Suprema Corte dos EUA virou campo de
batalha política
A Suprema Corte
dos Estados Unidos sempre
desempenhou um papel central na vida americana, com decisões sobre temas
relacionados a direitos civis, meio-ambiente, armas e liberdade religiosa.
Esse papel, no
entanto, tem mostrado mudanças nos últimos tempos. Os nove juízes do tribunal —
que não são eleitos e podem ficar no cargo de forma vitalícia —têm assumido uma
posição de destaque na política do país.
O tribunal emitiu
recentemente uma decisão determinando que os presidentes americanos, incluindo Donald Trump, têm direito à
imunidade judicial em acusações criminais por "atos oficiais"
praticados durante o mandato.
Mesmo antes de uma decisão (por um tribunal de instância
inferior) sobre se os atos pelos quais é acusado foram políticos ou não, Trump comemorou a decisão da Corte e disse que se trata de uma
“grande vitória” para a democracia.
O presidente Joe Biden
disse que a decisão minava o “estado de direito” e era um “terrível desserviço”
aos americanos.
A seguir, entenda como
a Suprema Corte dos EUA, órgão historicamente respeitado e visto como sóbrio,
se tornou um campo de batalha política.
·
O que faz o tribunal?
Em resumo, a Suprema
Corte é a guardiã da Constituição dos EUA.
Os juízes decidem se
as leis criadas pelo Congresso e se as ações e leis governamentais estão de
fato seguindo a Constituição.
Os tribunais
inferiores são obrigados a seguir o precedente estabelecido pelo Supremo
Tribunal, ao abrigo de um princípio jurídico usado no país conhecido como stare
decisis (ou precedente jurídico), que significa “manter o que foi
decidido”.
A maioria dos casos
chega à Suprema Corte subindo uma escada de recursos através dos tribunais
federais inferiores ou dos tribunais estaduais.
Embora o Supremo
Tribunal receba mais de 7 mil petições por ano, julga apenas cerca de 100 casos
a cada ano.
Os juízes seguem a
chamada “regra dos quatro”, onde analisam um caso se apenas quatro deles
decidirem que se trata de uma questão constitucional.
Como comparação, o
Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro toma 50.162 decisões por semestre,
sendo 41.722 monocráticas (individuais) e 8.440 colegiadas (de vários ou todos
os ministros).
Por definição, a
Suprema Corte dos EUA deve estar isolada de mudanças políticas e os juízes
devem ser isolados de pressões políticas ao tomarem as suas decisões.
Os americanos não
votam em quem pode servir no tribunal. Como no Brasil, os juízes são nomeados
pelo presidente e aprovados pelo Senado.
Eles têm mandato
vitalício ou até se aposentarem voluntariamente, e só podem ser destituídos por
impeachment. O Congresso só tentou um impeachment uma vez, há mais de 200 anos,
e fracassou.
·
Quem são os juízes?
Na prática, a
estrutura do tribunal significa que uma das decisões mais importantes que um
presidente pode tomar é a escolha de um juiz da Corte.
Atualmente, os
conservadores detêm uma forte maioria, com seis juízes no tribunal escolhidos
por presidentes republicanos.
Três deles – Neil
Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett – foram nomeados por Trump.
Os presidentes
republicanos George Bush e George W. Bush nomearam John Roberts, Samuel Alito e
Clarence Thomas.
Dois dos três juízes
nomeados por democratas – Sonia Sotomayor e Elena Kagan – foram indicados por
Barack Obama. Já Ketanji Brown Jackson foi escolhida por Biden.
A política tem
desempenhado um papel importante nas nomeações “desde o início deste país”, diz
Jonathan Entin, professor de direito da Case Western Reserve University, em
Ohio, que pesquisa a Suprema Corte.
A instabilidade da
política atualmente, no entanto, mudou a dinâmica dentro e em torno do
tribunal.
“Os presidentes
democratas tendiam a nomear democratas e os presidentes republicanos tendiam a
nomear republicanos”, disse ele. "O que mudou é que os próprios partidos
se tornaram mais polarizados."
“As pessoas de ambos
os partidos passaram a prestar mais atenção ao avanço da politização da
Justiça”, acrescenta Entin. "Portanto, é algo muito mais controverso do
que costumava ser."
·
Dois anos de decisões
monumentais
O tribunal só tem a
sua composição atual, com os conservadores dominando a bancada, desde 2022.
