quinta-feira, 18 de julho de 2024

Raúl Zibechi: O declínio do Ocidente arrasta a esquerda

O principal problema que afeta a humanidade são as guerras e, em segundo lugar, o caos climático. Como sabemos, ambos se retroalimentam desde que o Pentágono passou a ser a principal instituição poluidora do planeta. As guerras não acontecem “longe”, mas, sim, em cada região, em cada área do planeta. Entramos em uma escalada belicista, com o risco da utilização de armas nucleares (ver Un belicismo sin límites, Brecha, 27-06-24).

Vladimir Putin advertiu claramente a esse respeito em várias oportunidades, mas a imprensa ocidental o considera louco ou bárbaro, como acerta o historiador e demógrafo francês Emmanuel Todd, já que nesta parte do mundo desapareceu a disposição de considerar que as suas opções são racionais, ainda que eticamente deploráveis.

Em Israel, debate-se o uso de armas nucleares no Líbano para reduzir o Hezbollah, algo que a imprensa ocidental busca rigorosamente ocultar, ainda que destacados políticos estadunidenses recomendem a opção atômica. O senador republicano Lindsey Graham defende o modelo “Hiroshima e Nagasaki” para ser aplicado por Israel (NBC News, 12-05-24). Três altos funcionários do governo israelense ameaçam usar armas nucleares contra Gaza e o Irã.

Portanto, é preciso considerar a guerra a principal ameaça. Com um esclarecimento óbvio: neste momento, há guerras em muitos outros lugares além da Ucrânia e da Palestina. Acrescentemos Síria, Iêmen, Líbia, Afeganistão, Sudão, Congo, o Sahel, Mianmar e poderíamos seguir com outras geografias. Em nossa América Latina, não devemos esquecer o México, com mais de 100.000 desaparecidos e 350.000 assassinados, nem a Colômbia, onde o Cauca é o cenário de violências cruéis contra camponeses, afros e indígenas.

Seria muito extenso para o objetivo deste texto repassar todas as guerras de espoliação em nosso continente. Mencionarei apenas duas muito atuais: as prisões do Equador são o cenário de uma violência sem precedentes contra os presos, em geral homens pobres, a quem nega-se comida e, por vezes, elimina-se; a guerra contra os povos andinos peruanos segue em curso após o massacre de mais de 50 pessoas nos primeiros meses de protestos contra o governo ilegítimo de Dina Boluarte.

No entanto, a esquerda coloca no centro do seu discurso o combate à “ultradireita”. Na França, retiraram os seus candidatos em toda região eleitoral onde outros partidos do “arco republicano” (todos, exceto o Reagrupamento Nacional) tinham mais chances de conseguir deputados. A direita de Emmanuel Macron fez o mesmo. Ambos para impedir o triunfo dessa ultradireita a que assimilam ao fascismo.

Cometem dois erros imensos. O primeiro é deixar de lado a questão principal, a guerra, sobre a qual, no caso ucraniano, a Nova Frente Popular (NFP) não diz grande coisa e parece disposta a seguir apostando no aprofundamento desse conflito. Note-se que a esquerda espanhola, talvez a mais radical da Europa, permanece no governo de Pedro Sánchez, apesar da clara atitude belicista do mandatário, ainda que seja necessário reconhecer que no caso de Gaza tomou boas decisões, como reconhecer o Estado palestino - algo que a NFP também defende – e apoiar a ação internacional da África do Sul por genocídio.

O segundo desvario é montar uma Frente Popular contra o “fascismo”. Uma ferramenta que já foi utilizada há quase um século e revela a defasagem em sua forma de fazer política. O primeiro passo é se unir com toda a esquerda, incluindo Verdes e socialistas, que apoiam entusiasmados a guerra, para depois se juntar a Macron, cuja política não é muito diferente da de Marine Le Pen.

Os economistas Thomas Piketty e Julia Cagé escrevem: “Esta aliança se inspira na Frente Popular – que em 1936 surgiu sob a ameaça do fascismo para governar a França. Esta coalizão de esquerda de socialistas e comunistas representou uma mudança real para as classes trabalhadoras, com políticas como a introdução de férias pagas de duas semanas e uma lei limitando a semana de trabalho a 40 horas. […] A NFP está seguindo um caminho semelhante hoje, com políticas ambiciosas para melhorar o poder de compra de pessoas pobres e de classe média baixa” (The Guardian, 03-07-24).

