UM COPO
MEIO VAZIO: Drogas, STF e descriminalização
Chegou
ao final da votação no STF, tramitando desde 2015, o Recurso Extraordinário
635.659/SP, que questiona a constitucionalidade da criminalização do porte de
drogas para uso pessoal, fundamentado na ausência de lesividade, violação à
privacidade e inviabilidade da punição da autolesão. A partir do voto do
ministro Luís Roberto Barroso, o debate passou a incluir também a fixação de um
critério quantitativo do volume de entorpecentes para distinguir as figuras do
tráfico e do porte para uso pessoal.
Como
expressou o ministro, ao promover o turning point no julgamento:
“É
preciso estabelecer um critério por alguns motivos óbvios. O primeiro,
naturalmente, é diminuir a discricionariedade judicial e uniformizar a
aplicação da lei, evitando que a sorte de um indivíduo fique ao sabor do
policial ou do juiz ser mais liberal ou mais severo. O segundo, mais importante
ainda, é que a inexistência de um parâmetro objetivo não é neutra. Ela produz
um impacto discriminatório que é perceptível a olho nu e destacado por todas as
pessoas que lidam com o problema: os jovens de classe média para cima,
moradores dos bairros mais abonados, como regra, são enquadrados como usuários;
os jovens mais pobres e vulneráveis, que são alvo preferencial das forças de
segurança pública, são enquadrados como traficantes.”
Na
primeira exposição do voto, o ministro disse preferir a quantia de 40g, mas até
optaria pela proposta de 25g em busca de um consenso; chegou a se manifestar em
Plenário pelo volume de 100g, mas a decisão ficou mesmo na proposta original:
40g de maconha ou 6 plantas-fêmeas.
Decidiu-se,
então, que tais valores serviriam apenas como uma presunção, ou seja, o tráfico
não deveria se caracterizar com valores inferiores se apenas lastreado, como já
vimos em diversas sentenças, no “volume de droga”. Se outros elementos de prova
forem aptos para identificar o intuito mercantil, a presunção de porte em valor
inferior seria superada.
Desde
o início do voto, o ministro Barroso dedicou-se a decidir exclusivamente sobre
maconha, sob o pretexto de que era o entorpecente objeto do processo em que a
constitucionalidade do porte para uso pessoal fora questionado – acabou
provocando a mudança de voto do relator, ministro Gilmar Mendes, que se
manifestava sem discriminar o tipo de droga.
Do
ponto de vista de uma análise de constitucionalidade, de fato, fica difícil de
explicar como as questões em discussão podem atingir apenas a uma espécie de
entorpecente –sobretudo, se as matérias envolvidas são de natureza ampla (seja
a infringência ao princípio da lesividade, seja a necessidade de suprir a
ausência legal de um critério quantitativo).
Talvez
por isso, o ministro Barroso tenha iniciado seu voto indicando que: “A
interpretação constitucional é uma atividade que se desenvolve no largo
espectro que vai da proteção dos direitos fundamentais ao pragmatismo
jurídico”.
Uma
lacuna relativamente grande acaba criada com a decisão só referente à maconha,
sobretudo, porque quase metade das apreensões de droga no país dizem respeito à
cocaína (em pó ou crack).
A
questão do critério se tornou mais viável a partir do voto-vista do ministro
Alexandre de Moraes, que não apenas acolheu a sugestão de Barroso, como
explicitou, por intermédio da apresentação de uma pesquisa baseada em volumes
de apreensões, com base nos dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado
de S. Paulo, notas relevantes sobre a seletividade:
“A
mediana para caracterização de tráfico de maconha para os analfabetos é de
32,275 gramas, enquanto para aqueles que tem 2º grau completo é de 40 gramas e
para os portadores de diploma de superior completo a mediana chega a 49 gramas;
ou seja, em média, um para ser considerado traficante, o portador de diploma de
superior completo precisa estar portando 52% a mais de maconha do que o
analfabeto.”
Em
resumo, continua Moraes, “é possível constatar que os jovens, em especial os
negros (pretos e pardos), analfabetos, são considerados traficantes com
quantidades bem menores de drogas (maconha ou cocaína) do que os maiores de 30
anos, brancos e portadores de curso superior”.