Mas, nesse curto período, criou uma mudança massiva no país, começando
pelo fim do direito constitucional ao aborto em junho daquele ano.
Apenas nas últimas
semanas, junto com a imunidade presidencial, a Suprema Corte decidiu que os
promotores federais exageraram quando usaram uma lei de obstrução contra
os envolvidos na tentativa de golpe 6 de janeiro, derrubaram a proibição de ter estoques de armas, mas também
rejeitaram um esforço de conservadores para restringir o acesso à pílula
abortiva mifepristona.
O tribunal também
reduziu e enfraqueceu os poderes de agências como a Agência de Proteção
Ambiental, ao anular uma decisão anterior que determinava que os juízes
deveriam submeter-se às agências federais na interpretação de partes ambíguas
das leis.
Essa decisão,
juntamente com outras decisões recentes, transferirá muitos poderes das
agências federais para o sistema judicial.
Em 2023, os juízes
também derrubaram a proposta do presidente dos EUA, Joe Biden, de perdoar
milhões de dívidas estudantis.
E decidiram que as
políticas de admissão universitária baseadas na raça em Harvard e na Universidade da Carolina do
Norte não podiam mais ser utilizadas,
derrubando políticas americanas de décadas de existência, as chamadas ações
afirmativas.
·
O que acontece nos
bastidores?
O Supremo Tribunal não
mede esforços para proteger as suas deliberações internas: quase todo o seu
trabalho, como a leitura de resumos ou a redação e circulação de decisões,
acontece a portas fechadas.
Dado que o seu
processo parece quase impenetrável, o país ficou chocado quando a decisão sobre
o processo Roe versus Wade, que tratava do aborto, vazou para a
imprensa.
Da mesma forma, as
deliberações presenciais ocorrem em sigilo, sem a presença de outros
funcionários.
Os juízes sentam-se ao
redor de uma grande mesa em ordem de antiguidade no posto, cada um munido de um
livro e um caderno.
Numa entrevista à BBC
no início deste ano, o ex-juiz do Supremo Tribunal Steven Breyer contou que
então “há uma discussão real” sobre os casos.
Começando pelo
presidente do tribunal, cada um deles dá a sua opinião jurídica sobre um caso e
explica por que é - ou não - persuadido por vários argumentos.
“Ninguém fala duas
vezes até que todos tenham falado uma vez”, disse ele. "Se você tentar
argumentar dizendo que 'meu argumento é melhor que o seu', isso não levará a
lugar nenhum."
"Mas se você
ouvir o que as outras pessoas estão dizendo e prestar atenção, então você tem
uma discussão real sobre o caso", acrescentou.
·
Pedidos por mudanças
À medida que o
tribunal foi tomando decisões importantes e anulando decisões de décadas atrás,
passou a enfrentar acusações crescentes de politização e partidarismo.
Em setembro, 58% dos
americanos desaprovavam a forma como o tribunal conduzia o seu trabalho, o
nível mais elevado em mais de 20 anos, segundo a Gallup.
Os protestos sobre a
ética judicial tornaram-se recentemente mais fortes, depois de jornalistas investigarem o juiz Clarence Thomas por não declarar os presentes recebidos por empresários e
políticos e a família do juiz Samuel Alito por hastear bandeiras em sua casa
que são consideradas símbolos dos invasores do Capitólio em 6 de janeiro.
No ano passado, pela
primeira vez na sua história, o tribunal divulgou um código de conduta. Mas o
código não tem qualquer mecanismo que garanta seu cumprimento e muitos
legisladores apelam por reformas mais fortes e de maior alcance.
Foram sugeridos um
código de ética vinculativo, alargando o número de juízes nos tribunais
inferiores, criando um gabinete de ética independente e - o que chama mais
atenção - impondo períodos de mandato.
Alguns sugeriram a
adição de mais juízes, embora as pesquisas sugiram que isso é amplamente
impopular entre os americanos.
Maggie Jo Buchanan,
diretora-gerente da organização de defesa da reforma Demand Justice, disse à
BBC que limites de mandato de 18 anos poderiam, por exemplo, “despolitizar” o
tribunal e torná-lo mais equilibrado e representativo da população dos EUA.
“Dessa forma, cada
presidente teria o mesmo número de nomeados”, disse ela. "Isso garantiria
que a Suprema Corte refletisse melhor a vontade do povo."