As árvores não permitem ver a floresta e o pragmatismo coloca o possível no lugar do necessário. Acreditar que o aumento dos salários e outros benefícios pode melhorar a vida, quando se tem uma arma apontada à cabeça, é como se os habitantes de Gaza exigissem uma “guerra sustentável” (seja lá o que isso signifique), em vez de pedir o fim das hostilidades.

O problema da esquerda é que para evitar que a ultradireita chegue ao governo, há décadas apoia a direita (no segundo turno da última eleição presidencial francesa, apoiou Macron que, além de aplicar uma política neoliberal e autoritária, disse recentemente que não descarta o envio de tropas à Ucrânia). Inércia, mas também perda de horizonte político independente, já que hipoteca seus objetivos (ainda os tem?) para apoiar o mal menor, ficando cada vez mais difícil se desvencilhar do mal maior.

No termo ultradireita, na Wikipédia, é possível ler: “A política de extrema-direita pode levar à opressão, à violência política, à limpeza étnica e ao genocídio”. É uma definição mais apropriada para Donald Trump ou para Joe Biden? Depois de Gaza, as diferenças deixaram de existir, se é que alguma vez existiram.

Não nego a existência de uma ultradireita racista e autoritária, mas não acredito que para detê-la seja necessário se unir a uma direita colonialista, como a francesa, que segue provocando estragos em suas ex-colônias africanas. Não se separar dela é o problema a ser superado para recuperar o rumo perdido. Os meios de comunicação do mundo mais empenhados em deter a ultradireita são neoliberais, como o El País de Madrid, The New York Times e Le Monde, afins a socialistas e social-democratas globalistas.

Neste ponto, gostaria de lembrar que na campanha eleitoral estadunidense de 2016, Trump foi acusado de pretender construir um muro fronteiriço com o México, deixando no limbo que tal muro foi iniciado sob a presidência do democrata Bill Clinton. Para os imigrantes, não há grande diferença entre a presidência de Biden e a de Trump, embora por vezes os números de “devoluções” (expulsões de migrantes) do primeiro superem os do ultradireitista. De fato, o maior número de deportações ocorreu sob o governo de Clinton, e o menor sob Trump (BBC, 22-10-20).

Sobre o famoso muro fronteiriço, há mais propaganda do que dados. Antes de Trump chegar à Casa Branca, havia barreiras ou cercas de separação em um terço da fronteira, cerca de 1.050 km. Durante a presidência de Trump, “foram construídos apenas cerca de 129 km de muro novo, dos quais 53 km correspondem a cercas secundárias, o que deixa um total de 76 km de barreiras primárias totalmente novas” (BBC, 21-01-21).

Até aqui, uma breve e concisa descrição de fatos que, a meu ver, ensinam como a esquerda perdeu o rumo nos temas centrais, focando os debates em torno de questões secundárias e deixando de lado o que é central.

Como se chegou a isto? Como as forças de mudança deixaram pelo caminho suas intenções transformadoras para se dedicar à “pequena política”, como diria Antonio Gramsci? Esse modo de fazer política que não toca em temas estruturais e se detém em adornos colocados pelo sistema como gancho para atrair incautos e ambiciosos. As reuniões anuais da ONU sobre Mudanças Climáticas, as COP, fazem parte dessa liturgia sistêmica da qual tantas ONGs e ativistas participam, sabendo que não servem mais do que como distrações.

Seguindo os argumentos de Todd, em seu livro A derrota do Ocidente, penso que o declínio desta parte do mundo está arrastando a esquerda de forma irreversível e acelerada. O historiador francês argumenta, como tantos outros intelectuais, que “a democracia não existe mais” no Ocidente, que o Estado-nação se desintegrou, em grande parte devido à destruição das classes médias pelo neoliberalismo, e que “a crise do Ocidente é o motor da história”.

Para Todd, uma das causas centrais desta situação é a estratificação educacional, que leva 25% da população a alcançar o ensino superior, criando, em sua análise, uma “oligarquia de massas” (conceito contraditório, mas compreensível), cujos membros se sentem superiores aos outros. Mais ainda, difundiu-se a ideia de que “os valores das pessoas com ensino superior são os únicos legítimos”.

