Violação de direitos humanos e o Brasil no
banco dos réus
“Morreram 64 pessoas
porque era uma sexta-feira. Em um dia normal, seriam quase 200 pessoas
trabalhando. Minha filha estava lá e não voltou mais”.
O desabafo é de Ana
Maria Balbina. Ela era uma das trabalhadoras da “Vardo dos Fogos”, fábrica de
fogos de artifício clandestina que funcionava no município de Santo Antônio de
Jesus, no Recôncavo Baiano, que explodiu do dia 11 de dezembro de 1998, uma
sexta-feira, matando 64 pessoas que lá estavam. Entre as vítimas, 40 eram
mulheres e quatro estavam grávidas. Havia, ainda, 19 meninas e um menino, todos
menores de idade. Entre eles, Arlete Silva Santos, de 14 anos, filha única de
Ana Maria. Outras seis pessoas ficaram gravemente feridas.
A fábrica funcionava
em uma área de pasto, debaixo de tendas. Mulheres que trabalhavam na
informalidade eram a maior parte da mão de obra. Por sua própria condição de
vulnerabilidade e pobreza estrutural, elas levavam os filhos para ajudar no
trabalho e, assim, aumentar a renda e manter o sustento familiar.
O Brasil foi incapaz,
por meio de suas instituições, de evitar a tragédia. Depois que ela ocorreu,
também foi incapaz de assegurar, de forma razoável, a reparação de danos às
vítimas e aos familiares. Por isso, o caso foi levado à Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CorteIDH), tribunal criado para proteger os direitos humanos
no continente americano. O órgão judicial integra a Organização dos Estados
Americanos (OEA).
Após um longo
processo, em julho de 2020, a Corte reconheceu a reponsabilidade do Brasil e
condenou o Estado brasileiro pela violação dos direitos à vida, à integridade
pessoal, da criança, às garantias judiciais, à proteção judicial, à igual
proteção da lei, à proibição de discriminação e ao trabalho decente, entre
outras.
O caso ficou conhecido
como “Empregados da Fábrica de Fogos de Artifício de Santo Antônio de Jesus e
outros Vs. Brasil”. É um dos 12 processos em que o órgão condenou o
Brasil por violação de direitos humanos. Entre
esses, apenas dois tratam da violação de direitos trabalhistas: o da fábrica de
fogos e o chamado “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil”, que
envolve trabalho análogo à escravidão.
Até hoje, pouco foi
feito para reparar os danos causados às vítimas.
Esta reportagem
integra a série “Violação de direitos humanos e o Brasil no banco dos réus”, em
que o TST aborda os casos julgados pela Corte IDH que tratam de direitos
trabalhistas.
- A luta por justiça começa
Familiares das vítimas
e sobreviventes se uniram para reivindicar reparação pela tragédia. Em 1999,
fundaram o Movimento 11 de Dezembro. Em 2001, com o apoio de outras
organizações, o Movimento denunciou as violações sofridas por trabalhadores,
trabalhadoras e familiares à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH). Juntas, a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos formam
o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Um caso somente
chega à Corte após a análise e a atuação da Comissão.
- A inação das instituições brasileiras
Conforme a
documentação da Corte IDH, no momento da explosão, a fábrica tinha autorização
do Ministério do Exército e do município. Mas a sentença destaca que se
desconhecia qualquer fiscalização das autoridades, seja sobre as condições de
trabalho, seja quanto ao controle de atividades perigosas. Após a explosão, o
Exército confirmou a violação de normas de segurança, e perícia técnica da
Polícia Civil indicou que a explosão foi causada pela falta de segurança no
armazenamento e na manipulação dos materiais.
Vinte anos se passaram
sem que as vítimas recebessem respostas efetivas das instituições brasileiras.
Conforme a sentença da Corte IDH, nessas duas décadas, foram iniciados
processos civis, trabalhistas, penais e administrativos. Porém, somente os
administrativos e alguns trabalhistas foram concluídos, sem que nenhuma
reparação fosse executada. Todos os outros estavam pendentes em diferentes
etapas.
