Soberania digital: A aposta nas universidades
Contribuições para o
Plano Brasileiro de Inteligência Artificial. Estrutura de Estado conectada e
recursos naturais dão vantagem ao Brasil. Porém, faltam cientistas,
investimentos públicos e cooperação internacional. Quatro ações são essenciais
para superar estes entraves.
1. Desnaturalizar a maquinaria digital para
construir tecnologia soberana
A funcionalidade por
meio de operações matemáticas responsivas, a partir de data centers,
abastecidos por milhões de dados, é metaforicamente denominada de ‘inteligência
artificial’. Essa figura de linguagem opera a simulação da inteligência, da
emoção e da ação humanas. Parte expressiva de cientistas e técnicos, envolvidos
com a produção e difusão desses artefatos, tem o grave desvio ideológico de
desvalorizar a capacidade humana em benefício da maquinaria. Esse é um dos
maiores problemas que temos na contemporaneidade, pois orienta e formata o tipo
de tecnociência a partir da qual operam grandes empresas monopolistas, centros
universitários, fundos financeiros e investidores em detrimento da maioria da
humanidade.
Para ter alguma
possibilidade de desenvolver tecnologia soberana, a primeira ação relevante do
corpo científico e educacional brasileiro diz respeito a desnaturalizar o
discurso fabricado de metáforas mistificadoras e obscurantistas, cujo objetivo
é levar a população e, sobretudo, a juventude a um pensamento mágico e
subordinado. As escolas públicas têm sido vítimas deste discurso, nas quais
certos gestores implementam propostas comerciais de IA em detrimento de
projetos pedagógicos consequentes.
É necessário
esclarecer que a cadeia produtiva da denominada IA é formada por recursos
naturais: minérios (ouro, cassiterita, lítio, cobalto, tântalo, tungstênio
entre outros), por muita água e energia. Para subsidiar esse argumento, o
professor Martin Tironi e Garreton (2024) afirmam: “A tecnologia dos data
centers requer eletricidade contínua e sistemas de resfriamento para manter sua
temperatura. Em 2021, os data centers representaram aproximadamente 1% do
consumo global de eletricidade (Agência Internacional de Energia, 2022).
Espera-se que esse número aumente 50% até 2030. A água é fundamental para o
funcionamento dos data centers, tanto para a geração de eletricidade na rede
energética quanto para os equipamentos de refrigeração. Por exemplo, nos Estados
Unidos, a indústria de data centers é uma das dez indústrias que mais consomem
água (OCDE, 2022)”. Para exemplificar o montante de água utilizado na geração
de IA, Tironi fez um experimento científico-artístico exposto em Museu no
Chile, no qual a interação do visitante para produzir uma única imagem a partir
da IA gera o uso 32ml de água.
Como demonstrado, são
necessários recursos naturais para se construir infraestrutura nessa cadeia
produtiva. E é urgente que se encontre soluções para um desenvolvimento
sustentável. Essa pode ser uma vantagem comparativa para o Brasil, desde que
não nos conformemos em apenas fornecer nossos recursos sem contrapartida de
transferência tecnológica sustentável.
Outro elemento da
maquinaria digital, diz respeito aos dados dos seres humanos. Eles são
inesgotáveis, porque produzidos pelas relações sociais. Dados são o insumo que
faz toda essa cadeia se mover. Os dados fazem operar os algoritmos, dão
dinâmica própria às reconfigurações das máquinas. Sem os dados, o modelo de
negócios que orienta esta cadeia produtiva não existiria. Daí todo clamor por
conexão, interação, permanência nas redes sociais. Os data centers são como
minas de dados a serem tratados, organizados com finalidades específicas para
todo tipo de negócio. (Figaro, 2024)
A Lei Geral de
Proteção de Dados pessoais não suporta o nível descomunal de invasão da
privacidade, ocasionada por artefatos que estão em nossas vidas. Dos smarts
TVs, celulares, computadores à internet das coisas e as redes digitais, ou
seja, tudo que está conectado à internet captura dados. No entanto, há descuido
no tratamento dos dados com viéses que redundam em estereótipos e preconceitos
de todo tipo. O pesquisador Tarcísio Silva (2020) denomina-os de ‘algoritmos
racistas’.
Além disso, é preciso
lembrar que os dados têm valor e podem, a depender de como são capturados na
cadeia de produção, gerar mais valor. Exemplo são os trabalhadores por
aplicativos, os trabalhadores em marcação de dados para IA, os empacotadores
dos armazéns da Amazon, entre muitos outros, que trabalham conectados a
dispositivos digitais. Países como o Brasil precisam urgentemente regular o
trabalho nas empresas de plataformas digitais. Essa seria uma fonte de valor
importante para o país, bem como garantia de condições de trabalho mais
descentes para a população.
