Privatização das escolas públicas em São
Paulo
O governo de São
Paulo, sob a gestão do governador de extrema-direita Tarcísio de Freitas
(Republicanos), está implementando o projeto “Novas Escolas” através de uma
parceria público-privada (PPP) para construir e “modernizar” 33 unidades
escolares, atendendo 35 mil estudantes dos ensinos fundamental e médio (São
Paulo [2024?]).
O decreto publicado no
último dia 11 de junho concretiza a iniciativa que já vinha sendo noticiada há
tempos e faz parte do pacote de “desestatização”, um dos pilares da gestão de
Tarcísio em São Paulo, junto com a política de segurança pública baseada no
aval para a violência policial, no punitivismo e no populismo penal.
O tema das
privatizações das escolas públicas ganha ainda mais os holofotes da imprensa em
um momento propício em que a ofensiva ultraconservadora de extrema-direita
pauta o debate público. No início de junho, projeto semelhante foi aprovado a
toque de caixa na Assembleia Legislativa do Paraná, mesmo sob os protestos de
professores e estudantes. Vale mencionar também que o plano de privatização das
escolas públicas estaduais do Paraná foi gestado quando Renato Feder, atual
secretário de educação do estado de São Paulo, ocupava a mesma pasta na gestão
do governador Ratinho Júnior (PSD).
Ainda no campo da
educação, outros ataques da extrema-direita vêm se efetivando em São Paulo na
gestão Tarcísio/Feder: substituição de livros didáticos – avaliados e aprovados
pelo Programa Nacional do Livro Didático – por materiais digitais (slides) de qualidade,
no mínimo, duvidosa; utilização de Inteligência Artificial para a confecção dos
materiais digitais; plataformização irrestrita da educação por meio do uso
compulsório de inúmeros aplicativos e recursos digitais tanto para atividades
administrativas quanto para as atividades pedagógicas, afetando profundamente –
e negativamente – o processo de ensino-aprendizagem e o controle do trabalho
docente; a aprovação do programa que institui as escolas cívico-militares no
estado, transferindo para quadros da reserva da Polícia Militar as funções
administrativas e disciplinares das escolas, sob o argumento de que o
desempenho acadêmico dos estudantes das escolas cívico-militares é melhor em
relação ao dos estudantes das escolas convencionais.
• Transferência direta de recursos
públicos para a iniciativa privada
O plano de
privatização das escolas públicas estaduais em São Paulo, que faz parte do
Programa de Parcerias de Investimentos do Estado (PPI-SP), envolve um
investimento de R$2,1 bilhões e prevê a construção, adequação e manutenção
predial das novas escolas, com a promessa de que metade das unidades serão
entregues em dois anos e o restante até janeiro de 2027. A licitação para a
privatização da administração dessas escolas foi autorizada, com concessão
prevista por 25 anos, segundo informações do portal G1.
O projeto prevê que as
empresas concessionárias serão responsáveis pela construção, manutenção,
conservação, gestão e vigilância das unidades, além de outros serviços não
pedagógicos, como limpeza, portaria, monitoramento de câmeras, controle de
acesso, alimentação, jardinagem e controle de pragas. Ou seja, as empresas que
vencerem a licitação receberão do governo do estado grandes montantes de
recursos públicos para realizar a gestão das escolas. O critério de julgamento
da licitação será o menor valor da contraprestação pública máxima a ser paga
pelo governo, com o leilão previsto para o terceiro trimestre e a assinatura do
contrato no final deste ano.
Em tempos de
pós-verdade e de narrativas que suplantam a realidade concreta, faz-se
necessário dizer o óbvio. Empresas privadas objetivam lucro e, como em toda
atividade capitalista, buscam maximizar os seus ganhos. Tendo em vista que a
gestão das escolas não se constitui, necessariamente, como uma atividade
produtiva, isto é, não produz diretamente uma nova mercadoria, a possibilidade
de maximização de lucros reside na redução dos custos de tal forma que o que
elas irão receber do governo do estado seja sempre mais – e quanto mais, melhor
– do que o montante que será investido na construção, manutenção e gestão
administrativa e de zeladoria das escolas.
Em outras palavras,
indiscutivelmente, serão realizados progressivos cortes de gastos em todas
essas atividades de gestão: materiais de baixa qualidade, infraestrutura
mínima, redução de gastos com salários e direitos.
• Separação entre gestão e atividade
pedagógica
O projeto de
privatização das escolas tem como argumento principal centralizar a contratação
para “otimizar” a gestão, reduzir custos e “melhorar a qualidade” dos gastos, o
que permitiria que gestores e professores se concentrem nas atividades
pedagógicas. A proposta é que as atividades pedagógicas continuem, do ponto de
vista formal, sob a responsabilidade da Secretaria da Educação. Parte-se,
portanto, da premissa da separação entre gestão e atividades pedagógicas, como
se pertencentes a universos distintos e não diretamente relacionados.
