quinta-feira, 18 de julho de 2024

Violação de direitos humanos e o Brasil no banco dos réus

“Morreram 64 pessoas porque era uma sexta-feira. Em um dia normal, seriam quase 200 pessoas trabalhando. Minha filha estava lá e não voltou mais”.  

O desabafo é de Ana Maria Balbina. Ela era uma das trabalhadoras da “Vardo dos Fogos”, fábrica de fogos de artifício clandestina que funcionava no município de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, que explodiu do dia 11 de dezembro de 1998, uma sexta-feira, matando 64 pessoas que lá estavam. Entre as vítimas, 40 eram mulheres e quatro estavam grávidas. Havia, ainda, 19 meninas e um menino, todos menores de idade. Entre eles, Arlete Silva Santos, de 14 anos, filha única de Ana Maria. Outras seis pessoas ficaram gravemente feridas.

A fábrica funcionava em uma área de pasto, debaixo de  tendas. Mulheres que trabalhavam na informalidade eram a maior parte da mão de obra. Por sua própria condição de vulnerabilidade e pobreza estrutural, elas levavam os filhos para ajudar no trabalho e, assim, aumentar a renda e manter o sustento familiar. 

O Brasil foi incapaz, por meio de suas instituições, de evitar a tragédia. Depois que ela ocorreu, também foi incapaz de assegurar, de forma razoável, a reparação de danos às vítimas e aos familiares. Por isso, o caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), tribunal criado para proteger os direitos humanos no continente americano. O órgão judicial integra a Organização dos Estados Americanos (OEA). 

Após um longo processo, em julho de 2020, a Corte reconheceu a reponsabilidade do Brasil e condenou o Estado brasileiro pela violação dos direitos à vida, à integridade pessoal, da criança, às garantias judiciais, à proteção judicial, à igual proteção da lei, à proibição de discriminação e ao trabalho decente, entre outras. 

O caso ficou conhecido como “Empregados da Fábrica de Fogos de Artifício de Santo Antônio de Jesus e outros Vs. Brasil”. É um dos 12 processos em que o órgão condenou o Brasil por violação de direitos humanos. Entre esses, apenas dois tratam da violação de direitos trabalhistas: o da fábrica de fogos e o chamado “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil”, que envolve trabalho análogo à escravidão. 

Até hoje, pouco foi feito para reparar os danos causados às vítimas. 

Esta reportagem integra a série “Violação de direitos humanos e o Brasil no banco dos réus”, em que o TST aborda os casos julgados pela Corte IDH que tratam de direitos trabalhistas. 

  • A luta por justiça começa 

Familiares das vítimas e sobreviventes se uniram para reivindicar reparação pela tragédia. Em 1999, fundaram o Movimento 11 de Dezembro. Em 2001, com o apoio de outras organizações, o Movimento denunciou as violações sofridas por trabalhadores, trabalhadoras e familiares à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Juntas, a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos formam o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Um caso somente chega à Corte após a análise e a atuação da Comissão. 

  • A inação das instituições brasileiras

Conforme a documentação da Corte IDH, no momento da explosão, a fábrica tinha autorização do Ministério do Exército e do município. Mas a sentença destaca que se desconhecia qualquer fiscalização das autoridades, seja sobre as condições de trabalho, seja quanto ao controle de atividades perigosas. Após a explosão, o Exército confirmou a violação de normas de segurança, e perícia técnica da Polícia Civil indicou que a explosão foi causada pela falta de segurança no armazenamento e na manipulação dos materiais. 

Vinte anos se passaram sem que as vítimas recebessem respostas efetivas das instituições brasileiras. Conforme a sentença da Corte IDH, nessas duas décadas, foram iniciados processos civis, trabalhistas, penais e administrativos. Porém, somente os administrativos e alguns trabalhistas foram concluídos, sem que nenhuma reparação fosse executada. Todos os outros estavam pendentes em diferentes etapas.  

