Samuel Kilsztajn: Sionismo pentecostal e
neopentecostal
A grande maioria dos
20 milhões de judeus em Israel e na diáspora, de diferentes matizes políticas,
defendem o estado de Israel, isto é, são sionistas; e consideram antissemitas
todos os judeus dissidentes, isto é, os antissionistas, tanto os judeus laicos
como os hassídicos Satmar e os ultra-ortodoxos Naturei Karta.
As medidas
policialescas das instituições e governos que visam silenciar os antissionistas
não-judeus e os judeus dissidentes, com o pretexto de estarem combatendo o
antissemitismo, não só são inócuas, como, ao contrário do que preconizam, são
contraproducentes. O antissemitismo milenar foi disseminado nos países
ocidentais que hoje aderem, por interesses próprios, à dissimulada definição de
antissemitismo da IHRA – Aliança Internacional para a Memória do Holocausto,
que identifica antissionismo como antissemitismo.
Apesar de sua
denominação, a IHRA não foi criada por sobreviventes do Holocausto, nem por
judeus, foi criada por Hans Göran Persson, membro do partido sueco Democratas
Cristãos, politicamente conservador de direita e adepto do liberalismo
econômico.
Com isso quero dizer
que não é o lobby judeu que determina a política dos Estados Unidos e da OTAN,
mas, ao contrário, que são os Estados Unidos/OTAN que utilizam Israel, com o
apoio da grande maioria dos judeus, em sua guerra pela hegemonia internacional
contra a China, a Rússia e o Islã.
O antissionismo tem
como objetivo se contrapor à desastrosa violência dos sionistas contra o povo
palestino, em sua grande maioria de origem árabe e de fé muçulmana. Ao
contrário da milenar discriminação dos judeus nos países ocidentais, os judeus,
até o advento do moderno sionismo político no início do século XX, sempre
viveram em harmonia com as populações árabes e muçulmanas, que hoje somam,
respectivamente, 500 milhões e dois bilhões de habitantes no planeta.
Em relação ao uso do
termo terrorista, o que mais me impressiona não são os episódios pontuais que
mobilizam a mídia, tal qual o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 e a
carnificina israelense em curso, mas a desumanização e a violência a que é
submetida a população civil palestina em seu cotidiano por décadas por parte
das autoridades, exército e civis israelenses, um terrorismo de estado
naturalizado que não causa indignação nem ganha cobertura na grande mídia
ocidental.
O próprio slogan de
que a Palestina era uma terra sem povo para um povo sem terra tem como
pressuposto a desumanização do povo palestino, que foi expulso de sua terra
natal e, mesmo antes do atual massacre, vivia aprisionado em Gaza por terra, ar
e mar (tema de Nascido em Gaza, de Hermán Zin); e em unidades isoladas na Cisjordânia,
cercadas por muros e cortadas por estradas militarizadas e assentamentos
israelenses (tema de Budrus, de Julia Bacha).
O governador do estado
de São Paulo aderiu à definição de antissemitismo da IHRA. Mas engana-se quem
acha que ele tenha levado em consideração os votos do reduzido número de judeus
no Brasil (100 mil). Os evangélicos pentecostais e neopentecostais são hoje o
grupo religioso que mais cresce no país, que já se aproxima da casa dos 50
milhões de brasileiros, um quarto da população total. A maior parte desses
evangélicos são filossemitas e sionistas, que utilizam símbolos judeus e apoiam
o estado de Israel e sua expansão em território palestino.
Se você percorrer a
Rua Conde de Sarzedas, que liga a região da Praça da Sé à Baixada do Glicério
em São Paulo, você vai achar que está em Israel, você vai encontrar todos os
símbolos usados pelos judeus em Israel, estrelas de David, bandeiras de Israel,
bandejas para o pessah, mezuzah (com versos da
Torah para os umbrais das portas), solidéus, talit (mantos
sagrados), menorahs (candelabros de sete braços de todos os
tamanhos) etc.
O Terceiro Templo de
Salomão já foi erigido, logo mais adiante, na Rua Celso Garcia 605, construído
com pedras e tamareiras gigantes vindas diretamente de Israel. Os evangélicos
pentecostais e neopentecostais acreditam que Jesus Cristo só voltará à terra
quando todos os judeus estiverem reunidos em Israel, condição necessária para
que os judeus passem a acreditar que Jesus Cristo é o verdadeiro Messias e se
convertam em leais cristãos.