A cadeia produtiva de
funcionalidades a partir de dados também carece, no Brasil, de uma força de
trabalho especializada. Um corpo técnico e de cientistas amparados por
infraestrutura de pesquisa robusta e, sobretudo, formados para pesquisar a
partir de valores soberanos. Nossos cientistas não terão aqui o ambiente de
recursos e infraestrutura que dispõem os centros hegemônicos. Os cientistas
brasileiros precisam trabalhar a partir de outros parâmetros ideológicos.
Imbuídos de um saber orientado para o desenvolvimento nacional, mesmo cientes
das dificuldades desafiadoras. Mas, não estamos começando do zero. Temos
recursos científicos, temos um acúmulo de resultados relevantes que precisam
ser protegidos e incentivados. Também aqui os poderes da República podem atuar
de forma a elevar e potencializar o parque científico já existente. As
Universidades brasileiras são um patrimônio inestimável, construído com o
esforço de muitas gerações e com potencialidade inesgotável se orientadas por
diretrizes e recursos para objetivar um plano nacional de desenvolvimento
tecnológico sustentável na cadeia que envolve as técnicas digitais.
2. Diagnosticar potencialidades e
debilidades para construir uma política científica com vistas à soberania
Informacional e ao desenvolvimento para a maioria da população
O Brasil tem vantagens
comparativas nesse mercado, porque dispõe de recursos naturais; insumos de
dados: população numericamente expressiva e conectada; estrutura de estado
conectada, como por exemplo a base de saúde (SUS) e da educação, políticas
públicas com cadastro dos mais carentes; cobertura nacional de
telecomunicações, bancos nacionais com ampla experiência tecnológica; empresas
importantes como a Petrobrás e a Embrapa, cujos centros de pesquisa prestam
serviços inestimáveis ao país. Temos cientistas com formação na área,
experientes e atuantes. Um parque científico com rede de Universidades que
cobre o território nacional.
As nossas
desvantagens, no entanto, não são poucas. Existe carência de cientistas e
técnicos na área em número e formação suficientes. Descompasso entre nossa
experiência e os centros de excelência. Falta de investimentos e recursos
capazes de propiciar uma infraestrutura adequada ao trabalho científico. Há
concorrência desleal e política de patentes prejudicial ao país. Há falta de
parceiros para uma política de transferência tecnológica. Sobretudo, nos falta
força política e econômica para implementar programas regulatórios que protejam
o país e a população de negócios predatórios, principalmente, na área da
educação e da saúde.
Há ainda um cenário de
ameaças aos interesses nacionais devido à forte concorrência entre os países e
entre os blocos geopolíticos nas disputas por recursos: energia, minérios, água
e dados dos consumidores e trabalhadores. Há agentes internos parceiros dos
conglomerados internacionais pouco sensíveis à questão da soberania do nosso
país. Atuam em lobbies no governo, no congresso, no poder judiciário e,
sobretudo, na mídia. Também nos prejudica a dispersão de recursos, a concepção
econômica centrada nos interesses financeiros de poucos agentes que se impõem
aos interesses produtivos; e a resistência à produção científica orientada por
políticas de desenvolvimento nacional.
No entanto, em termos
das oportunidades para o desenvolvimento nacional, há um parque universitário
tecno-científico público com extensão nacional, recursos naturais, população
conectada, articulação geopolítica com os Brics, perspectiva de aplicações de
IA com compromisso ético, cidadão e sustentável.
Desse modo, mesmo com
poucos recursos, há ações imediatas que podem ser levadas adiante, por exemplo:
Mapear cientistas e
técnicos que atuam na área, constituir uma rede nacional coordenada por um
centro nacional de pesquisa em IA, com o objetivo de trocar experiência,
sinergia entre pesquisadores e potencializar resultados, voltados para áreas de
interesse nacional, sobretudo, na educação, na saúde e na área de energia.
Potencializar recursos
para infraestrutura de centros de pesquisa já existentes. Esses centros de
pesquisa conectariam escolas e faculdades técnicas, potencializando e
atualizando a formação de novos recursos humanos; os professores dessas
instituições seriam imediatamente os primeiros a serem atualizados pelos
centros de pesquisa.
Constituir um corpo de
diplomacia para formular políticas e ações de proteção soberana de países do
Cone Sul, e potencializar essa ação via Brics. Essa diplomacia se ocuparia da
formulação de políticas de transferência tecnológica.
Agir no enfrentamento
diplomático das ideias de agentes internos (políticos, mídia, empresas,
cientistas etc.) que atuam em benefício próprio e reforçam interesses da
concorrência e dos monopólios estrangeiros em detrimento dos interesses da
melhoria de vida e trabalho da população brasileira.
Essas são sugestões
singelas, mas podem potencializar os passos seguintes à medida que elas
preparam as instituições para uma ação conjunta em proveito do país. Essas
sugestões estão na contramão da concorrência que se instalou no campo tecno
científico. Concorrência que fragiliza países como o Brasil.
Fonte: Por Roseli
Fígaro, em Outras Palavras
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