“Neste momento, as
nomeações para o Supremo Tribunal são politicamente um acaso, seja devido ao
momento da reforma ou a uma morte inesperada”, acrescentou Buchanan.
“Num Supremo Tribunal
que tem tanto poder sobre as nossas regras, um presidente com um mandato não
deveria ter mais nomeações para a magistratura do que um presidente com dois
mandatos”, acrescentou.
Outros especialistas
alertaram que é pouco provável que as mudanças estruturais, muitas das quais
exigiriam uma alteração constitucional, sejam possíveis ou populares.
“É uma questão de
estabilidade”, disse Clark Neily, vice-presidente sênior de estudos jurídicos
do Cato Institute, um instituto de pesquisa de tendência libertária com sede em
Washington DC.
“Há muitos argumentos
a favor de não mudar a forma como uma determinada instituição funciona, mesmo
que haja problemas com ela”, acrescenta.
Neily – que foi
co-advogado num caso do Supremo Tribunal em 2008, em que uma lei sobre armas em
Washington DC foi considerada inconstitucional – disse que uma instituição que
“tem a última palavra” sobre a Constituição irá provavelmente sempre gerar controvérsia.
“Não há como evitar
isso”, diz. "E não creio que alguém tenha realmente apresentado uma
proposta que pareça claramente ser melhor do que a que temos agora.”
• Por que escolha de vice de Trump
preocupa Europa
Políticos e diplomatas
europeus já se preparavam para mudanças nas relações com os Estados Unidos no
caso de uma segunda presidência de Donald Trump.
Agora, que o candidato
republicano escolheu o senador de Ohio, J.D. Vance, como companheiro de chapa,
essas preocupações parecem ainda mais acentuadas nas perspectivas sobre o
futuro da guerra na Ucrânia, a segurança e o comércio.
Crítico veemente da
ajuda dos EUA à Ucrânia, Vance disse na Conferência de Segurança de Munique
deste ano que a Europa deveria acordar para a necessidade de os EUA
"orientarem" o foco para a Ásia Oriental.
"O cobertor de
segurança americano fez com que a segurança europeia se atrofiasse", disse
ele, durante o evento na Alemanha.
Nils Schmid, deputado
do partido do chanceler alemão Olaf Scholz, disse à BBC que estava confiante de
que uma presidência republicana nos EUA manteria a força da Otan, mesmo que
J.D. Vance pareça "mais isolacionista" e Donald Trump permaneça "imprevisível".
No entanto, ele
alertou para uma nova rodada de “guerras comerciais” com os EUA sob uma segunda
presidência de Trump.
Um diplomata da União
Europeia (UE) avalia que, depois de quatro anos de presidência Donald Trump,
ninguém pode ser ingênuo: "Entendemos o que significa se Trump regressar
como presidente para um segundo mandato, independentemente do seu companheiro
de chapa."
Ao retratar a UE como
um barco à vela que se prepara para uma tempestade, o diplomata, que preferiu
não ser identificado, acrescentou que as futuras negociações e acordos tendem a
ser sempre mais difíceis.
Os EUA são o maior
aliado da Ucrânia, e o presidente Volodymyr Zelensky disse esta semana que não
tem "medo de que ele [Trump] se torne presidente" e que
"trabalhará junto".
Zelensky também disse
acreditar que a maioria do Partido Republicano apoiava a Ucrânia.
O presidente ucraniano
e Trump também têm um amigo em comum: Boris Johnson, o antigo primeiro-ministro
do Reino Unido, que tem defendido consistentemente a ajuda contínua à Ucrânia e
recentemente se encontrou com o ex-presidente americano na Convenção Nacional
Republicana dos EUA.
Após a reunião,
Johnson publicou no X (o antigo Twitter) que "não tem dúvidas de que
[Trump] será forte e decisivo no apoio a esse país [a Ucrânia] e na defesa da
democracia".
Mas mesmo que esse
sentimento seja verdadeiro, ele pode não se aplicar a Vance que, dias antes da
invasão em grande escala feita pela Rússia, disse num podcast que "não se
importa realmente com o que acontece na Ucrânia, de uma forma ou de outra".
No Senado americano,
Vance também desempenhou um papel fundamental no atraso de um pacote de ajuda
militar de US$ 60 bilhões (aproximadamente R$ 325 bi).
"Precisamos
tentar convencê-lo do contrário", afirma Yevhen Mahda, diretor executivo
do grupo de pesquisas e debates Institute of World Policy, sediado em Kiev.