A atual ofensiva
militar a Gaza tem, entre outros, o objetivo de unificar os israelenses, pouco
tempo atrás divididos entre partidários e opositores do governo de Benjamin
Netanyahu. Para uma solução da questão palestina, por sua vez, qualquer
proposta honesta por parte de Israel deveria necessariamente partir do
reconhecimento da al-Nakba em curso desde 1948, tema levado ao
ar pela Rede Universitária de Solidariedade ao Povo Palestino que reuniu Gihad
Mohamad e Arlene Clemesha.
O Hamas declara que
quer acabar com os israelenses e o primeiro-ministro de Israel declara que quer
acabar com os palestinos, enquanto segue exterminando-os efetivamente a todo
vapor, com o risco de envolver o mundo numa Terceira Guerra Mundial. Todo judeu
dissidente (antissionista), fiel à cultura humanista, internacionalista e
pacifista dos judeus da diáspora, considera que não poderia viver consigo mesmo
sem denunciar a violência e o massacre do povo palestino perpetrado pelos
sionistas.
Mesmo sendo rechaçado
como antissemita, desafia os governos ocidentais e o estado de Israel, com
risco de ser penalizado pelos sionistas e repelido pelos palestinos. Qualquer
judeu antissionista é pior do que um palestino, porque os palestinos antissionistas
advogam em causa própria, enquanto os judeus antissionistas são traidores. E,
afinal, como é que um palestino poderia confiar em um judeu, se a grande
maioria dos judeus é sionista?
Os sionistas acreditam
que lamentar que o Holocausto não ensinou nada aos judeus é racismo e
consideram, por definição, antissemita toda e qualquer manifestação
antissionista, o que os leva a crer que o antissemitismo está crescendo
assustadoramente.
As medidas
policialescas dos sionistas, ao invés de inibir o antissemitismo, têm o poder
de fortalecê-lo, na medida em que a maior parte dos judeus apoia ou naturaliza
a violência e a carnificina do povo palestino veiculadas pela grande mídia. Por
ironia, só as manifestações antissionistas dos judeus dissidentes, fiéis à
cultura dos judeus da diáspora, é que têm o poder de contrarrestar o
antissemitismo.
¨ Um ciclo interminável: esquerda sionista ataca a luta palestina
por descolonização. Por Bruno Huberman
A esquerda sionista,
isto é, a parcela à esquerda dos defensores de Israel, tem um objetivo neste
momento: construir o discurso de que o horror visto em Gaza é produto de um
conflito entre dois “demônios”.
Tanto o
primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, quanto o grupo palestino
Hamas seriam fundamentalistas de extrema direita que teriam originado o ciclo
interminável de ações violentas. O ataque palestino de 7 de outubro e os
bombardeios israelenses seriam a sua consequência trágica.
Esse é o argumento do
artigo “Extrema direita usa descolonização para
projetos reacionários“, de Fábio Zuker, publicado no
jornal Folha de S. Paulo. O autor se baseia em um ensaio de Miri Davidson para sustentar que a extrema direita tem reivindicado um
falso discurso de descolonização para justificar medidas violentas. A base
dessa violência seriam os nacionalismos em que predomina uma visão “nativista”,
a ideia de que um determinado grupo social seria o verdadeiro nativo da terra e
o detentor do Estado.
Fábio Zuker deturpa a
argumentação de Miri Davidson para incluir Israel e a Palestina nesse tipo de
narrativa e, assim, deslegitimar a luta palestina por descolonização por meio
de uma falsa equivalência com a violência genocida de Israel. O autor chega a
afirmar que as vítimas, os palestinos, “são corresponsáveis nesse genocídio”.
O efeito dessa
narrativa é a despolitização da resistência anticolonial palestina. Fábio Zuker
apaga a realidade colonial na Palestina, que está na raiz da opressão, para
construir a representação de um conflito entre moderados e extremistas.
“Ninguém é nativo do território entre o rio [Jordão] e o mar [Mediterrâneo]”,
afirma.
O objetivo é
justificar o papel da esquerda sionista como guardiã da comunidade judaica
contra o suposto extremismo da esquerda global que apoia a resistência
palestina. A esquerda sionista busca se colocar ao lado dos “palestinos
moderados” como vítimas dos “extremismos” e, portanto, como aqueles que possuem
uma posição moral privilegiada para resolver a questão palestina exclusivamente
por meio do diálogo.