Na
pesquisa de Marcelo Campos (Pela metade: a Lei de Drogas do Brasil, 2019)
constatou-se que mesmo nas pequenas quantidades (0 a 7 gramas) para todas as
drogas o sistema de justiça criminal mantém a primeira criminalização como
traficante e estabelece a pena de prisão. De 0 a 3 gramas pelo menos 25% das
incriminações ocorridas em dois distritos policiais da cidade de São Paulo. Na
segunda faixa, de 3 até 7 gramas, temos mais 25% nas incriminações por todas as
drogas na capital paulista. Ou seja, 50% dos registros e criminalização por
drogas, nessas regiões na cidade de São Paulo, ocorreram de 0 até 7 gramas para
todas as drogas. Vale registrar que praticamente mais de um quarto da amostra
analisada não continha o laudo pericial, ou seja, incriminações por drogas
ocorrem até hoje sem a quantidade e o tipo de drogas descriminados.
Não
há dúvidas de que a existência de um critério é melhor do que nenhum. A lei
estabelece o volume como um critério, mas não o supre com nenhum indicativo. Em
vários outros momentos, a jurisprudência estabeleceu critérios ausentes na lei,
como no furto privilegiado (traduzindo “pequeno valor” como aquele inferior a
um salário mínimo) ou no prazo de apresentação do flagrante à autoridade
policial (fixando-se 24 horas como padrão para o “imediato”). Das pesquisas que
empreendemos, concluímos que a ausência de critério acaba sendo um palco não
apenas para condenações excessivas, como fortemente marcadas pela seletividade
própria do combate às drogas.
A
presunção relativa, todavia, também apresenta obstáculos.
Alexandre
de Moraes, ao fazer referência ao que pode ser utilizado pela acusação para a
caracterização do tráfico mesmo com pequenas quantidades, apontou:
“(…)
forma como o entorpecente estava acondicionado, diversidade de entorpecentes,
apreensões de outros instrumentos como balança, cadernos de anotação, celulares
com contatos de compra e venda – uma vez que a entrega ‘delivery’ é um dos
grandes instrumentos do tráfico de drogas; locais e circunstâncias de
apreensão…”
Bem
se vê que, dessa forma, a fixação de um critério quantitativo pode representar
uma função meramente retórica, pois, por exemplo, local de apreensão já se tem
usado com frequência como elemento de comprovação do tráfico, nos chamados
“conhecidos pontos de venda” que, coincidentemente, também são pontos de compra
e, exatamente por isso, reúnem ambas as figuras, traficante e usuário, e se
prestam pouco a distingui-los.
O
mesmo se diga em relação à “forma como o entorpecente estava acondicionado”,
como se demonstra em análises de sentenças (Marcelo Semes, Sentenciando
tráfico, o papel dos juízes no grande encarceramento, 2019) que todas as formas
de armazenamento acabem reconhecidas como indicadoras do comércio, até porque a
forma de venda da droga é, via de regra, sua forma de compra.
Permanece,
portanto, o risco de que os indícios da traficância sejam avaliações subjetivas
dos próprios agentes de segurança, opiniões cuja aderência judicial é quase
absoluta, conforme todas as pesquisas que se debruçaram na análise de
sentenças. E aqui reside a segunda questão, causadora da própria seletividade:
é justamente a opção da repressão pela via do patrulhamento (a escolha de
corpos a serem abordados, como sabemos nada aleatória), combinada com o exíguo
questionamento judicial, que mantém a ação e a palavra da polícia como centrais
na guerra às drogas.
Assim,
de pouco vale o discurso contra a seletividade em uma mão e o reforço à
indiscriminada ação policial em outra, como tem sido sistematicamente as
posições do próprio ministro Alexandre de Moraes, sobretudo, no esvaziamento da
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que impôs regras mais rígidas
para a aceitação da ação policial (seja em relação à motivação das buscas
pessoais, seja em relação ao ônus da prova da licitude da violação de domicílio
e os elementos fáticos que a autorizam).