- O Estado se cala
A Comissão publicou
o Relatório de Admissibilidade e Mérito do caso em março de 2018, com várias recomendações ao
país. Em junho do mesmo ano, o Brasil foi notificado para informar o
cumprimento das recomendações no prazo de dois meses. Mas o Estado se
calou.
Então, em setembro de
2018, a Comissão submeteu os fatos e a indicação de violações de direitos
humanos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, solicitando que esta
declarasse a responsabilidade internacional do Brasil e ordenasse medidas de
reparação.
A sentença veio em
2020, 22 anos depois da explosão.
- Brasil é condenado e responsabilizado internacionalmente
Na sentença, a Corte
IDH reconhece a responsabilidade do Estado brasileiro e impõe 11 obrigações ao
país, além do dever de elaborar um relatório sobre as medidas adotadas para o
seu cumprimento. Entre elas estão a continuidade do processo penal para julgar
e punir os responsáveis, das ações civis de indenização e dos processos
trabalhistas, para que sejam concluídos e executados; o fornecimento de
tratamento médico, psicológico e psiquiátrico às vítimas; e a realização de um
ato público de reconhecimento da responsabilidade internacional.
A decisão obrigava
ainda o Estado brasileiro a inspecionar sistemática e periodicamente os locais
de produção de fogos de artifício e a implementar um programa de
desenvolvimento socioeconômico para buscar inserir trabalhadoras e
trabalhadores dedicados à fabricação de fogos de artifício em outros mercados
de trabalho e criar novas alternativas econômicas para esse grupo.
Segundo o ministro
Augusto César, do Tribunal Superior do Trabalho, as decisões da Corte IDH são
vinculantes e, portanto, de cumprimento obrigatório. O Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 1992 e, em 2002, reconheceu a competência jurisdicional
contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos para fatos ocorridos
após 10 de dezembro de 1998 - um dia antes da explosão da fábrica de
fogos.
De acordo com o
ministro, a responsabilidade internacional é do Estado, e não de quem violou
diretamente o direito. “Para que o Brasil ou qualquer Estado-parte seja
condenado, é preciso que a Corte conclua que houve negligência em sua obrigação
de respeitar, garantir e promover a observância, no âmbito interno, dos
direitos humanos”, explica.
- “Pendente de cumprimento”
Mas, até agora, muito
pouco foi feito. Conforme o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as 11 medidas
de reparação ainda estão “pendentes de cumprimento”. Algumas delas estão
parcialmente implementadas.
A coordenadora
executiva da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das decisões do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos do CNJ (UMF/CNJ), Andréa Perdigão, explica
que isso não significa ausência de providências. “São decisões de difícil
cumprimento e que estão sendo acatadas gradativamente”, afirma. “Nesse sentido,
tentamos sempre colaborar com os outros vários órgãos envolvidos”. O UMF foi
criada pelo CNJ para monitorar e desenvolver iniciativas voltadas ao
cumprimento integral das sentenças da Corte IDH relacionadas ao Brasil.
- Os processos trabalhistas do caso Fábrica de Fogos
Entre 2000 e 2001, 76
processos foram ajuizados na Justiça do Trabalho em Santo Antônio de Jesus.
Desses, 30 foram arquivados definitivamente e 46 foram declarados improcedentes
ainda na primeira instância, conforme a sentença da Corte IDH.
As vítimas recorreram,
e, ao julgar os recursos, o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (BA)
reconheceu o vínculo de emprego das trabalhadoras e declarou parcialmente
procedentes 18 dos processos.
Em agosto de 2018, foi
determinado o bloqueio de bens de Osvaldo Prazeres Bastos, pai do proprietário
da fábrica, Mário Fróes Prazeres Bastos, no valor de R$ 1,8 milhão. A medida
viabilizou o pagamento dos valores deferidos e o pagamento de indenizações.
- Cooperação cresce e Justiça do Trabalho amplia
atuação
Para a juíza do TRT-5
Viviane Martins, gestora regional do Programa de Combate ao Trabalho Infantil
da Justiça do Trabalho, a reparação só foi possível depois de um longo
trabalho. “Essa quitação aconteceu depois de uma intervenção e de um trabalho
continuado e denso de cooperação da Justiça do Trabalho com o Ministério
Público do Trabalho”, observa.