Essa nova oligarquia é profundamente neoliberal, não questiona o sistema e a sua atitude mina a democracia, continua Todd. Como o historiador francês não analisa especificamente a esquerda, talvez por considerá-la supérflua e se concentra na geopolítica, não acrescenta o óbvio: que o fim da democracia e do Estado-nação deixa sem sentido, e órfã, uma esquerda que continua acreditando na utilidade das eleições e na centralidade das instituições estatais.

Contudo, há um dado maior: tanto a social-democracia como as várias esquerdas estão integradas e dirigidas por esta nova oligarquia de massas, nascida da massificação do ensino superior, que a faz se sentir superior àqueles que só tem o ensino secundário, segundo Todd. Essa atitude de superioridade contribuiu para que os trabalhadores tenham se voltado para Trump e Le Pen?

A parlamentar alemã Sahra Wagenknecht, que rompeu com a esquerda e fundou uma nova força, duplicou os votos de seu partido anterior nas recentes eleições europeias e defende uma análise semelhante à de Todd: “Hoje, quem deseja expressar o seu descontentamento contra a política imperante não costuma votar na esquerda, mas na direita e, em vez de se perguntar pelas razões disto, muitas vezes, costuma-se insultar e classificar os eleitores como estúpidos ou nazistas” (Público, 07-07-24). Em seguida, acrescenta que muitas pessoas percebem a esquerda como arrogante e convencida: “O partido de esquerda na Alemanha faz política pensando em ativistas com formação acadêmica nas grandes cidades e não percebe que estão desprezando seus antigos eleitores e simpatizantes”.

Nos bairros periféricos, onde a população não vai votar ou vota na ultradireita, o Estado “vai perdendo presença”, como aponta em uma entrevista Tarik Bouafia, historiador francês filho de imigrantes argelinos (El Salto, 30-06-24). Faltam serviços públicos, a assistência médica é deficiente, as escolas públicas estão lotadas com 40 ou 45 alunos por turma e os professores e profissionais de saúde “não querem assumir os cargos porque os salários são muito baixos”. Contudo, metade da polícia, presença estatal excludente nas periferias francesas, vota no Reagrupamento Nacional, “um dos sintomas mais importantes da radicalização autoritária e racista do Estado nos últimos anos”.

Trata-se de um autoritarismo estrutural que está no cerne do declínio do Ocidente, que é paralelo à arrogância de suas elites, que caíram no que Todd chama de “niilismo”, caracterizado por ele como uma pulsão de destruição que não consegue ver a realidade. “O niilismo tende irresistivelmente a destruir a própria noção de verdade, a proibir qualquer descrição razoável do mundo”, conclui o historiador francês.

Boa parte de seu trabalho visa explicar que a evaporação do “substrato religioso” nas potências do Norte (particularmente, o catolicismo) está na base desta perda de toda a moralidade, que leva ao niilismo. No final de seu livro, o genocídio em Gaza o leva a concluir “a preferência de Washington pela violência” e descreve a sua rejeição à trégua votada pela maioria dos membros das Nações Unidas como niilista, porque “rejeita a moral comum da humanidade”.

É aqui que aparece, em toda a sua dureza, a inércia das forças de esquerda: embora a democracia já não exista, minada pela oligarquia de massas, e tampouco o Estado-nação, sequestrado pelo 1% mais rico, continuam participando das liturgias democráticas, mesmo sabendo que não poderão ter êxito porque os pressupostos em que se baseiam não existem mais. “A inércia é uma das grandes artesãs da história”, dizia o historiador Fernand Braudel.

Cabe perguntar por que a esquerda não pode mudar a sua cultura política. Em grande medida, pelas mesmas razões que estão levando o Ocidente à bancarrota: não só porque é dirigida por esse setor de privilegiados que Todd chama de “oligarquia”, mas talvez porque padece o mesmo problema das elites, incapaz de reconhecer a realidade tal como ela é.

 

•        A elitização da esquerda. Por Raúl Zibechi

A esquerda surgiu dois séculos atrás como representação das classes oprimidas na luta contra o sistema capitalista. Nas diversas vertentes desta corrente, das inspiradas em Marx às seguidoras de Bakunin ou de Jesus Cristo, não se tratava de remendar o sistema, mas de superá-lo, na convicção de que os remendos não podem acabar com os sofrimentos das pessoas oprimidas, mas estendê-los até a eternidade.

