quinta-feira, 18 de julho de 2024

Samuel Kilsztajn: Sionismo pentecostal e neopentecostal

A grande maioria dos 20 milhões de judeus em Israel e na diáspora, de diferentes matizes políticas, defendem o estado de Israel, isto é, são sionistas; e consideram antissemitas todos os judeus dissidentes, isto é, os antissionistas, tanto os judeus laicos como os hassídicos Satmar e os ultra-ortodoxos Naturei Karta.

As medidas policialescas das instituições e governos que visam silenciar os antissionistas não-judeus e os judeus dissidentes, com o pretexto de estarem combatendo o antissemitismo, não só são inócuas, como, ao contrário do que preconizam, são contraproducentes. O antissemitismo milenar foi disseminado nos países ocidentais que hoje aderem, por interesses próprios, à dissimulada definição de antissemitismo da IHRA – Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, que identifica antissionismo como antissemitismo.

Apesar de sua denominação, a IHRA não foi criada por sobreviventes do Holocausto, nem por judeus, foi criada por Hans Göran Persson, membro do partido sueco Democratas Cristãos, politicamente conservador de direita e adepto do liberalismo econômico.

Com isso quero dizer que não é o lobby judeu que determina a política dos Estados Unidos e da OTAN, mas, ao contrário, que são os Estados Unidos/OTAN que utilizam Israel, com o apoio da grande maioria dos judeus, em sua guerra pela hegemonia internacional contra a China, a Rússia e o Islã.

O antissionismo tem como objetivo se contrapor à desastrosa violência dos sionistas contra o povo palestino, em sua grande maioria de origem árabe e de fé muçulmana. Ao contrário da milenar discriminação dos judeus nos países ocidentais, os judeus, até o advento do moderno sionismo político no início do século XX, sempre viveram em harmonia com as populações árabes e muçulmanas, que hoje somam, respectivamente, 500 milhões e dois bilhões de habitantes no planeta.

Em relação ao uso do termo terrorista, o que mais me impressiona não são os episódios pontuais que mobilizam a mídia, tal qual o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 e a carnificina israelense em curso, mas a desumanização e a violência a que é submetida a população civil palestina em seu cotidiano por décadas por parte das autoridades, exército e civis israelenses, um terrorismo de estado naturalizado que não causa indignação nem ganha cobertura na grande mídia ocidental.

O próprio slogan de que a Palestina era uma terra sem povo para um povo sem terra tem como pressuposto a desumanização do povo palestino, que foi expulso de sua terra natal e, mesmo antes do atual massacre, vivia aprisionado em Gaza por terra, ar e mar (tema de Nascido em Gaza, de Hermán Zin); e em unidades isoladas na Cisjordânia, cercadas por muros e cortadas por estradas militarizadas e assentamentos israelenses (tema de Budrus, de Julia Bacha).

O governador do estado de São Paulo aderiu à definição de antissemitismo da IHRA. Mas engana-se quem acha que ele tenha levado em consideração os votos do reduzido número de judeus no Brasil (100 mil). Os evangélicos pentecostais e neopentecostais são hoje o grupo religioso que mais cresce no país, que já se aproxima da casa dos 50 milhões de brasileiros, um quarto da população total. A maior parte desses evangélicos são filossemitas e sionistas, que utilizam símbolos judeus e apoiam o estado de Israel e sua expansão em território palestino.

Se você percorrer a Rua Conde de Sarzedas, que liga a região da Praça da Sé à Baixada do Glicério em São Paulo, você vai achar que está em Israel, você vai encontrar todos os símbolos usados pelos judeus em Israel, estrelas de David, bandeiras de Israel, bandejas para o pessahmezuzah (com versos da Torah para os umbrais das portas), solidéus, talit (mantos sagrados), menorahs (candelabros de sete braços de todos os tamanhos) etc.

O Terceiro Templo de Salomão já foi erigido, logo mais adiante, na Rua Celso Garcia 605, construído com pedras e tamareiras gigantes vindas diretamente de Israel. Os evangélicos pentecostais e neopentecostais acreditam que Jesus Cristo só voltará à terra quando todos os judeus estiverem reunidos em Israel, condição necessária para que os judeus passem a acreditar que Jesus Cristo é o verdadeiro Messias e se convertam em leais cristãos.