  • O Estado se cala

A Comissão publicou o Relatório de Admissibilidade e Mérito do caso em março de 2018, com várias recomendações ao país. Em junho do mesmo ano, o Brasil foi notificado para informar o cumprimento das recomendações no prazo de dois meses. Mas o Estado se calou. 

Então, em setembro de 2018, a Comissão submeteu os fatos e a indicação de violações de direitos humanos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, solicitando que esta declarasse a responsabilidade internacional do Brasil e ordenasse medidas de reparação. 

A sentença veio em 2020, 22 anos depois da explosão. 

  • Brasil é condenado e responsabilizado internacionalmente

Na sentença, a Corte IDH reconhece a responsabilidade do Estado brasileiro e impõe 11 obrigações ao país, além do dever de elaborar um relatório sobre as medidas adotadas para o seu cumprimento. Entre elas estão a continuidade do processo penal para julgar e punir os responsáveis, das ações civis de indenização e dos processos trabalhistas, para que sejam concluídos e executados; o fornecimento de tratamento médico, psicológico e psiquiátrico às vítimas; e a realização de um ato público de reconhecimento da responsabilidade internacional. 

A decisão obrigava ainda o Estado brasileiro a inspecionar sistemática e periodicamente os locais de produção de fogos de artifício e a implementar um programa de desenvolvimento socioeconômico para buscar inserir trabalhadoras e trabalhadores dedicados à fabricação de fogos de artifício em outros mercados de trabalho e criar novas alternativas econômicas para esse grupo.

Segundo o ministro Augusto César, do Tribunal Superior do Trabalho, as decisões da Corte IDH são vinculantes e, portanto, de cumprimento obrigatório. O Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 1992 e, em 2002, reconheceu a competência jurisdicional contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos para fatos ocorridos após 10 de dezembro de 1998 - um dia antes da explosão da fábrica de fogos. 

De acordo com o ministro, a responsabilidade internacional é do Estado, e não de quem violou diretamente o direito. “Para que o Brasil ou qualquer Estado-parte seja condenado, é preciso que a Corte conclua que houve negligência em sua obrigação de respeitar, garantir e promover a observância, no âmbito interno, dos direitos humanos”, explica. 

  • “Pendente de cumprimento”

Mas, até agora, muito pouco foi feito. Conforme o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as 11 medidas de reparação ainda estão “pendentes de cumprimento”. Algumas delas estão parcialmente implementadas. 

A coordenadora executiva da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos do CNJ (UMF/CNJ), Andréa Perdigão, explica que isso não significa ausência de providências. “São decisões de difícil cumprimento e que estão sendo acatadas gradativamente”, afirma. “Nesse sentido, tentamos sempre colaborar com os outros vários órgãos envolvidos”. O UMF foi criada pelo CNJ para monitorar e desenvolver iniciativas voltadas ao cumprimento integral das sentenças da Corte IDH relacionadas ao Brasil. 

  • Os processos trabalhistas do caso Fábrica de Fogos

Entre 2000 e 2001, 76 processos foram ajuizados na Justiça do Trabalho em Santo Antônio de Jesus. Desses, 30 foram arquivados definitivamente e 46 foram declarados improcedentes ainda na primeira instância, conforme a sentença da Corte IDH. 

As vítimas recorreram, e, ao julgar os recursos, o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (BA) reconheceu o vínculo de emprego das trabalhadoras e declarou parcialmente procedentes 18 dos processos. 

Em agosto de 2018, foi determinado o bloqueio de bens de Osvaldo Prazeres Bastos, pai do proprietário da fábrica, Mário Fróes Prazeres Bastos, no valor de R$ 1,8 milhão. A medida viabilizou o pagamento dos valores deferidos e o pagamento de indenizações.