A afirmação é
corroborada pelo procurador do trabalho em Santo Antônio de Jesus, André
Pessoa. “No MPT, requeremos providências e acompanhamos as diligências até a
efetiva quitação dos valores que estavam sendo executados e que foram
finalizados com o pagamento dos créditos atualizados”, afirma.
Mas, para Viviane
Martins, era preciso ir além. “A atuação da Justiça do Trabalho, apesar do
pagamento dos valores devidos, tinha de ser ampliada, considerando a missão de
ser uma justiça social e o dever de proteção de direitos humanos”,
avalia.
Em 2023, juntamente
com o MPT, foi feita uma audiência pública que resultou na assinatura de um
Termo de Ajuste de Conduta (TAC) pelo município. Um dos produtos do TAC foi o
Espaço 4.0, que, por meio de um convênio com o Instituto Federal da Bahia
(IFBA), promove a qualificação profissional das vítimas, dos familiares e da
comunidade. Para a juíza, as medidas têm permitido a “reconexão da Justiça do
Trabalho, enquanto justiça social, com as vítimas e os familiares”.
Em outra frente, o
TRT-5 passou a desenvolver ações de capacitação para a
atuação de magistradas e magistrados para julgamentos sem discriminação, sob a
perspectiva de direitos humanos e de direito internacional do trabalho.
- Vinte e seis anos depois
A exclusão social e a
desvalorização da dignidade humana que, no passado, levaram dezenas de pessoas
a condições precárias e inseguras ainda são uma realidade. A ausência do Estado
se faz sentir pela insuficiência de fiscalização e de políticas públicas que
permitam o enfrentamento da pobreza, do racismo estrutural e da informalidade.
A vice-presidente do
Movimento 11 de Dezembro é incisiva ao comentar que “a fábrica não era um
espaço de trabalho, mas sim de escravidão”. Segundo ela, o cenário se perpetua.
É como se o tempo estivesse congelado desde 1998.
Atualmente, o
município de Santo Antônio de Jesus é o segundo do país em produção de fogos de
artifício, e fábricas clandestinas continuam a funcionar, com mulheres e
crianças trabalhando em áreas rurais ou em casa, sem a proteção adequada.
Por outro lado, ações
de fiscalização têm sido intensificadas. Em junho, mais de uma tonelada de
fogos de artifício irregulares foi apreendida na Operação Pavio Curto, ação
liderada pelo MPT com apoio de outras instituições públicas, em cumprimento à
sentença da Corte IDH. O maior volume de apreensões ocorreu em quatro fábricas
clandestinas na zona rural de Santo Antônio de Jesus. Pela primeira vez, a
atuação preventiva do poder público gerou o fechamento desses estabelecimentos.
Uma pessoa foi detida.
O procurador André
Pessoa lembra que a falta de fiscalização foi o elemento principal que gerou a
responsabilidade internacional do Brasil pela Corte Interamericana. “É
necessário aprimorar os mecanismos de fiscalização, a fim de evitar que outras
tragédias ocorram”, destaca.
Para a juíza Viviane
Martins, a sentença também foi clara ao tratar da discriminação estrutural das
pessoas vulnerabilizadas, sobretudo por questões de gênero e raça. “Seres
humanos trabalhavam sem garantia, sem proteção social, sem segurança, em
condições efetivamente degradantes. Essas pessoas precisam, cada vez mais, ser
ouvidas e levadas a participar da construção efetiva de suas vidas. É preciso
acreditar que existirá um futuro melhor”, resume.
Esperança
Em maio deste ano,
representantes do governo da Bahia e do governo federal se reuniram com as
vítimas e os familiares, com o objetivo de construir uma agenda para o
cumprimento definitivo da sentença imposta pela Corte Interamericana ao Estado
Brasileiro. Os representantes do Movimento 11 de Dezembro apresentaram às
autoridades as principais reivindicações relacionadas à decisão, com destaque
para as áreas de saúde e desenvolvimento socioeconômico.
