separou
formalmente os bancos da governança das empresas industriais e deixou os
gerentes corporativos “internos” como a força proeminente na economia.
A ausência de grandes
blocos de participações acionárias nesse período permitiu que esses gestores
controlassem as empresas industriais sem enfrentar uma ingerência constante dos
investidores. No entanto, ao mesmo tempo, a separação entre bancos e corporações
industriais levou estas últimas a internalizarem uma série de funções
“financeiras”. Eis que desenvolveram assim amplas capacidades para levantar e
emprestar capital de forma independente. A financeirização da corporação não
financeira originou-se, portanto, no coração da nova “era dourada” do
pós-guerra.
A hegemonia das
corporações industriais neste período foi apoiada pela atuação do Estado
do New Deal, que tinha três atributos principais. O primeiro deles
era o foco na legitimação. As reformas do New Deal, como os
direitos sindicais e a previdência social, visavam desmobilizar as intensas
lutas de classes da década de 1930. Essas medidas aumentaram a legitimidade do
capitalismo e integraram os trabalhadores na estrutura da hegemonia gerencial.
Em segundo lugar,
essas reformas levaram a uma enorme expansão dos gastos fiscais do estado, que
foram substancialmente financiados por meio da tributação. O Estado do New
Deal era, portanto, um estado tributário e redistributivo; os seus
programas de compensação reduziram os níveis de desigualdade de renda. No
período, os pleitos dos sindicatos amplamente apolíticos na negociação coletiva
eram também bem-sucedidos. Finalmente, a hegemonia industrial foi apoiada por
um complexo militar-industrial, que integrou as corporações mais dinâmicas com
o poder estatal. Isso gerou enorme crescimento e diversificação das chamadas
corporações multinacionais, estimulando o desenvolvimento da forma de
organização corporativa que ficou conhecida como “conglomerado multidivisional”.
À medida que o boom do
pós-guerra desacelerou no final da década de 1960, a ação da militância
sindical por maiores salários espremeu cada vez mais os lucros corporativos,
levando a uma contradição crescente entre legitimação e acumulação: os direitos
sindicais e os programas do New Deal se tornaram agora
barreiras à acumulação. Isso foi resolvido por meio da formação do estado
autoritário neoliberal, que disciplinou o trabalho por meio de um aumento sem
precedentes nas taxas de juros e uma nova rodada de globalização.
As eleições e os
partidos políticos tornaram-se ainda menos significativos à medida que o poder
do Estado se concentrava em agências isoladas das pressões democráticas,
especialmente o banco central norte-americano, conhecido como Federal Reserve.
Essa estrutura autoritária foi reforçada pelo fato de que o Estado neoliberal
era um Estado endividado. À medida que os impostos foram reduzidos para
restaurar os lucros corporativos, os programas estaduais foram cada vez mais
financiados por meio de dívidas, o que requereu um aumento da disciplina das
finanças sobre os orçamentos estaduais. Isso também contribuiu para o aumento
da desigualdade. Em vez de pagar impostos por programas redistributivos, os
ricos agora emprestavam fundos estatais para serem reembolsados com juros.
No período neoliberal
(1980-2008), a hegemonia da indústria foi contrariada por uma nova forma de
poder financeiro. Em parte, isso resultou da integração dos mercados
financeiros globais, que forneceram a infraestrutura essencial para as empresas
circularem valor através de redes de produção internacionalizadas. A
hegemonia financeira também foi apoiada pela proliferação de fundos de pensão
de trabalhadores a partir das décadas de 1960 e 1970, administrados por
gestores de dinheiro profissionais.
Uma onda de
concentração e centralização de ações corporativas ocorreu nesses novos
“investidores institucionais”, que passaram a exercer um poder significativo
sobre as empresas industriais. No entanto, essa forma de poder financeiro
era bem diferente daquela do capital financeiro clássico. Em vez de bancos
individuais exercerem controle direto sobre redes de empresas, constelações de
instituições financeiras concorrentes exerceram ampla disciplina estrutural.
No entanto, longe de
ser imposta pela pressão externa dos investidores, a hegemonia financeira
surgiu inicialmente dentro da própria empresa industrial, como uma resposta
adaptativa à diversificação e internacionalização ao longo das décadas do
pós-guerra. Na verdade, esse era um aspecto intrínseco da forma de organização
corporativa do conglomerado multidivisional. Em vez de serem organizadas em
torno de um negócio, com maior diversificação, as grandes corporações passaram
a incluir muitas operações diferentes, que muitas vezes tinham pouca ou nenhuma
relação direta entre si.
Além disso, essas
operações eram cada vez mais internacionais em escopo. Os desafios que isso
trouxe levaram os conglomerados a descentralizarem a gestão operacional das
unidades de negócios, mesmo quando o poder sobre o investimento estava
centralizado nas mãos dos gerentes situados no topo. Esses “gerentes
generalistas” não administravam um processo de produção concreto, mas sim o
próprio capital-dinheiro; no período neoliberal, eles se tornaram capitalistas
financeiros, pois tinham como função estabelecer o nexo entre finanças e
indústria.
