terça-feira, 2 de julho de 2024

UM COPO MEIO VAZIO: Drogas, STF e descriminalização

Chegou ao final da votação no STF, tramitando desde 2015, o Recurso Extraordinário 635.659/SP, que questiona a constitucionalidade da criminalização do porte de drogas para uso pessoal, fundamentado na ausência de lesividade, violação à privacidade e inviabilidade da punição da autolesão. A partir do voto do ministro Luís Roberto Barroso, o debate passou a incluir também a fixação de um critério quantitativo do volume de entorpecentes para distinguir as figuras do tráfico e do porte para uso pessoal.

Como expressou o ministro, ao promover o turning point no julgamento:

“É preciso estabelecer um critério por alguns motivos óbvios. O primeiro, naturalmente, é diminuir a discricionariedade judicial e uniformizar a aplicação da lei, evitando que a sorte de um indivíduo fique ao sabor do policial ou do juiz ser mais liberal ou mais severo. O segundo, mais importante ainda, é que a inexistência de um parâmetro objetivo não é neutra. Ela produz um impacto discriminatório que é perceptível a olho nu e destacado por todas as pessoas que lidam com o problema: os jovens de classe média para cima, moradores dos bairros mais abonados, como regra, são enquadrados como usuários; os jovens mais pobres e vulneráveis, que são alvo preferencial das forças de segurança pública, são enquadrados como traficantes.”

Na primeira exposição do voto, o ministro disse preferir a quantia de 40g, mas até optaria pela proposta de 25g em busca de um consenso; chegou a se manifestar em Plenário pelo volume de 100g, mas a decisão ficou mesmo na proposta original: 40g de maconha ou 6 plantas-fêmeas.

Decidiu-se, então, que tais valores serviriam apenas como uma presunção, ou seja, o tráfico não deveria se caracterizar com valores inferiores se apenas lastreado, como já vimos em diversas sentenças, no “volume de droga”. Se outros elementos de prova forem aptos para identificar o intuito mercantil, a presunção de porte em valor inferior seria superada.

Desde o início do voto, o ministro Barroso dedicou-se a decidir exclusivamente sobre maconha, sob o pretexto de que era o entorpecente objeto do processo em que a constitucionalidade do porte para uso pessoal fora questionado – acabou provocando a mudança de voto do relator, ministro Gilmar Mendes, que se manifestava sem discriminar o tipo de droga.

Do ponto de vista de uma análise de constitucionalidade, de fato, fica difícil de explicar como as questões em discussão podem atingir apenas a uma espécie de entorpecente –sobretudo, se as matérias envolvidas são de natureza ampla (seja a infringência ao princípio da lesividade, seja a necessidade de suprir a ausência legal de um critério quantitativo).

Talvez por isso, o ministro Barroso tenha iniciado seu voto indicando que: “A interpretação constitucional é uma atividade que se desenvolve no largo espectro que vai da proteção dos direitos fundamentais ao pragmatismo jurídico”.

Uma lacuna relativamente grande acaba criada com a decisão só referente à maconha, sobretudo, porque quase metade das apreensões de droga no país dizem respeito à cocaína (em pó ou crack).

A questão do critério se tornou mais viável a partir do voto-vista do ministro Alexandre de Moraes, que não apenas acolheu a sugestão de Barroso, como explicitou, por intermédio da apresentação de uma pesquisa baseada em volumes de apreensões, com base nos dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de S. Paulo, notas relevantes sobre a seletividade:

“A mediana para caracterização de tráfico de maconha para os analfabetos é de 32,275 gramas, enquanto para aqueles que tem 2º grau completo é de 40 gramas e para os portadores de diploma de superior completo a mediana chega a 49 gramas; ou seja, em média, um para ser considerado traficante, o portador de diploma de superior completo precisa estar portando 52% a mais de maconha do que o analfabeto.”

Em resumo, continua Moraes, “é possível constatar que os jovens, em especial os negros (pretos e pardos), analfabetos, são considerados traficantes com quantidades bem menores de drogas (maconha ou cocaína) do que os maiores de 30 anos, brancos e portadores de curso superior”.