¨ Vítimas de trabalho escravo contra o Estado brasileiro: o caso
da Fazenda Brasil Verde
Homens e adolescentes
que trabalhavam mais de 12 horas por dia, alojados em barracões cobertos de
plástico e palha, aglomerados em redes para dormir. Banheiro não existia. A
água para higiene pessoal e consumo era a mesma dos animais. Eram cidadãos
brasileiros recrutados para o trabalho rural com a promessa de salários
atraentes e a ilusão de uma vida digna.
Ao chegarem à fazenda,
eram informados de que já estavam devendo as despesas de transporte,
alimentação e alojamento - a chamada servidão por dívida. Vigilância armada,
violência física e ameaças eram parte da rotina de trabalho.
Essa história de
violação de direitos humanos que, com o conhecimento de autoridades
brasileiras, perdurou por mais de dez anos, é o tema da segunda reportagem da
série especial “Violação de direitos humanos e o Brasil no banco dos réus”, em
que o TST aborda processos em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos
(Corte IDH) reconheceu a responsabilidade do Brasil em relação a direitos de
trabalhadores.
Ela será dividida em
duas partes. Na primeira, o foco é a série de omissões que levou o caso à corte
internacional e à condenação do Brasil. A segunda parte trará o relato de
vítimas e a reação das instituições brasileiras a partir da responsabilização do
Estado.
- Primeiro caso de trabalho forçado
O local em que se
passa a história é a Fazenda Brasil Verde, em Sapucaia, no sul do Pará. Entre
1989 e 2002, mais de 300 pessoas vítimas de trabalho análogo ao escravo foram
identificadas lá. Somente entre 1997 e 2000, o Grupo Móvel do Ministério do
Trabalho e Emprego resgatou 128.
A propriedade, voltada
para a criação de gado, pertencia, na época, a João Luiz Quagliato Neto, que,
com três irmãos, comanda o Grupo Quagliato.
O caso foi o primeiro
julgado pela Corte IDH relacionado ao artigo 6º, inciso 1º, da Convenção
Americana de Direitos Humanos, que diz: “Ninguém deverá ser obrigado a prestar
trabalho forçado ou obrigatório, sendo proibido o tráfico de mulheres e escravos”.
O Brasil foi responsabilizado internacionalmente por uma série de
violações.
- Primeiras denúncias e morosidade do Estado
As denúncias começaram
a vir à tona em 1988, exatos 100 anos após a Lei Áurea, que aboliu formalmente
a escravidão no Brasil. Naquele ano, familiares de dois adolescentes que haviam
desaparecido após serem recrutados para trabalhar na fazenda procuraram a
Comissão Pastoral da Terra (CPT) em busca de ajuda. O relatório da visita dos
agentes da Polícia Federal (PF) à fazenda apontou violações trabalhistas e
revelou que alguns trabalhadores fugiam em razão das dívidas, mas concluiu que
eles não eram proibidos de sair da propriedade.
No ano seguinte, a CPT
denunciou o caso ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, em
Brasília, e, em 1992, ao Ministério Público Federal. De 1992 a 1996, as
respostas dos órgãos indicavam insuficiência de provas e prescrição dos
crimes.
A partir de 1995, o
Estado brasileiro reconheceu a existência do trabalho escravo e passou a tomar
medidas para combatê-lo. Entre elas estava a criação do Grupo Interministerial
para Erradicar o Trabalho Forçado (Gertraf) e do Grupo Especial de Fiscalização
Móvel, coordenados pelo Ministério do Trabalho e Emprego, que atuava em zonas
rurais para investigar denúncias.
- Fiscalizações identificam trabalho escravo
Em 1996, uma
fiscalização do Grupo Móvel localizou 78 trabalhadores sem registro e uma série
de irregularidades na Fazenda Brasil Verde. Mas as violações continuaram.
