sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

No capitalismo, a colonização do espaço significa a destruição da Terra

Em fevereiro de 2022, o Adam Smith Institute publicou um relatório alegando que a lua deveria ser privatizada para ajudar a acabar com a pobreza na Terra. De acordo com o relatório, a lua deveria ser dividida em parcelas de terra e atribuída a vários países para que alugassem para empresas, o que impulsionaria o turismo espacial, a exploração e descobertas científicas.

Por enquanto, felizmente, há um tratado que impede tais planos. O Tratado do Espaço Exterior foi elaborado pelas Nações Unidas em 1967 com a ideia de proibir países e indivíduos de possuírem propriedades no espaço. Ele também proíbe a militarização do espaço exterior e proíbe testes de armas e bases militares lá.

Adam Smith Institute sustenta, no entanto, que “com mais países e empresas competindo na corrida espacial do que nunca, é vital que deixemos de lado o pensamento ultrapassado da década de 1960 e abordemos a questão dos direitos de propriedade extraterrestre o mais cedo possível”.

Até certo ponto, essa visão já é uma realidade. Em 2020, a NASA lançou um esforço para permitir que empresas minerem recursos, anunciando que apoiaria a extração privada na lua.

“Esse é um pequeno passo para os recursos espaciais, mas um salto gigante para a política e a criação de precedentes”, disse Mike Gold, ex-chefe de relações internacionais da NASA, resumindo a nova fronteira do capitalismo. Enquanto isso, uma legislação semelhante permitindo a privatização de recursos extraterrestres está sendo introduzida em Luxemburgo, Índia, China, Japão e Rússia.

Também em 2020, a NASA mudou sua política para permitir que astronautas particulares fossem à Estação Espacial Internacional. Em abril de 2022, a primeira equipe totalmente privada de astronautas começou uma missão de uma semana aclamada como um “marco na aviação espacial comercial”. Da mesma forma, a SpaceX de Elon Musk e a Blue Origin de Jeff Bezos têm lançado seus próprios voos privados para o espaço.

Em suma, a comercialização e privatização do espaço aceleram. Turismo espacial, mineração de asteroides e internet de satélites espaciais não são mais ficção científica. Eles se tornaram uma fonte potencial para “crescimento futuro” e “progresso”.

·        Para que serve a lua?

Se houve um filósofo do século XX que voltou seu olhar crítico para a exploração espacial humana, esse filósofo foi Günther Anders.

Nascido como Günther Stern em 1902 em Breslau, Polônia (hoje Wrocław), ele foi aluno de Ernst Cassirer, Edmund Husserl e Martin Heidegger, e trabalhou pela primeira vez como jornalista (foi durante esse período que começou a assinar seus artigos como “Anders” — que significa “diferente” em alemão — em vez de “Stern”). Com sua esposa Hannah Arendt, ele percebeu a realidade iminente do hitlerismo. Em 1931-32, eescreveu seu romance profético distópico e antifascista,  A Catacumba Molossiana (Die molussische Katakombe), que concluiu enquanto estava exilado em Paris em 1933, quando Hitler chegou ao poder. (No entanto, ele só seria publicado em 1992, o ano de sua morte). Ao longo de sua carreira, escreveu extensivamente sobre tecnologia, a era atômica, Auschwitz e Hiroshima — e também a lua.

Em 1969, Anders estava entre os seiscentos e cinquenta milhões de pessoas que assistiram ao pouso na lua — o primeiro evento de TV verdadeiramente global do século XX. Enquanto a maioria ficou hipnotizada pela famosa declaração de Neil Armstrong — “Este é um pequeno passo para o homem, um salto gigante para a humanidade” — ele teve uma visão diferente. Em seu livro The View from the Moon: Philosophical Reflections on Space Travel [A vista da lua: Reflexões filosóficas sobre viagens espaciais], ele comentou que foi um salto gigante para a humanidade apenas na medida em que se saltou “para longe da estrada que leva a um futuro melhor”.

Embora pareça que uma nova Guerra Fria está nascendo, nosso futuro nas estrelas é hoje menos definido pela disputa entre países (Estados Unidos x URSS) do que por empresas privadas (SpaceX x Blue Origin, etc.).

Foi Anders quem nos alertou com seu “catastrofismo profilático” sobre as perspectivas de apropriação do espaço. No segundo volume de seu The Obsolescence of Man:  On the Destruction of Life in the Epoch of the Third Industrial Revolution [A obsolescência do homem: Sobre a destruição da vida na época da Terceira Revolução Industrial], ele fez uma afirmação sobre o papel mutável da ciência. Argumentou que a missão da ciência moderna não é mais “procurar o segredo” — isto é, a essência secreta ou oculta de algo — mas descobrir os tesouros secretos que podem ser apropriados.