Discutindo
a questão do perfilamento racial no HC 208.240, o ministro Edson Fachin explica
os motivos pelos quais o “tirocínio policial” (a conhecida atitude suspeita) é
insuficiente para tornar legítima a busca pessoal que exige “fundada suspeita”,
lastreada em elementos objetivos e concretos. A ausência de dados objetivos e
elementos concretos mantém a abordagem aos “conhecidos da Justiça”, e reforça
os estereótipos raciais, concluindo o ministro:
“O
sistema de justiça ainda não deu mostras de que tenha desativado a rede de
estereótipos que atribui aos corpos negros sentidos sociais negativos que
legitimam violências inclusive estatais, como é o caso do encarceramento em
massa de pessoas negras, em particular pelos crimes de traficância, decorrente,
em enorme medida, do que aqui estamos a tratar.”
Um
critério que permitisse não condenar automaticamente pelo tráfico em valores
inferiores poderia ser proveitoso para eliminar o grau excessivo e seletivo das
dezenas de milhares de condenações de microtraficantes. Isso, desde que a
abertura aos critérios de quebra da presunção não seja demasiadamente ampla,
nem que ao mesmo tempo seja desperdiçada a jurisprudência que insta maior
controle judicial sobre a prova policial. Se isso ocorrer, o resultado será
nenhum.
De
outro lado, a despeito da atecnia da redação do item 8 da tese aprovada, é
certo que o juiz poderá concluir pela atipicidade da conduta, mesmo que a
porção seja maior – mas não é certo dizer que acima de 40g se presuma o intuito
mercantil, porque este deve ser provado e, diferentemente do uso, não pode ser
presumido.
Considerando
as alternativas para o usuário, dentro do contexto do recurso 635.659,
retomamos aqui o primeiro voto, em agosto de 2015, feito pelo ministro Gilmar
Mendes. É um voto absolutamente interessante no qual ele cita um dos trabalhos
publicados nos últimos anos sobre a questão da criminalização do uso para
justificar as alternativas à criminalização:
“Sobre
o tema, ponderam MARCELO CAMPOS e RODOLFO VALENTE (Boletim, IBCCRIM,
outubro/2012, p. 3), verbis: ‘[…] de fato, há outros meios alternativos à
criminalização, adequados aos fins propostos’. A própria lei 11.343/2006 traz
profícuas diretrizes que, antagonicamente, são tolhidas pela política
repressiva […]. Todas as diretrizes são encadeadas em articulação necessária
com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde e da Política Nacional
de Assistência Social e norteadas pelo “fortalecimento da autonomia e da
responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas” (art. 19,
III). Entretanto, apesar de ser regulamentada pela Portaria 1.028/2005 do
Ministério da Saúde, a política de redução de danos segue desprestigiada e sem
efetividade diante do óbice representado pela primazia da tutela penal.
Evidenciou-se, desse modo, que não apenas há outras medidas aptas a promover os
fins propostos sem atingir direitos fundamentais, como também que a própria
criminalização do consumo impede a implementação dessas medidas”.
Nosso
objetivo aqui é deixar explícito que evidentemente há um avanço do ponto de
vista da saúde pública em relação à descriminalização do porte de maconha.
Nossas pesquisas há muito caminham nessa direção. Entretanto, considerando a
forma como acontecem as prisões por drogas no Brasil: com a centralidade do
inquérito policial, a falta de informações sobre as quantidades e tipo de
drogas, e a “atipicidade da conduta” tantas vezes transformadas nos processos
como “avistar um suspeito” nos fazem considerar também os limites das mudanças
em curso.
Soma-se
a isso o fato de que pesquisa recente do Ipea/Senad (2023) constatou que à
medida que a população brasileira é composta por 57% de pessoas negras (pretos
e pardos), entre os réus processados por tráfico de drogas, 68% são negros.
Nesse
sentido, ainda chamamos a atenção aqui para os enormes riscos da continuidade
da seletividade penal e racial nos processos por tráfico de drogas.
Que
o copo meio vazio de práticas de saúde destinadas ao usuários, e cheio de
prisão aos incriminados por tráfico, comece a ser esvaziado de pena de prisão.
Fonte:
Por Marcelo Campos e Marcelo Semer, para Le Monde
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