Essa ideologia ignora
que, devido à assimetria de poder, nenhum processo de descolonização teve seu
término por meio do diálogo, mas através de disputas que envolveram sempre o
emprego, por parte dos colonizados, das mais diferentes formas de resistência
reconhecidas como legítimas pelo direito internacional.
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Nativismo, colonialismo e genocídio
Daniel Denvir
aponta, em “All-American Nativism”, que o nativismo dos EUA é fundamentado em uma história de
colonização por povoamento de brancos europeus em terras roubadas de indígenas,
vítimas de genocídio, e da escravização de africanos. Isso fez do grupo formado
de brancos, anglo-saxões e protestantes os pretensamente americanos
verdadeiros.
Se, no passado, certos
brancos também foram vítimas de racismo nativista, como irlandeses e judeus,
atualmente todos foram incluídos na branquitude americana. O nativismo dos EUA,
assim como o da extrema direita de países europeus, se volta agora contra imigrantes
muçulmanos e outras pessoas “marrons”.
O mesmo vale para
Israel, país fundado por meio da colonização por povoamento de judeus europeus,
africanos e asiáticos. Esse fato, entretanto, é ignorado por Zuker para
construir o segundo ponto da sua narrativa: o sionismo seria um nacionalismo
anticolonial, uma reação à opressão promovida por otomanos, britânicos e
árabes.
Isso nega como o
sionismo, uma ideologia surgida entre judeus europeus com o objetivo declarado
de colonizar a Palestina, prosperou graças ao imperialismo europeu. O
historiador judeu Maxime Rodinson dizia que, se o sionismo fosse realmente um movimento de
libertação nacional, os sionistas teriam lutado ao lado dos palestinos contra o
mandato britânico, não ao lado dos britânicos na repressão da revolta palestina
de 1936-39.
Embora os judeus
também fossem parcela da população nativa na Palestina, o sionismo os
transformou em colonos. O sionismo racializou o “novo homem judeu” em oposição
aos árabes nativos e dotou os identificados como judeus de privilégios
materiais. Por outro lado, os palestinos foram reduzidos a invasores
muçulmanos, tal qual sob o nativismo ocidental.
O problema de incluir
os palestinos nesse balaio, como Fábio Zuker faz, é que eles estão sob um
processo colonial real, não imaginário. São nativos, não nativistas. A
natividade é uma identidade relacional, constituída a partir do processo
colonial. O que faz dos palestinos nativos não é sua relação com o território
ou seu pertencimento étnico por si só, mas sua posição de subjugação na
situação colonial.
Foi o colonialismo
sionista que fez dos palestinos nativos, assim como foi o colonialismo
americano que fez do povo lakota, por exemplo, indígena. Há, aliás, uma
crescente solidariedade de povos indígenas com os palestinos porque eles se
veem na mesma luta anticolonial contra o genocídio.
O genocídio é um
fenômeno constituinte do colonialismo por povoamento, das Américas à Oceania. O
pesquisador australiano Patrick Wolfe argumenta que o colonialismo por povoamento se baseia em uma lógica
de eliminação, já que tem como objetivo apagar os nativos tanto material quanto
simbolicamente por meio do apagamento identitário, da expulsão e do genocídio.
Os discursos de
líderes israelenses que propagam que os palestinos não existem são, portanto,
uma forma de genocídio complementar ao extermínio físico. A devastação de Gaza
é a etapa atual do processo empreendido desde 1948 por governos israelenses –
de esquerda e de direita – para apagar os palestinos. Não por acaso, o Estado
de Israel foi fundado por meio da Nakba, o processo de expulsão de
750 mil palestinos e de destruição de 500 vilarejos.
Eliminar os indígenas
permite aos colonos se tornar nativos. Eis o grande artifício que Fábio Zuker
busca para criticar a extrema direita, que o autor, no entanto, acaba
empregando em relação aos palestinos. Apagar a Nakba faz Zuker reproduzir a
ideologia colonialista de Israel, que, paradoxalmente, ele diz combater. O
colonialismo israelense não começou com as ocupações de 1967: é parte
estruturante de Israel.
A resistência
palestina e a sua reivindicação de indigeneidade, contudo, ameaçam o discurso
nativista e a supremacia racial judaica. Por isso, é demonizada por sionistas,
à esquerda e à direita.
Fonte: A Terra é Redonda
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