As mulheres
ordenadas padres da Igreja Católica que enfrentam o Vaticano e ameaça de
excomunhão
Anne
Tropeano passa roupa, preparando-se para o dia atribulado que tem à sua frente.
Ela
pega sua alva e sua casula delicadamente bordada – vestimentas usadas pelos
padres católicos em todo o mundo. Em um calendário preso na parede, lê-se a
anotação em caneta vermelha: amanhã é o "dia da ordenação".
Mas
ela também está ao telefone contratando um segurança para a missa em uma igreja
de Albuquerque, no Novo México (Estados Unidos), onde mora. Tropeano imagina
que pode haver hostilidade.
"É
uma questão tensa. Nem todos estão abertos nem mesmo a considerar a
possibilidade de que as mulheres sejam convocadas ao sacerdócio", afirma
ela.
Tropeano
não está apenas preocupada com assédio pessoal. Ela conta que, desde que tornou
pública sua esperança de tornar-se padre da Igreja Católica, sofre um
"impressionante" assédio online.
Tropeano
é uma das mais de 200 mulheres em todo o mundo que fazem parte do movimento
pelas mulheres padres da Igreja Católica, um grupo que participa de serviços de
ordenação não autorizados para tornar-se padres, em ato que desafia a Igreja
Católica Romana.
A
Igreja Católica não permite que mulheres sejam padres. Na verdade, o Vaticano
considera a ordenação de mulheres um crime grave, passível de excomunhão pelo
direito canônico. Isso significa que as mulheres que participarem de uma
"ordenação" ficam impedidas de receber os sacramentos, incluindo a
comunhão, ou de ter funeral realizado na igreja.
"A
excomunhão foi a razão que me impediu de cogitar ser padre por muito
tempo", afirma ela. "Eu ia à missa todos os dias. Eu trabalhava na
paróquia, toda a minha vida estava na igreja. Pensar em desistir daquilo - eu
não conseguia nem imaginar."
Tropeano
é católica devota. Depois de anos em outros trabalhos, incluindo o de
empresária de uma banda de rock, ela sentiu o chamado para o sacerdócio.
"Eu podia ouvir, 'você é meu padre, você é padre, eu quero que você seja
padre'."
A
única opção em aberto para ela, como mulher, seria servir à igreja em outra
função — como freira ou colaboradora leiga da sua diocese. Ou ela poderia
abandonar totalmente o catolicismo em favor de outra denominação cristã que a
recebesse como sacerdote.
Depois
de anos de ponderação pessoal, ela percebeu que as limitações das regras do
Vaticano não permitiriam que ela atendesse o seu chamado. "Quando
reconheci que este era o próximo passo, a excomunhão era apenas parte da
jornada", segundo ela.
Tropeano
e outras mulheres como ela também consideram que sua decisão de serem
"ordenadas" é uma forma de ativismo contra o que elas consideram uma
norma sexista da Igreja Católica.
Do
Judaísmo Reformista até muitas denominações protestantes, outras religiões
estão abertas à ordenação das mulheres. Mas, para a Igreja Católica, a proibição
do acesso das mulheres ao sacerdócio baseia-se, entre outros argumentos, nos
registros bíblicos de que Cristo escolheu 12 homens como seus apóstolos. Desde
então, a Igreja Católica decidiu seguir o exemplo de Cristo.
Mas,
para Tropeano, essa regra tem consequências mais amplas.
"Pelos
ensinamentos da Igreja, com suas ações de excluir as mulheres da ordenação, ela
está ensinando que as mulheres são inferiores. As mulheres aprendem isso, as
crianças aprendem isso, os homens aprendem isso... e eles vão para o mundo e
vivem dessa forma", afirma ela.
• Cerimônia em um cruzeiro
O
movimento das mulheres padres ganhou visibilidade em 2002, quando um grupo de
sete mulheres participou de um serviço de ordenação não aceito pela Igreja
Católica, a bordo de um navio no rio Danúbio - em águas internacionais, para
evitar conflito com qualquer região eclesiástica.
Houve
ainda relatos de "ordenações" secretas anteriores, como a de Ludmila
Javorova, na antiga Checoslováquia. Durante o regime comunista nos anos 1970, ela
participou de um serviço conduzido por um bispo da Igreja Católica.
Atualmente,
o movimento de ordenação das mulheres concentra-se principalmente na Europa e
nos Estados Unidos, mas seus defensores já se expandiram para outras partes do
mundo.
A
colombiana Olga Lucía Álvarez Benjumea foi a primeira mulher padre da América
Latina. A região é um bastião da Igreja e reúne mais de 40% da população
católica mundial, de 1,3 bilhão de pessoas.