  • Cooperação cresce e Justiça do Trabalho amplia atuação 

Para a juíza do TRT-5 Viviane Martins, gestora regional do Programa de Combate ao Trabalho Infantil da Justiça do Trabalho, a reparação só foi possível depois de um longo trabalho. “Essa quitação aconteceu depois de uma intervenção e de um trabalho continuado e denso de cooperação da Justiça do Trabalho com o Ministério Público do Trabalho”, observa.

A afirmação é corroborada pelo procurador do trabalho em Santo Antônio de Jesus, André Pessoa. “No MPT, requeremos providências e acompanhamos as diligências até a efetiva quitação dos valores que estavam sendo executados e que foram finalizados com o pagamento dos créditos atualizados”, afirma.

Mas, para Viviane Martins, era preciso ir além. “A atuação da Justiça do Trabalho, apesar do pagamento dos valores devidos, tinha de ser ampliada, considerando a missão de ser uma justiça social e o dever de proteção de direitos humanos”, avalia. 

Em 2023, juntamente com o MPT, foi feita uma audiência pública que resultou na assinatura de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) pelo município. Um dos produtos do TAC foi o Espaço 4.0, que, por meio de um convênio com o Instituto Federal da Bahia (IFBA), promove a qualificação profissional das vítimas, dos familiares e da comunidade. Para a juíza, as medidas têm permitido a “reconexão da Justiça do Trabalho, enquanto justiça social, com as vítimas e os familiares”. 

Em outra frente, o TRT-5  passou a desenvolver ações de capacitação  para  a atuação de magistradas e magistrados para julgamentos sem discriminação, sob a perspectiva de direitos humanos e de direito internacional do trabalho. 

  • Vinte e seis anos depois

A exclusão social e a desvalorização da dignidade humana que, no passado, levaram dezenas de pessoas a condições precárias e inseguras ainda são uma realidade. A ausência do Estado se faz sentir pela insuficiência de fiscalização e de políticas públicas que permitam o enfrentamento da pobreza, do racismo estrutural e da informalidade.

A vice-presidente do Movimento 11 de Dezembro é incisiva ao comentar que “a fábrica não era um espaço de trabalho, mas sim de escravidão”. Segundo ela, o cenário se perpetua. É como se o tempo estivesse congelado desde 1998. 

Atualmente, o município de Santo Antônio de Jesus é o segundo do país em produção de fogos de artifício, e fábricas clandestinas continuam a funcionar, com mulheres e crianças trabalhando em áreas rurais ou em casa,  sem a proteção adequada.

Por outro lado, ações de fiscalização têm sido intensificadas. Em junho, mais de uma tonelada de fogos de artifício irregulares foi apreendida na Operação Pavio Curto, ação liderada pelo MPT com apoio de outras instituições públicas, em cumprimento à sentença da Corte IDH. O maior volume de apreensões ocorreu em quatro fábricas clandestinas na zona rural de Santo Antônio de Jesus. Pela primeira vez, a atuação preventiva do poder público gerou o fechamento desses estabelecimentos. Uma pessoa foi detida.  

O procurador André Pessoa lembra que a falta de fiscalização foi o elemento principal que gerou a responsabilidade internacional do Brasil pela Corte Interamericana. “É necessário aprimorar os mecanismos de fiscalização, a fim de evitar que outras tragédias ocorram”, destaca.

Para a juíza Viviane Martins, a sentença também foi clara ao tratar da discriminação estrutural das pessoas vulnerabilizadas, sobretudo por questões de gênero e raça. “Seres humanos trabalhavam sem garantia, sem proteção social, sem segurança, em condições efetivamente degradantes. Essas pessoas precisam, cada vez mais, ser ouvidas e levadas a participar da construção efetiva de suas vidas. É preciso acreditar que existirá  um futuro melhor”, resume.

Esperança 

Em maio deste ano, representantes do governo da Bahia e do governo federal se reuniram com as vítimas e os familiares, com o objetivo de construir uma agenda para o cumprimento definitivo da sentença imposta pela Corte Interamericana ao Estado Brasileiro. Os representantes do Movimento 11 de Dezembro apresentaram às autoridades as principais reivindicações relacionadas à decisão, com destaque para as áreas de saúde e desenvolvimento socioeconômico.