Em 1997, dois
trabalhadores - José da Costa Oliveira e José Ferreira dos Santos - conseguiram
fugir e denunciaram o caso à Polícia Federal. Nova ação do Grupo Móvel resgatou
81 pessoas. Os fiscais identificaram barracões cobertos de plástico e palha,
trabalhadores doentes e sem assistência médica, falta de condições de higiene e
água imprópria para o consumo. Eles também eram ameaçados e proibidos de deixar
o local.
A despeito de todas as
ações na fazenda (em 1989, 1993, 1996 e 1997), a Brasil Verde continuou a
funcionar durante toda a década de 1990, reforçando a omissão e a inércia do
Estado brasileiro diante da violação à dignidade humana.
- Empurra-empurra na Justiça
Um dos aspectos dessa
omissão foi o empurra-empurra sobre a competência para o julgamento das ações
penais contra o proprietário da fazenda, João Luiz Quagliato Neto, o gerente,
Antônio Alves Vieira, e o “gato” - recrutador dos trabalhadores - Raimundo Alves
da Rocha.
Em 1998, o Ministério
Público Federal apresentou a primeira denúncia. Em 1999, a Justiça Federal
autorizou a suspensão condicional do processo penal contra o proprietário, que
passou a ter apenas de entregar seis cestas básicas a uma entidade beneficente
de Ourinhos (SP), cidade de origem da família.
Em 2001, o juiz
federal vinculado à causa declarou-se incompetente para julgá-la, e o caso foi
para Justiça Estadual, que, em 2004, fez o mesmo. Em 2007, o Superior Tribunal
de Justiça (STJ) decidiu que a competência era da Justiça Federal, mas, no ano
seguinte, a ação penal foi extinta em razão da prescrição dos crimes. Além
disso, ao declarar a prescrição, a decisão registra que as provas eram
“inúteis” para a instrução penal.
- Nova fiscalização, novo flagrante, novo processo, novo
empurra-empurra
Em março de 2000, dois
jovens trabalhadores também conseguiram fugir da fazenda. Ao tentarem denunciar
o caso, porém, o atendimento foi negado pela Polícia Civil em Marabá - pois era
Carnaval, e o delegado não estava de plantão, conforme relata a sentença
da Corte IDH. Eles vagaram por dois dias pelas ruas da cidade e foram à Polícia
Federal, onde foram orientados a procurar a Comissão Pastoral da Terra.
A denúncia motivou
nova fiscalização do Ministério do Trabalho. Mais de 80 pessoas, incluindo
adolescentes, foram encontradas em condições degradantes, submetidas a jornada
superior a 12h, com apenas meia hora para almoço. Os fiscais também constataram
casos de agressão física, ameaças de morte, vigilância armada, retenção da
carteira de trabalho e assinatura de contratos em branco pelos
trabalhadores.
Uma nova ação penal
foi ajuizada e, mais uma vez, a Justiça Federal se declarou incompetente. Na
Justiça Estadual, não se sabe o que ocorreu. “O Estado informou à Corte que não
existia informação sobre o que teria ocorrido com este processo e que não havia
podido localizar cópias dos autos da investigação”, destaca a Corte IDH na
sentença.
Na Justiça do
Trabalho, o caso chegou apenas em 2000, com uma ação civil pública movida pelo
Ministério Público do Trabalho (MPT) contra o proprietário da fazenda. Em
audiência de conciliação, ele se comprometeu a não permitir mais a prática e a
melhorar as condições no local. Nos dois anos seguintes, os fiscais indicaram
que as medidas estavam sendo cumpridas.
- Vítima fica em situação vexatória
“A pessoa escravizada
vive uma situação vexatória em que claramente não consegue exercer seu direito
de cidadania básico, que é o de exigir que o Poder Judiciário lhe assegure
condições de trabalho decentes e a remuneração justa pelo trabalho prestado. Isso
faz com que a Justiça do Trabalho não seja acionada de imediato”, analisa o
ministro Augusto César, do TST, coordenador do Programa de Enfrentamento ao
Trabalho Escravo, Tráfico de Pessoas e de Proteção ao Trabalho do
Migrante.