A atual ofensiva militar a Gaza tem, entre outros, o objetivo de unificar os israelenses, pouco tempo atrás divididos entre partidários e opositores do governo de Benjamin Netanyahu. Para uma solução da questão palestina, por sua vez, qualquer proposta honesta por parte de Israel deveria necessariamente partir do reconhecimento da al-Nakba em curso desde 1948, tema levado ao ar pela Rede Universitária de Solidariedade ao Povo Palestino que reuniu Gihad Mohamad e Arlene Clemesha.

O Hamas declara que quer acabar com os israelenses e o primeiro-ministro de Israel declara que quer acabar com os palestinos, enquanto segue exterminando-os efetivamente a todo vapor, com o risco de envolver o mundo numa Terceira Guerra Mundial. Todo judeu dissidente (antissionista), fiel à cultura humanista, internacionalista e pacifista dos judeus da diáspora, considera que não poderia viver consigo mesmo sem denunciar a violência e o massacre do povo palestino perpetrado pelos sionistas.

Mesmo sendo rechaçado como antissemita, desafia os governos ocidentais e o estado de Israel, com risco de ser penalizado pelos sionistas e repelido pelos palestinos. Qualquer judeu antissionista é pior do que um palestino, porque os palestinos antissionistas advogam em causa própria, enquanto os judeus antissionistas são traidores. E, afinal, como é que um palestino poderia confiar em um judeu, se a grande maioria dos judeus é sionista?

Os sionistas acreditam que lamentar que o Holocausto não ensinou nada aos judeus é racismo e consideram, por definição, antissemita toda e qualquer manifestação antissionista, o que os leva a crer que o antissemitismo está crescendo assustadoramente.

As medidas policialescas dos sionistas, ao invés de inibir o antissemitismo, têm o poder de fortalecê-lo, na medida em que a maior parte dos judeus apoia ou naturaliza a violência e a carnificina do povo palestino veiculadas pela grande mídia. Por ironia, só as manifestações antissionistas dos judeus dissidentes, fiéis à cultura dos judeus da diáspora, é que têm o poder de contrarrestar o antissemitismo.

 

¨      Um ciclo interminável: esquerda sionista ataca a luta palestina por descolonização. Por Bruno Huberman

A esquerda sionista, isto é, a parcela à esquerda dos defensores de Israel, tem um objetivo neste momento: construir o discurso de que o horror visto em Gaza é produto de um conflito entre dois “demônios”.

Tanto o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, quanto o grupo palestino Hamas seriam fundamentalistas de extrema direita que teriam originado o ciclo interminável de ações violentas. O ataque palestino de 7 de outubro e os bombardeios israelenses seriam a sua consequência trágica.

Esse é o argumento do artigo “Extrema direita usa descolonização para projetos reacionários“, de Fábio Zuker, publicado no jornal Folha de S. Paulo. O autor se baseia em um ensaio de Miri Davidson para sustentar que a extrema direita tem reivindicado um falso discurso de descolonização para justificar medidas violentas. A base dessa violência seriam os nacionalismos em que predomina uma visão “nativista”, a ideia de que um determinado grupo social seria o verdadeiro nativo da terra e o detentor do Estado.

Fábio Zuker deturpa a argumentação de Miri Davidson para incluir Israel e a Palestina nesse tipo de narrativa e, assim, deslegitimar a luta palestina por descolonização por meio de uma falsa equivalência com a violência genocida de Israel. O autor chega a afirmar que as vítimas, os palestinos, “são corresponsáveis nesse genocídio”.

O efeito dessa narrativa é a despolitização da resistência anticolonial palestina. Fábio Zuker apaga a realidade colonial na Palestina, que está na raiz da opressão, para construir a representação de um conflito entre moderados e extremistas. “Ninguém é nativo do território entre o rio [Jordão] e o mar [Mediterrâneo]”, afirma.

O objetivo é justificar o papel da esquerda sionista como guardiã da comunidade judaica contra o suposto extremismo da esquerda global que apoia a resistência palestina. A esquerda sionista busca se colocar ao lado dos “palestinos moderados” como vítimas dos “extremismos” e, portanto, como aqueles que possuem uma posição moral privilegiada para resolver a questão palestina exclusivamente por meio do diálogo.