"Um fato que
podemos usar como trunfo é que ele lutou no Iraque, portanto deveria ser
convidado a ir à Ucrânia para poder ver com os próprios olhos o que acontece e
como o dinheiro americano é gasto."
A questão para a
Ucrânia será até que ponto o eventual vice-presidente poderá influenciar as
decisões do novo chefe.
Mahda concorda que a
imprevisibilidade de Trump poderá ser um problema para Kiev no período que
antecede as eleições presidenciais dos EUA.
O maior apoiador da
chapa Trump-Vance na União Europeia é o húngaro Viktor Orbán, que regressou
recentemente de uma visita ao candidato republicano, depois de também se reunir
com Zelensky e o presidente russo Vladimir Putin, com quem mantém laços estreitos.
Numa carta aos líderes
da UE, Orbán disse que um vitorioso Donald Trump nem sequer esperaria para ser
empossado como presidente para exigir rapidamente
"Ele tem planos
detalhados e bem fundamentados para isso", afirma a carta de Orbán.
O próprio Zelensky
disse esta semana que a Rússia deveria participar de uma cúpula de paz,
possivelmente em novembro, e prometeu um "plano totalmente pronto".
Mas ele deixou claro que não sofreu pressão ocidental para fazer essa proposta.
As recentes
"missões de paz" de Viktor Orbán a Moscou e Pequim suscitaram
acusações de que ele pode abusar da presidência rotativa de seis meses da
Hungria no Conselho Europeu.
Funcionários da
Comissão Europeia foram instruídos a não participar de reuniões na Hungria por
causa das ações de Orbán.
Durante a presidência
de Trump, os EUA impuseram tarifas sobre o aço e o alumínio produzidos na UE.
Embora tenham sido suspensas durante a administração de Joe Biden, Trump
prometeu uma taxa de 10% sobre todas as importações estrangeiras, caso regresse
à Casa Branca.
A perspectiva de um
novo confronto econômico com os EUA será vista como um resultado ruim, ou até
mesmo desastroso, na maioria das capitais europeias.
"A única coisa
que sabemos com certeza é que haverá tarifas punitivas impostas à União
Europeia, por isso temos que nos preparar para outra onda de guerras
comerciais", disse Nils Schmid, líder da política externa dos
social-democratas na Alemanha.
J.D. Vance criticou o
governo alemão por causa da preparação militar do país no início deste ano.
Embora não pretendesse
"bater" na Alemanha, o candidato disse que a base industrial que
sustenta a produção de armas no país era insuficiente.
Todos esses elementos
podem aumentar ainda mais a pressão sobre a Alemanha, a maior economia da
Europa, para "avançar" como ator principal para garantir a segurança
do continente.
Depois do seu muito
elogiado discurso em resposta à invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia
em 2022, Olaf Scholz foi frequentemente acusado de hesitar na hora de fornecer
armas a Kiev.
Mas os aliados do
chanceler estão sempre interessados em salientar que a Alemanha só perde para
os EUA em termos de ajuda militar a Kiev, embora tenha — pela primeira vez
desde o fim da Guerra Fria — cumprido a meta de gastar 2% do PIB com defesa,
embora tenha feito isso com o uso de um orçamento de curto prazo.
"Acho que estamos
no caminho certo", disse Schmid, deputado da base governista. "Temos
que reconstruir um exército que foi negligenciado durante 15 ou 20 anos."
Mas os observadores
estão longe de estar convencidos de que os preparativos europeus nos bastidores
sejam sérios ou suficientes.
Existem poucos líderes
com influência política ou inclinação para defender uma futura arquitetura de
segurança de um continente europeu difícil de manejar.
Scholz tem um estilo
mais discreto e uma clara resistência em assumir a liderança em posições de
política externa mais ousadas — e enfrenta uma perspectiva muito concreta de
ser destituído do cargo no próximo ano.
O presidente francês,
Emmanuel Macron, ficou gravemente enfraquecido depois de convocar eleições
parlamentares que deixaram o país num estado de paralisia política.
Já presidente da
Polônia, Andrzej Duda, alertou na terça-feira (16/7) que, se a Ucrânia perder a
luta contra a Rússia, "então uma potencial guerra russa contra o Ocidente
será iminente".
"O voraz monstro
russo vai querer atacar continuamente", acusou Duda.
Fonte: BBC News em
Washington
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