Com o tempo, o surgimento da esquerda foi sendo normalizado, apareceram vertentes que apostavam em uma sucessão de reformas como o melhor caminho para alcançar a superação do capitalismo, ao passo que outras apostavam na revolução, identificada com a tomada do poder do Estado. Até o início do século passado, todos se propunham a “tomar o céu de assalto” por diferentes caminhos.

Com a Primeira Guerra Mundial, surgiu algo a mais do que diferenças. Quando a esquerda alemã apoiou a “sua” burguesia na carnificina desencadeada na Europa, o golpe foi tão forte que merecia alguma explicação, sobretudo porque uma parte considerável das bases desses partidos apoiava a guinada chauvinista. Lenin e depois outros líderes consideraram que nos países centrais havia surgido, graças à exploração das colônias, uma camada de trabalhadores privilegiados a quem chamou de “aristocracia operária”.

Esse setor estava mais interessado em se acomodar o melhor possível dentro do sistema do que em arriscar seus privilégios para superá-lo, em uma luta que, como já demonstravam os bolcheviques, não seria um mar de rosas.

Um século depois, não é mais uma aristocracia operária que constitui a base social dos partidos de esquerda, mas um quadro mais complexo e, sobretudo, completamente novo.

Entre as forças de esquerda, o debate mais forte acerca deste tema é proposto pela alemã Sara Wagenknecht, que decidiu se separar do Die Linke (A Esquerda) e formar o seu próprio partido. Foi acusada de concordar em alguns aspectos com a ultradireita e de ser pró-Rússia, mas o que interessa é se os seus argumentos se sustentam. Em uma entrevista recente, criticou o conformismo: “Hoje, quem deseja expressar o seu descontentamento contra a política imperante não costuma votar na esquerda, mas na direita”, pois tem sido mais eficaz em abordar as preocupações das pessoas empobrecidas (Público, 07/07/24).

Em sua análise sociológica das pessoas às quais a esquerda se dirige, diz que “faz política pensando em ativistas com formação acadêmica nas grandes cidades e não percebem que estão desprezando os seus antigos eleitores”.

A política alemã lança uma bomba de profundidade quando acusa os partidos dessa tendência de ser liberais de esquerda: “Na classe média acadêmica das grandes cidades, encontramos um ambiente liberal de esquerda que tende a ver os seus próprios privilégios e hábitos de consumo como virtudes morais. As pessoas compram em lojas de produtos naturais, valorizam a linguagem politicamente correta, estão comprometidas com a proteção climática, os refugiados e a diversidade e olham com arrogância para as pessoas que nunca puderam ir à universidade, vivem em ambientes de cidades pequenas ou rurais e precisam lutar com muito mais dificuldades para manter a pouca riqueza que possuem”.

Por sua vez, o historiador Emmanuel Todd argumenta em A derrota do Ocidente que a nova estratificação educacional, com a expansão do ensino superior para 25% da população, criou uma “oligarquia de massas”, ou seja, “gente que vive em sua própria bolha e que se considera superior”. Trata-se de um conceito provocativo, mas talvez adequado para descrever esta nova realidade.

Todd considera que a capacidade de ler e escrever foi o fundamento da democracia, pois alimentava um sentimento de igualdade. No entanto, isto mudou. “O avanço do ensino superior acabou transmitindo a 30 ou 40% de uma geração o sentimento de ser verdadeiramente superiores: uma elite de massas”.

Aqueles que na esquerda afirmam representar o povo, para Todd, “não respeitam mais as pessoas com ensino primário e secundário”, a ponto de considerarem que “os valores das pessoas com ensino superior são os únicos legítimos”.

Esse sentimento de superioridade contradiz o que foram os valores da esquerda no século passado e contrasta com o compromisso que os universitários de esquerda mantiveram por muito tempo.

É evidente que estas são posições polêmicas e impertinentes para muitas pessoas honestas de esquerda. No entanto, penso que é necessário debatermos com profundidade, sem ficarmos paralisados com narrativas que cantam vitórias inexistentes (como está acontecendo agora na França), porque na verdade caminhamos para um abismo humanitário tanto inédito quanto profundo. Prefiro o desconforto da crítica e a autocrítica a um conformismo que revela falta de compromisso.

 

Fonte: Brecha/La Jornada - tradução do Cepat, em IHU

 

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