Sua
cerimônia, em 2010, foi realizada em segredo, mas ela afirma que contou com o
apoio da hierarquia católica local. "Houve um bispo... católico romano,
cujo nome não dizemos para que ele não tenha problemas com o Vaticano",
ela conta.
"Fiquei
com muito medo de que as pessoas de repente começassem a me insultar ou atirar
coisas em mim no altar, nesta sociedade muito conservadora onde vivo",
afirma Álvarez. "Mas o apoio que recebi das pessoas foi uma grande
surpresa, que fortaleceu e reforçou minha missão."
Álvarez
foi promovida a bispa da Associação de Mulheres Padres Católicas Romanas
(ARCWP, na sigla em inglês), que não é reconhecida pelo Vaticano.
Ela
vem de uma família católica muito devota, mas teve o apoio da sua mãe, que já
foi freira. O irmão de Álvarez é padre e deu a ela um cálice de presente, que
ela considera uma forma de apoio silencioso.
Álvarez
insiste que não há nada nas Escrituras que exclua mulheres do sacerdócio.
"É uma lei humana, uma lei da Igreja, e uma lei injusta não precisa ser
respeitada", segundo ela.
Este
sentimento é compartilhado pela Conferência pela Ordenação das Mulheres (WOC,
na sigla em inglês), um grupo que tenta convencer o Vaticano sobre o acesso das
mulheres ao sacerdócio, por meio de convocações ao diálogo e demonstrações.
A
diretora-executiva da WOC, Kate McElwee, afirma que seu trabalho favorito é o
que eles chamam de "Ministério da Irritação". São apoiadoras que
fazem de tudo, desde soltar fumaça rosa durante o Conclave até deitar-se no
caminho enquanto o papamóvel trafegava pela cidade. Elas já foram detidas pela
Polícia do Vaticano por suas ações.
"Nós
caminhamos ao lado dessas mulheres na sua vocação e elas estão esperando que o
Vaticano abra suas portas e, de fato, enfrente seu pecado do sexismo",
afirma McElwee. "Mas, enquanto isso, para outras mulheres, seria
impossível esperar. O chamado de Deus é tão alto e claro que elas não têm
escolha senão infringir uma lei injusta."
• 'Porta fechada'
A
Igreja Católica considera essas ordenações não apenas ilícitas, mas também
inválidas.
Depois
que veio a público a história das Sete do Danúbio, o então cardeal Joseph
Ratzinger (que seria consagrado papa Bento 16) declarou que, como as mulheres
não mostraram sinais de arrependimento "pela mais séria ofensa que
cometeram, elas incorreram em excomunhão".
O
próprio papa Francisco determinou que as mulheres não devem ser padres. Em
2016, quando questionado se havia alguma possibilidade de mudança, ele indicou
um documento de 1994, do papa João Paulo 2°, afirmando que a "porta está
fechada" para a ordenação das mulheres. Francisco afirma que o documento
"permanece vigente".
A
freira francesa Nathalie Becquart trabalha em um escritório na Cidade do
Vaticano, com uma fotografia sua com o papa Francisco atrás dela. Em fevereiro
de 2021, ela foi a primeira mulher a ser indicada como Subsecretária do Sínodo
dos Bispos, um organismo consultivo do papa.
A
irmã Becquart explica de forma simples a posição atual sobre as mulheres
padres: "para a Igreja Católica, neste momento, do ponto de vista oficial,
esta questão não está em aberto".
"Não
é apenas questão de sentir o chamado para o sacerdócio, é sempre o
reconhecimento de que a Igreja irá chamar você para ser padre", segundo
ela. "Por isso, sua decisão ou sentimento pessoal não é suficiente."
A
irmã Becquart é uma das poucas mulheres que ocupam cargos importantes no
pontificado do papa Francisco. Sua posição a torna a primeira mulher com
direito a voto no Vaticano.
Ela
acredita que existe uma evolução acontecendo, que permite que mais mulheres
assumam cargos de liderança. Mas esses cargos "não são relacionados à
ordenação".
"Acho
que precisamos ampliar nossa visão da Igreja. Existem muitas, muitas, muitas
formas para que as mulheres sirvam à Igreja", afirma a irmã Becquart. Mas
ela também observa que as mudanças nunca são fáceis e sempre enfrentam
"medos e resistência".
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O que diz a Igreja Católica?
• A doutrina católica, ou sua
interpretação legal, indica o sacerdócio como sendo prerrogativa dos homens,
afirmando que "somente homens batizados recebem a ordenação sagrada de
forma válida" (Cânone 1024).