Ele observa que,
quando as fiscalizações que resultam no resgate de pessoas, a prioridade é
tentar regularizar os pagamentos dos salários e das indenizações devidas, além
de benefícios sociais e do seguro-desemprego. “Isso, em princípio, retira a
urgência da ação trabalhista”.
- Caso é denunciado à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos
Antes mesmo das
decisões da Justiça brasileira sobre o caso, em novembro de 1998, o caso da
Fazenda Brasil Verde foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) pela CPT e pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional
(Cejil).
O coordenador da
Campanha Nacional da Pastoral da Terra contra o Trabalho Escravo, frei Xavier
Plassat, relata que, apesar da prática recorrente no Brasil, o caso da Brasil
Verde era emblemático.
“As denúncias só
aumentavam junto ao governo brasileiro, mas mesmo assim não surtiram o efeito
esperado de responsabilização dos envolvidos e de reparação das vítimas. Foi
por essa recorrência e pela ausência de atitude eficaz do Estado e do
Judiciário que recorremos à Comissão”, explica.
- Responsabilização internacional e recomendações não
cumpridas
Em 2011, a CIDH emitiu
o Relatório de Admissibilidade e Mérito 169/11, em que responsabilizou o Brasil
pela violação de direitos humanos, do direito à integridade física, psíquica e
moral e por não coibir a prática da escravidão e da servidão. O relatório
contemplou uma série de recomendações a serem implementadas pelo governo no
prazo de dois meses - adiado por dez vezes -, que não foram cumpridas.
- Primeira condenação internacional
Em 2015, a CIDH
submeteu o caso ao julgamento da Corte. Em 2016, os juízes condenaram o Brasil
e declararam, pela primeira vez, a responsabilidade internacional de um Estado
pela violação do direito de não submissão à escravidão e ao tráfico de
escravos, por violação às garantias judiciais de devida diligência e de prazo
razoável e por violação à proteção judicial.
A sentença da Corte
IDH destaca que o governo tinha conhecimento dessa prática, em específico na
Fazenda Brasil Verde, desde 1989. Mesmo assim, não adotou medidas razoáveis
para interrompê-la e preveni-la.
Entre as cinco
determinações, a Corte estabeleceu que o Brasil deveria reabrir as
investigações e os processos penais relacionados aos fatos constatados em março
de 2000 para identificar, processar e, se fosse o caso, punir os responsáveis.
Também deveria adotar as medidas necessárias para garantir que a prescrição não
fosse aplicada ao delito de Direito Internacional de escravidão e suas formas
análogas.
A sentença
também determinou o pagamento, no prazo de um ano, de indenização por
dano imaterial de US$ 40 mil (cerca de R$ 217 mil, atualmente) para cada
trabalhador encontrado na Brasil Verde nas fiscalizações de abril de 1997 e de
março de 2000.
- Cumprimento da sentença
Segundo informações
atualizadas da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das decisões do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
essa reparação foi parcialmente cumprida. Nem todas as vítimas puderam
receber o que era de seu direito. Nesse caso, soma-se à morosidade do Estado a
dificuldade de localização dos trabalhadores ou de seus herdeiros.
Muitos dos pagamentos
somente foram possíveis graças à mobilização da Pastoral da Terra. Segundo Frei
Xavier, 54 vítimas ainda não foram localizadas para receber as indenizações.
“Algumas vivem em residências precárias ou estão em situações de muita vulnerabilidade
social”, relata.
- Fazendeiro é condenado pela Justiça brasileira após nova
ação
Após a sentença da
Corte, o Ministério Público Federal apresentou nova denúncia criminal contra o
proprietário da fazenda, com base na fiscalização realizada nos anos 2000. Em
2023, ele foi condenado pela Justiça Federal, em primeira instância, a sete anos
e seis meses de detenção.
- Repercussões da condenação pela Corte IDH
A sentença da corte
serviu como um catalisador para a implementação de mudanças. Na esfera penal, a
prática passou a ser considerada crime, previsto no artigo 149 do Código Penal,
com pena de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à
violência.
Hoje, o que se espera
é que este crime se torne imprescritível, para evitar o arquivamento de muitos
processos em andamento.
Fonte: Ascom TST
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