Na pesquisa de Marcelo Campos (Pela metade: a Lei de Drogas do Brasil, 2019) constatou-se que mesmo nas pequenas quantidades (0 a 7 gramas) para todas as drogas o sistema de justiça criminal mantém a primeira criminalização como traficante e estabelece a pena de prisão. De 0 a 3 gramas pelo menos 25% das incriminações ocorridas em dois distritos policiais da cidade de São Paulo. Na segunda faixa, de 3 até 7 gramas, temos mais 25% nas incriminações por todas as drogas na capital paulista. Ou seja, 50% dos registros e criminalização por drogas, nessas regiões na cidade de São Paulo, ocorreram de 0 até 7 gramas para todas as drogas. Vale registrar que praticamente mais de um quarto da amostra analisada não continha o laudo pericial, ou seja, incriminações por drogas ocorrem até hoje sem a quantidade e o tipo de drogas descriminados.

Não há dúvidas de que a existência de um critério é melhor do que nenhum. A lei estabelece o volume como um critério, mas não o supre com nenhum indicativo. Em vários outros momentos, a jurisprudência estabeleceu critérios ausentes na lei, como no furto privilegiado (traduzindo “pequeno valor” como aquele inferior a um salário mínimo) ou no prazo de apresentação do flagrante à autoridade policial (fixando-se 24 horas como padrão para o “imediato”). Das pesquisas que empreendemos, concluímos que a ausência de critério acaba sendo um palco não apenas para condenações excessivas, como fortemente marcadas pela seletividade própria do combate às drogas.

A presunção relativa, todavia, também apresenta obstáculos.

Alexandre de Moraes, ao fazer referência ao que pode ser utilizado pela acusação para a caracterização do tráfico mesmo com pequenas quantidades, apontou:

“(…) forma como o entorpecente estava acondicionado, diversidade de entorpecentes, apreensões de outros instrumentos como balança, cadernos de anotação, celulares com contatos de compra e venda – uma vez que a entrega ‘delivery’ é um dos grandes instrumentos do tráfico de drogas; locais e circunstâncias de apreensão…”

Bem se vê que, dessa forma, a fixação de um critério quantitativo pode representar uma função meramente retórica, pois, por exemplo, local de apreensão já se tem usado com frequência como elemento de comprovação do tráfico, nos chamados “conhecidos pontos de venda” que, coincidentemente, também são pontos de compra e, exatamente por isso, reúnem ambas as figuras, traficante e usuário, e se prestam pouco a distingui-los.

O mesmo se diga em relação à “forma como o entorpecente estava acondicionado”, como se demonstra em análises de sentenças (Marcelo Semes, Sentenciando tráfico, o papel dos juízes no grande encarceramento, 2019) que todas as formas de armazenamento acabem reconhecidas como indicadoras do comércio, até porque a forma de venda da droga é, via de regra, sua forma de compra.

Permanece, portanto, o risco de que os indícios da traficância sejam avaliações subjetivas dos próprios agentes de segurança, opiniões cuja aderência judicial é quase absoluta, conforme todas as pesquisas que se debruçaram na análise de sentenças. E aqui reside a segunda questão, causadora da própria seletividade: é justamente a opção da repressão pela via do patrulhamento (a escolha de corpos a serem abordados, como sabemos nada aleatória), combinada com o exíguo questionamento judicial, que mantém a ação e a palavra da polícia como centrais na guerra às drogas.

Assim, de pouco vale o discurso contra a seletividade em uma mão e o reforço à indiscriminada ação policial em outra, como tem sido sistematicamente as posições do próprio ministro Alexandre de Moraes, sobretudo, no esvaziamento da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que impôs regras mais rígidas para a aceitação da ação policial (seja em relação à motivação das buscas pessoais, seja em relação ao ônus da prova da licitude da violação de domicílio e os elementos fáticos que a autorizam).