 

¨      Vítimas de trabalho escravo contra o Estado brasileiro: o caso da Fazenda Brasil Verde

Homens e adolescentes que trabalhavam mais de 12 horas por dia, alojados em barracões cobertos de plástico e palha, aglomerados em redes para dormir. Banheiro não existia. A água para higiene pessoal e consumo era a mesma dos animais. Eram cidadãos brasileiros recrutados para o trabalho rural com a promessa de salários atraentes e a ilusão de uma vida digna. 

Ao chegarem à fazenda, eram informados de que já estavam devendo as despesas de transporte, alimentação e alojamento - a chamada servidão por dívida. Vigilância armada, violência física e ameaças eram parte da rotina de trabalho. 

Essa história de violação de direitos humanos que, com o conhecimento de autoridades brasileiras, perdurou por mais de dez anos, é o tema da segunda reportagem da série especial “Violação de direitos humanos e o Brasil no banco dos réus”, em que o TST aborda processos em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) reconheceu a responsabilidade do Brasil em relação a direitos de trabalhadores. 

Ela será dividida em duas partes. Na primeira, o foco é a série de omissões que levou o caso à corte internacional e à condenação do Brasil. A segunda parte trará o relato de vítimas e a reação das instituições brasileiras a partir da responsabilização do Estado.

  • Primeiro caso de trabalho forçado

O local em que se passa a história é a Fazenda Brasil Verde, em Sapucaia, no sul do Pará. Entre 1989 e 2002, mais de 300 pessoas vítimas de trabalho análogo ao escravo foram identificadas lá. Somente entre 1997 e 2000, o Grupo Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 128.  

A propriedade, voltada para a criação de gado, pertencia, na época, a João Luiz Quagliato Neto, que, com três irmãos, comanda o Grupo Quagliato.

O caso foi o primeiro julgado pela Corte IDH relacionado ao artigo 6º, inciso 1º,  da Convenção Americana de Direitos Humanos, que diz: “Ninguém deverá ser obrigado a prestar trabalho forçado ou obrigatório, sendo proibido o tráfico de mulheres e escravos”. O Brasil foi responsabilizado internacionalmente por uma série de violações. 

  • Primeiras denúncias e morosidade do Estado

As denúncias começaram a vir à tona em 1988, exatos 100 anos após a Lei Áurea, que aboliu formalmente a escravidão no Brasil. Naquele ano, familiares de dois adolescentes que haviam desaparecido após serem recrutados para trabalhar na fazenda procuraram a Comissão Pastoral da Terra (CPT) em busca de ajuda. O relatório da visita dos agentes da Polícia Federal (PF) à fazenda apontou violações trabalhistas e revelou que alguns trabalhadores fugiam em razão das dívidas, mas concluiu que eles não eram proibidos de sair da propriedade. 

No ano seguinte, a CPT denunciou o caso ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, em Brasília, e, em 1992, ao Ministério Público Federal. De 1992 a 1996, as respostas dos órgãos indicavam insuficiência de provas e prescrição dos crimes. 

A partir de 1995, o Estado brasileiro reconheceu a existência do trabalho escravo e passou a tomar medidas para combatê-lo. Entre elas estava a criação do Grupo Interministerial para Erradicar o Trabalho Forçado (Gertraf) e do  Grupo Especial de Fiscalização Móvel, coordenados pelo Ministério do Trabalho e Emprego, que atuava em zonas rurais para investigar denúncias.

  • Fiscalizações identificam trabalho escravo 

Em 1996, uma fiscalização do Grupo Móvel localizou 78 trabalhadores sem registro e uma série de irregularidades na Fazenda Brasil Verde. Mas as violações continuaram.