Essa ideologia ignora que, devido à assimetria de poder, nenhum processo de descolonização teve seu término por meio do diálogo, mas através de disputas que envolveram sempre o emprego, por parte dos colonizados, das mais diferentes formas de resistência reconhecidas como legítimas pelo direito internacional.

<><> Nativismo, colonialismo e genocídio

Daniel Denvir aponta, em “All-American Nativism”, que o nativismo dos EUA é fundamentado em uma história de colonização por povoamento de brancos europeus em terras roubadas de indígenas, vítimas de genocídio, e da escravização de africanos. Isso fez do grupo formado de brancos, anglo-saxões e protestantes os pretensamente americanos verdadeiros.

Se, no passado, certos brancos também foram vítimas de racismo nativista, como irlandeses e judeus, atualmente todos foram incluídos na branquitude americana. O nativismo dos EUA, assim como o da extrema direita de países europeus, se volta agora contra imigrantes muçulmanos e outras pessoas “marrons”.

O mesmo vale para Israel, país fundado por meio da colonização por povoamento de judeus europeus, africanos e asiáticos. Esse fato, entretanto, é ignorado por Zuker para construir o segundo ponto da sua narrativa: o sionismo seria um nacionalismo anticolonial, uma reação à opressão promovida por otomanos, britânicos e árabes.

Isso nega como o sionismo, uma ideologia surgida entre judeus europeus com o objetivo declarado de colonizar a Palestina, prosperou graças ao imperialismo europeu. O historiador judeu Maxime Rodinson dizia que, se o sionismo fosse realmente um movimento de libertação nacional, os sionistas teriam lutado ao lado dos palestinos contra o mandato britânico, não ao lado dos britânicos na repressão da revolta palestina de 1936-39.

Embora os judeus também fossem parcela da população nativa na Palestina, o sionismo os transformou em colonos. O sionismo racializou o “novo homem judeu” em oposição aos árabes nativos e dotou os identificados como judeus de privilégios materiais. Por outro lado, os palestinos foram reduzidos a invasores muçulmanos, tal qual sob o nativismo ocidental.

O problema de incluir os palestinos nesse balaio, como Fábio Zuker faz, é que eles estão sob um processo colonial real, não imaginário. São nativos, não nativistas. A natividade é uma identidade relacional, constituída a partir do processo colonial. O que faz dos palestinos nativos não é sua relação com o território ou seu pertencimento étnico por si só, mas sua posição de subjugação na situação colonial.

Foi o colonialismo sionista que fez dos palestinos nativos, assim como foi o colonialismo americano que fez do povo lakota, por exemplo, indígena. Há, aliás, uma crescente solidariedade de povos indígenas com os palestinos porque eles se veem na mesma luta anticolonial contra o genocídio.

O genocídio é um fenômeno constituinte do colonialismo por povoamento, das Américas à Oceania. O pesquisador australiano Patrick Wolfe argumenta que o colonialismo por povoamento se baseia em uma lógica de eliminação, já que tem como objetivo apagar os nativos tanto material quanto simbolicamente por meio do apagamento identitário, da expulsão e do genocídio.

Os discursos de líderes israelenses que propagam que os palestinos não existem são, portanto, uma forma de genocídio complementar ao extermínio físico. A devastação de Gaza é a etapa atual do processo empreendido desde 1948 por governos israelenses – de esquerda e de direita – para apagar os palestinos. Não por acaso, o Estado de Israel foi fundado por meio da Nakba, o processo de expulsão de 750 mil palestinos e de destruição de 500 vilarejos.

Eliminar os indígenas permite aos colonos se tornar nativos. Eis o grande artifício que Fábio Zuker busca para criticar a extrema direita, que o autor, no entanto, acaba empregando em relação aos palestinos. Apagar a Nakba faz Zuker reproduzir a ideologia colonialista de Israel, que, paradoxalmente, ele diz combater. O colonialismo israelense não começou com as ocupações de 1967: é parte estruturante de Israel.

A resistência palestina e a sua reivindicação de indigeneidade, contudo, ameaçam o discurso nativista e a supremacia racial judaica. Por isso, é demonizada por sionistas, à esquerda e à direita.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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