Anders coloca a questão: “Para que serve a lua?” Sua resposta é simples, mas assustadora: matéria-prima. Ele vai ainda mais longe, dizendo que ser matéria-prima é o criterium existendi hoje. É uma tese metafísica fundamental.

Anders argumenta que a jornada lunar “não foi o destino, mas o ponto de partida”. O que era apresentado como a descoberta humana da lua, era na verdade um “auto encontro com a Terra”.

As imagens do universo captadas pelo telescópio James Webb recentemente inventado despertaram entusiasmo em todo o mundo. Para Anders, quanto mais sublime o universo parecia, mais trágica era a destruição contemporânea do nosso planeta. Quanto mais a tecnologia avançava, maiores eram as chances de destruição e autodestruição.

Para Anders, a visão do telescópio não nos permite, como humanos, parecer maiores. Pelo contrário, ele escreve, é “como se o universo estivesse olhando de volta para nós através de um tubo como punição, nos encolhendo tanto quanto se expandiu com nossa visão telescópica”.

·        Filósofos a bordo

Se aceitarmos a formulação de Anders sobre o “auto encontro com a Terra”, o que vemos no espelho hoje? O que representa nossa “Nova Era Espacial” contemporânea?

Cinquenta anos atrás, Anders descreveu o fenômeno do “provincialismo”: homens que voam para o espaço para se tornarem famosos — ou poderosos — na Terra. É difícil não pensar em uma figura como Jeff Bezos enviando William Shatner (Capitão Kirk de Star Trek) neste contexto.

Por meio da exploração do espaço, o homem se tornou “mais provinciano do que ele mesmo”, escreveu Anders, porque as viagens espaciais que deveriam “ampliar nosso mundo” tiveram exatamente o efeito oposto — ou seja, ainda mais fixação na Terra. Em um futuro próximo, os planetas ocupados provavelmente servirão primeiro como bases para a extração de recursos valiosos que tornarão os mais ricos da Terra ainda mais ricos. “O futuro já começou”, escreveu Anders. “Mas a serviço do passado.”

Ele alegou que havia considerado dar a Der Blick vom Mond (A vista da lua) o título alternativo de A obsolescência da Terra. No entanto, ele decidiu o contrário, porque implicaria que nosso planeta está obsoleto e que teríamos que deixá-lo e encontrar outros planetas habitáveis. Isso estava longe da intenção de Anders.

Para figuras como Musk e Bezos — os novos ocupantes do espaço — é precisamente essa noção de obsolescência da Terra que se tornou o criterium existendi. Precisando de novos recursos para extração, acumulação e lucro, eles buscam colonizar o espaço, mesmo que o preço seja a destruição da Terra.

A vista da lua que os astronautas da Apollo tiveram foi assistida simultaneamente por milhões de telespectadores (aproximadamente um quinto da população mundial na época), mas Anders a viu como mais do que apenas um espetáculo midiático. Ele a reconheceu como um evento globalizante e metafísico:

Não apenas eles a encontraram, nós também a experimentamos. E já que permanecemos na Terra, e como criaturas terrestres são a Terra, podemos dizer com toda a justiça: pela primeira vez — e este é um evento histórico de um tipo completamente novo — a Terra, de pé diante de um espelho, tornou-se reflexiva, despertada para a autoconsciência pela primeira vez, ou pelo menos para a autopercepção.

Depois que o piloto do módulo de comando Michael Collins retornou à Terra após a missão Apollo 11 à Lua, ele disse a famosa frase que os voos futuros “deveriam incluir um poeta, um padre e um filósofo, para que pudéssemos ter uma ideia muito melhor do que vimos”.

O candidato perfeito para o filósofo a bordo teria sido Günther Anders. Embora a maior parte de sua obra (incluindo A vista da lua) ainda permaneça bastante desconhecida e não publicada em inglês, é precisamente sua obra sobre tecnologia, apocalipse e exploração espacial que pode nos guiar agora.

Hoje, com imagens de alta resolução das origens do universo, sua pergunta pertinente, “Para que serve a lua?” é tão importante quanto antes, embora possa ser ampliada para o questionamento: “Para que serve o universo?” Qual é a utilidade de descobrir a magia do nosso universo, se continuarmos destruindo o planeta Terra? Qual é a utilidade de Marte se você planeja colonizá-lo com a mesma lógica capitalista de extração e expansão?

Além de descobrir o universo, precisamos redescobrir a Terra e protegê-la da lógica fatal dos novos “exploradores espaciais” ou autoproclamados “ocupantes”.

Embora Günther Anders fosse o candidato perfeito para qualquer missão ao espaço, ele não precisou viajar para a lua para ver melhor a Terra. Mas ele também viu a lua.

 

Fonte: Por Srećko Horvat – Tradução de Pedro Silva, para Jacobin Brasil

 

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