Com o desenvolvimento
dos mercados de capitais no interior das corporações industriais, as suas
unidades e funções financeiras tornaram-se cada vez mais dominantes. Isso se
manifestou de forma clara na transformação do tesoureiro corporativo em diretor
financeiro responsável tanto por responder às “expectativas dos investidores”
quanto por realizar a reestruturação interna necessária para atendê-las, na
condição de braço direito do presidente do conglomerado.
As capacidades
financeiras das empresas industriais também se expandiram à medida que buscavam
gerenciar os riscos da globalização envolvendo-se no comércio de
derivativos. Tudo isso culminou no surgimento da forma subsidiária
multicamadas de organização corporativa, por meio da qual as multinacionais
organizaram a produção integrando suas divisões internas com uma camada
secundária de subcontratados externos para formar redes globais altamente
flexíveis e competitivas. A dependência da Apple americana da Foxconn
chinesa é apenas um exemplo proeminente dessa forma de estruturação empresarial
contemporânea.
O novo capital
financeiro foi formado após a crise de 2008, quando o poder financeiro difuso
do capitalismo de acionistas, algo característico do período anterior, foi
centralizado por meio da criação de gigantescas empresas de gestão de ativos.
Em meio ao colapso financeiro, os reguladores procuraram aumentar a
estabilidade sistêmica orquestrando a consolidação bancária. Quando a poeira
baixou, apenas quatro megabancos – JPMorgan Chase, Bank of America, Wells Fargo
e Citigroup – dominavam o setor bancário nos Estados Unidos.
Ironicamente, a
intervenção estatal contribuiu para um recolhimento dos bancos diante de um
grupo de empresas gigantes de gestão de ativos – a saber, BlackRock, State
Street e Vanguard. Como a atuação precavida do Estado diante do risco reduziu
drasticamente o risco das ações, as empresas de gestão de ativos abriram o
caminho para que ocorresse uma enxurrada de dinheiro nesse tipo de ativo. A
conversão de poupanças em ações reduziu ainda mais o risco e levou a aumentos
contínuos nos preços das ações – bem como à concentração e centralização
igualmente contínuas da propriedade pelos gestores de ativos.
Uma base importante da
propriedade concentrada das empresas de gestão de ativos são os fundos de
pensão e outros investidores institucionais, que cada vez mais delegam a gestão
de suas carteiras a essas empresas. Ao reunir as já enormes massas de capital
acumulado nesses fundos, as empresas de gestão de ativos concentram ainda mais
o poder financeiro. Elas ganharam assim um grau de domínio econômico nunca
visto desde os tempos em que dominava o JP Morgan. Isso foi sustentado por uma
mudança histórica em direção à chamada “gestão passiva”.
Ao contrário da gestão
ativa, em que os gestores de dinheiro altamente pagos buscam maximizar os
retornos “batendo o mercado”, os fundos passivos detêm ações indefinidamente,
negociando apenas com o objetivo de rastrear e se aproximar do movimento de um determinado
índice. Isso permite que ofereçam taxas de administração drasticamente mais
baixas e, especialmente no contexto do aumento dos preços das ações, altos
retornos. Mas esses investidores passivos, ao contrário do que parecem, são
proprietários muito ativos. Como eles não podem disciplinar as corporações
industriais simplesmente negociando ações, eles buscam métodos mais diretos de
influência, os quais são característicos do capital financeiro como tal.
Se a ascensão das
empresas de gestão de ativos fez parte de uma mudança histórica na organização
do capitalismo americano, isso se mostra em particular por meio da preeminência
da BlackRock. Em 2022, os ativos sob gestão da BlackRock atingiram US$ 10 trilhões.
Se incluirmos os ativos que gerencia indiretamente por meio de sua plataforma
de software Aladdin, esse número se aproxima de US$ 25 trilhões. A BlackRock
está agora entre os principais proprietários de quase todas as grandes empresas
americanas de capital aberto.
Nunca dantes no
capitalismo a concentração de capital atingiu uma extensão tão impressionante.
Seu poder se reflete não apenas no tamanho de seus ativos sob gestão, mas
também em sua conexão especial com o Estado. Enquanto George W. Bush escolheu
Hank Paulson, da Goldman Sachs, para ser secretário do Tesouro durante seu
governo, Hillary Clinton e Joe Biden consideraram o CEO da BlackRock, Larry
Fink, para esse cargo. O principal conselheiro econômico de Biden, Brian Deese,
também é executivo da BlackRock. Tudo isso aponta para o poder crescente desse
novo tipo de capitalista financeiro.
NOTA:
Trecho do livro The fall and rise of american finance – From J. P.Morgan
to BlackRock. Londres e Nova York: Verso, 2024. Tradução:
Eleutério F. S. Prado.
Fonte: Por Stephen
Maher e Scott Aquanno em A Terra é Redonda
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