Em 1997, dois trabalhadores - José da Costa Oliveira e José Ferreira dos Santos - conseguiram fugir e denunciaram o caso à Polícia Federal. Nova ação do Grupo Móvel resgatou 81 pessoas. Os fiscais identificaram barracões cobertos de plástico e palha, trabalhadores doentes e sem assistência médica, falta de condições de higiene e água imprópria para o consumo. Eles também eram ameaçados e proibidos de deixar o local. 

A despeito de todas as ações na fazenda (em 1989, 1993, 1996 e 1997), a Brasil Verde continuou a funcionar durante toda a década de 1990, reforçando a omissão e a inércia do Estado brasileiro diante da violação à dignidade humana. 

  • Empurra-empurra na Justiça

Um dos aspectos dessa omissão foi o empurra-empurra sobre a competência para o julgamento das ações penais contra o proprietário da fazenda, João Luiz Quagliato Neto, o gerente, Antônio Alves Vieira, e o “gato” - recrutador dos trabalhadores - Raimundo Alves da Rocha.

Em 1998, o Ministério Público Federal apresentou a primeira denúncia. Em 1999, a Justiça Federal autorizou a suspensão condicional do processo penal contra o proprietário, que passou a ter apenas de entregar seis cestas básicas a uma entidade beneficente de Ourinhos (SP), cidade de origem da família. 

Em 2001, o juiz federal vinculado à causa declarou-se incompetente para julgá-la, e o caso foi para Justiça Estadual, que, em 2004, fez o mesmo. Em 2007, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a competência era da Justiça Federal, mas, no ano seguinte, a ação penal foi extinta em razão da prescrição dos crimes. Além disso, ao declarar a prescrição, a decisão registra que as provas eram “inúteis”  para a instrução penal.

  • Nova fiscalização, novo flagrante, novo processo, novo empurra-empurra

Em março de 2000, dois jovens trabalhadores também conseguiram fugir da fazenda. Ao tentarem denunciar o caso, porém, o atendimento foi negado pela Polícia Civil em Marabá - pois era Carnaval, e o delegado  não estava de plantão, conforme relata a sentença da Corte IDH. Eles vagaram por dois dias pelas ruas da cidade e foram à Polícia Federal, onde foram orientados a procurar a Comissão Pastoral da Terra. 

A denúncia motivou nova fiscalização do Ministério do Trabalho. Mais de 80 pessoas, incluindo adolescentes, foram encontradas em condições degradantes, submetidas a jornada superior a 12h, com apenas meia hora para almoço. Os fiscais também constataram casos de agressão física, ameaças de morte, vigilância armada, retenção da carteira de trabalho e assinatura de contratos em branco pelos trabalhadores. 

Uma nova ação penal foi ajuizada e, mais uma vez, a Justiça Federal se declarou incompetente. Na Justiça Estadual, não se sabe o que ocorreu. “O Estado informou à Corte que não existia informação sobre o que teria ocorrido com este processo e que não havia podido localizar cópias dos autos da investigação”, destaca a Corte IDH na sentença. 

Na Justiça do Trabalho, o caso chegou apenas em 2000, com uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) contra o proprietário da fazenda. Em audiência de conciliação, ele se comprometeu a não permitir mais a prática e a melhorar as condições no local. Nos dois anos seguintes, os fiscais indicaram que as medidas estavam sendo cumpridas.

  • Vítima fica em situação vexatória

“A pessoa escravizada vive uma situação vexatória em que claramente não consegue exercer seu direito de cidadania básico, que é o de exigir que o Poder Judiciário lhe assegure condições de trabalho decentes e a remuneração justa pelo trabalho prestado. Isso faz com que a Justiça do Trabalho não seja acionada de imediato”, analisa o ministro Augusto César, do TST, coordenador do Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, Tráfico de Pessoas e de Proteção ao Trabalho do Migrante. 

Ele observa que, quando as fiscalizações que resultam no resgate de pessoas, a prioridade é tentar regularizar os pagamentos dos salários e das indenizações devidas, além de benefícios sociais e do seguro-desemprego. “Isso, em princípio, retira a urgência da ação trabalhista”.