Discutindo a questão do perfilamento racial no HC 208.240, o ministro Edson Fachin explica os motivos pelos quais o “tirocínio policial” (a conhecida atitude suspeita) é insuficiente para tornar legítima a busca pessoal que exige “fundada suspeita”, lastreada em elementos objetivos e concretos. A ausência de dados objetivos e elementos concretos mantém a abordagem aos “conhecidos da Justiça”, e reforça os estereótipos raciais, concluindo o ministro:

“O sistema de justiça ainda não deu mostras de que tenha desativado a rede de estereótipos que atribui aos corpos negros sentidos sociais negativos que legitimam violências inclusive estatais, como é o caso do encarceramento em massa de pessoas negras, em particular pelos crimes de traficância, decorrente, em enorme medida, do que aqui estamos a tratar.”

Um critério que permitisse não condenar automaticamente pelo tráfico em valores inferiores poderia ser proveitoso para eliminar o grau excessivo e seletivo das dezenas de milhares de condenações de microtraficantes. Isso, desde que a abertura aos critérios de quebra da presunção não seja demasiadamente ampla, nem que ao mesmo tempo seja desperdiçada a jurisprudência que insta maior controle judicial sobre a prova policial. Se isso ocorrer, o resultado será nenhum.

De outro lado, a despeito da atecnia da redação do item 8 da tese aprovada, é certo que o juiz poderá concluir pela atipicidade da conduta, mesmo que a porção seja maior – mas não é certo dizer que acima de 40g se presuma o intuito mercantil, porque este deve ser provado e, diferentemente do uso, não pode ser presumido.

Considerando as alternativas para o usuário, dentro do contexto do recurso 635.659, retomamos aqui o primeiro voto, em agosto de 2015, feito pelo ministro Gilmar Mendes. É um voto absolutamente interessante no qual ele cita um dos trabalhos publicados nos últimos anos sobre a questão da criminalização do uso para justificar as alternativas à criminalização:

“Sobre o tema, ponderam MARCELO CAMPOS e RODOLFO VALENTE (Boletim, IBCCRIM, outubro/2012, p. 3), verbis: ‘[…] de fato, há outros meios alternativos à criminalização, adequados aos fins propostos’. A própria lei 11.343/2006 traz profícuas diretrizes que, antagonicamente, são tolhidas pela política repressiva […]. Todas as diretrizes são encadeadas em articulação necessária com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde e da Política Nacional de Assistência Social e norteadas pelo “fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas” (art. 19, III). Entretanto, apesar de ser regulamentada pela Portaria 1.028/2005 do Ministério da Saúde, a política de redução de danos segue desprestigiada e sem efetividade diante do óbice representado pela primazia da tutela penal. Evidenciou-se, desse modo, que não apenas há outras medidas aptas a promover os fins propostos sem atingir direitos fundamentais, como também que a própria criminalização do consumo impede a implementação dessas medidas”.

Nosso objetivo aqui é deixar explícito que evidentemente há um avanço do ponto de vista da saúde pública em relação à descriminalização do porte de maconha. Nossas pesquisas há muito caminham nessa direção. Entretanto, considerando a forma como acontecem as prisões por drogas no Brasil: com a centralidade do inquérito policial, a falta de informações sobre as quantidades e tipo de drogas, e a “atipicidade da conduta” tantas vezes transformadas nos processos como “avistar um suspeito” nos fazem considerar também os limites das mudanças em curso.

Soma-se a isso o fato de que pesquisa recente do Ipea/Senad (2023) constatou que à medida que a população brasileira é composta por 57% de pessoas negras (pretos e pardos), entre os réus processados por tráfico de drogas, 68% são negros.

Nesse sentido, ainda chamamos a atenção aqui para os enormes riscos da continuidade da seletividade penal e racial nos processos por tráfico de drogas.

Que o copo meio vazio de práticas de saúde destinadas ao usuários, e cheio de prisão aos incriminados por tráfico, comece a ser esvaziado de pena de prisão.

 

Fonte: Por Marcelo Campos e Marcelo Semer, para Le Monde

 

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