• Uma versão revisada do direito canônico
de 2021 (Cânone 1379) criminalizou explicitamente o fornecimento de ordenações
sagradas às mulheres latae sententiae - expressão legal que significa que a
penalidade é incorrida automaticamente, sem necessidade de julgamento.
• O papa Francisco inicialmente pareceu
aberto à possibilidade da ordenação de mulheres como diáconas, que não podem
celebrar missas, mas podem realizar funerais, batizar e testemunhar casamentos.
• Em uma mudança sem precedentes, o papa
Francisco pediu a católicos comuns suas opiniões sobre o futuro da Igreja
Católica, em um processo de consulta conhecido como Sínodo sobre a
Sinodalidade, que levou dois anos. E, em uma ação que chegou às manchetes, o
Vaticano incluiu contribuições da Conferência para a Ordenação das Mulheres no
website do Sínodo.
• Um recente documento de trabalho indica
que o papel das mulheres na Igreja Católica será importante na agenda quando os
bispos se reunirem em Roma no próximo mês de outubro, para discutir os
resultados da consulta.
• A irmã Nathalie Becquart declarou à BBC
que, "ao longo do Sínodo sobre a Sinodalidade, continuaremos a observar e
o papa irá verificar qual será o próximo passo."
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Uma forma diferente
No
silêncio da catedral, Anne Tropeano aproxima-se da nave, de frente para sua
bispa e exclama, cheia de emoção: "aqui estou, estou pronta".
Ela
esperou esse dia por 14 anos. A cerimônia de "ordenação" segue uma
liturgia parecida com a dos homens que se tornam padres católicos — incluindo a
deposição das mãos e a oração de consagração.
Durante
a cerimônia, a bispa Bridget Mary Meehan ergue os braços de Tropeano e a
apresenta à congregação, que a aplaude. A "recém-ordenada" Anne
afirma que se sente "abraçada".
Tropeano
orgulha-se de ficar à frente de um ministério diferente, com mais participação
e menos hierarquia — e também aberto a grupos tradicionalmente questionados
pela Igreja Católica.
"A
ninguém se recusa a comunhão", afirma ela. "Seja você divorciado ou
não, nada disso importa. Todos são bem-vindos, as pessoas LGBTQ são bem-vindas
à mesa."
Olga
Lucía Álvarez também considera o sacerdócio feminino uma oportunidade de
redefinir a relação entre os leigos católicos e seus representantes no altar.
Existe
uma oportunidade no estado atual da Igreja Católica, segundo a bispa
colombiana, considerando o declínio do número de vocações e os escândalos de
abuso sexual dos clérigos, que prejudicou seriamente a confiança nos padres.
"Como
eles podem afirmar que são os únicos representantes de Deus na Terra? Eles não
têm vergonha", afirma ela sobre a série de alegações de abusos em todo o
mundo.
O
papa Francisco pediu desculpas às vítimas de abusos sexuais cometidos pelos
clérigos e condenou a "cumplicidade" da Igreja Católica ao ocultar os
"graves crimes" cometidos.
Álvarez
considera que o ministério feminino é uma resposta. Com 80 anos de idade, ela
se dedica a orientar mulheres mais jovens que esperam a ordenação.
"É
urgente mostrar outra face do sacerdócio", afirma ela. "Não podemos
deixar a história se repetir."
O
movimento pela ordenação das mulheres pede um debate aberto sobre a proibição.
Elas confiam em ter o apoio dos leigos católicos.
No
Brasil, que tem a maior população católica da América Latina, quase oito em
cada dez católicos apoiam as mulheres padres, segundo uma pesquisa do centro
norte-americano Pew Research Center, realizada em 2014. E, segundo a mesma
pesquisa, esse índice é de seis em cada dez nos Estados Unidos.
Mas
o movimento de ordenação das mulheres ainda não decolou na África, que é a
região onde a população católica mais cresce no planeta.
Quando
o assunto é a possibilidade de mudança, Tropeano apela para que o próprio papa
inicie o diálogo.
"Você
precisa ter uma audiência com mulheres que sentem o chamado para o
sacerdócio", afirma ela. "Tenham elas sido 'ordenadas' como parte do
movimento ou não, você precisa ouvir a nossa experiência e considerá-la nas
suas orações."
A
luta pela ordenação das mulheres para o sacerdócio ainda parece ser longa, mas
Tropeano acredita que ela é vital para o futuro da Igreja Católica.
"A
Igreja não será capaz de concluir sua missão, a menos que haja participação
igualitária", segundo ela. "No momento, nada é mais importante."
Fonte:
Por Valeria Perasso e Georgina Pearce, da BBC 100 Women
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