  • Caso é denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Antes mesmo das decisões da Justiça brasileira sobre o caso, em novembro de 1998, o caso da Fazenda Brasil Verde foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pela CPT e pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil).

O coordenador da Campanha Nacional da Pastoral da Terra contra o Trabalho Escravo, frei Xavier Plassat, relata que, apesar da prática recorrente no Brasil, o caso da Brasil Verde era emblemático. 

“As denúncias só aumentavam junto ao governo brasileiro, mas mesmo assim não surtiram o efeito esperado de responsabilização dos envolvidos e de reparação das vítimas. Foi por essa recorrência e pela ausência de atitude eficaz do Estado e do Judiciário que recorremos à Comissão”, explica.

  • Responsabilização internacional e recomendações não cumpridas

Em 2011, a CIDH emitiu o Relatório de Admissibilidade e Mérito 169/11, em que responsabilizou o Brasil pela violação de direitos humanos, do direito à integridade física, psíquica e moral e por não coibir a prática da escravidão e da servidão. O relatório contemplou uma série de recomendações a serem implementadas pelo governo no prazo de dois meses - adiado por dez vezes -, que não foram cumpridas.

  • Primeira condenação internacional

Em 2015, a CIDH submeteu o caso ao julgamento da Corte. Em 2016, os juízes condenaram o Brasil e declararam, pela primeira vez, a responsabilidade internacional de um Estado pela violação do direito de não submissão à escravidão e ao tráfico de escravos, por violação às garantias judiciais de devida diligência e de prazo razoável e por violação à proteção judicial.

A sentença da Corte IDH destaca que o governo tinha conhecimento dessa prática, em específico na Fazenda Brasil Verde, desde 1989. Mesmo assim, não adotou medidas razoáveis para interrompê-la e preveni-la.

Entre as cinco determinações, a Corte estabeleceu que o Brasil deveria reabrir as investigações e os processos penais relacionados aos fatos constatados em março de 2000 para identificar, processar e, se fosse o caso, punir os responsáveis. Também deveria adotar as medidas necessárias para garantir que a prescrição não fosse aplicada ao delito de Direito Internacional de escravidão e suas formas análogas. 

A sentença  também determinou o pagamento, no prazo de um ano, de indenização por dano imaterial de US$ 40 mil (cerca de R$ 217 mil, atualmente) para cada trabalhador encontrado na Brasil Verde nas fiscalizações de abril de 1997 e de março de 2000.

  • Cumprimento da sentença

Segundo informações atualizadas da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),  essa reparação foi parcialmente cumprida. Nem todas as vítimas puderam receber o que era de seu direito. Nesse caso, soma-se à morosidade do Estado a dificuldade de localização dos trabalhadores ou de seus herdeiros.  

Muitos dos pagamentos somente foram possíveis graças à mobilização da Pastoral da Terra. Segundo Frei Xavier, 54 vítimas ainda não foram localizadas para receber as indenizações. “Algumas vivem em residências precárias ou estão em situações de muita vulnerabilidade social”, relata.

  • Fazendeiro é condenado pela Justiça brasileira após nova ação

Após a sentença da Corte, o Ministério Público Federal apresentou nova denúncia criminal contra o proprietário da fazenda, com base na fiscalização realizada nos anos 2000. Em 2023, ele foi condenado pela Justiça Federal, em primeira instância, a sete anos e seis meses de detenção. 

  • Repercussões da condenação pela Corte IDH

A sentença da corte serviu como um catalisador para a implementação de mudanças. Na esfera penal, a prática passou a ser considerada crime, previsto no artigo 149 do Código Penal, com pena de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência. 

Hoje, o que se espera é que este crime se torne imprescritível, para evitar o arquivamento de muitos processos em andamento.

 

Fonte: Ascom TST

 

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