Desde os anos de 1990,
a onda neoliberal que assolou o mundo após o fim do bloco socialista articulada
à reestruturação produtiva no mundo capitalista, de acordo com Reginaldo de
Moraes (2002) consolidou uma narrativa que buscou descrever e explicar os supostos
problemas do mundo social “politicamente regulado”. No que diz respeito à
reforma dos serviços públicos, essa narrativa defende a supremacia do mercado
como o melhor e mais eficiente mecanismo para alocar recursos, promovendo,
portanto, justiça, igualdade e liberdade.
Nesse sentido, no
âmbito da Nova Gestão Pública, paradigma administrativo que defende a aplicação
direta de práticas de gestão do setor privado na Administração Pública e cujo
objetivo é alcançar maior eficiência, reduzir custos e aumentar a eficácia na prestação
de serviços, compreendendo os cidadãos como clientes e os servidores públicos
como gestores, observamos ao longo dos anos de 1990 e primeira década de 2000,
uma série de reformas do aparelho estatal que logrou consolidar um modelo de
gestão executiva dos serviços públicos pensado de maneira separada e autônoma
das atividades fins.
Assim, vimos ao longo
das últimas décadas um processo acentuado de privatização da gestão dos
serviços públicos, seja no sentido de uma transferência direta da gestão para a
iniciativa privada, seja no sentido da adoção das práticas e valores do mercado
na administração pública, visando uma aparente “profissionalização” da gestão.
Na mesma direção, nota-se a emergência de novos atores que compõem e orientam
as redes de governança pública, como as instituições, fundações e empresas
privadas que não só pautam o debate público como incidem com o peso de fortes
investimentos financeiros na formulação e implementação das políticas públicas.
No campo da educação,
essa segmentação entre gestão escolar e gestão pedagógica vem se intensificando
na medida em que diretores e diretoras de escolas assumem cada vez mais funções
relacionadas à gestão de recursos humanos, verbas, insumos e materiais – vale
dizer, recursos esses cada vez mais escassos – distanciando-os das reflexões e
práticas pedagógicas das escolas (Souza, 2004). Nesse sentido, o projeto de
privatização em curso nos estados de São Paulo e Paraná, reforça essa
distinção, assumindo que a gestão administrativa das escolas se constitui como
um fim em si mesmas.
Na educação, a
“atividade fim” é a própria prática pedagógica. A administração é, portanto,
uma “atividade meio”, necessária para o desenvolvimento da prática educacional.
Desta forma, a gestão não pode ser separada, apartada e autonomizada em relação
à atividade propriamente pedagógica. A condição para o desenvolvimento do modo
de produção capitalista reside justamente na separação entre produtores diretos
e os meios de produção, mas também na separação entre produtores e gestores da
produção. A educação pública, ao sucumbir a essa lógica, dissipa sua dimensão
pública e rende-se aos interesses privados de acumulação de capital.
• Ultraliberalismo como expressão da
ofensiva de extrema-direita
As transformações
econômicas e políticas que atravessaram o mundo globalizado a partir do final
da primeira década do século XXI apontam para um aprofundamento e radicalização
da lógica neoliberal que regeu a economia global desde meados da década de 1980.
Entende-se aqui que o termo neoliberalismo passa a ser insuficiente e
anacrônico para dar conta das complexidades do mundo contemporâneo, sobretudo a
partir da crise de 2008.
Além disso, o uso do
termo neoliberalismo passou a ser usado de forma difusa e confusa incorrendo
muitas vezes no esvaziamento do seu significado. Nesse sentido, é necessário
acionarmos categorias e conceitos que apontem com precisão para o processo em curso
na economia global. Desta forma, o argumento de Miranda (2020) defende que o
uso do termo “ultraliberalismo” é mais adequado pois enquanto o prefixo “neo”
sugere uma novidade temporal – e o neoliberalismo já está em voga há algumas
décadas e já não se apresenta mais como novidade – o prefixo “ultra” destaca a
radicalização dos preceitos do liberalismo clássico e do próprio
neoliberalismo.
Assim, o
ultraliberalismo não representa uma nova era, mas uma intensificação das
práticas capitalistas de exploração e expropriação da classe trabalhadora e de
aprofundamento da ideologia de redução do Estado e de transferência de toda a
gestão pública para a iniciativa privada.
Nesse sentido, quando
se observa o processo explícito e escancarado de privatização das escolas
públicas, é nítido o aprofundamento e radicalização daquilo que já vinha sendo
implementado desde o final do século XX. Enquanto a Nova Gestão Pública, instrumento
ideológico do neoliberalismo dos anos 1990 e 2000, forçou a permeabilidade da
lógica do mercado no coração da administração pública, do estado e dos serviços
públicos, o momento atual aponta para uma transferência direta desta gestão
para a iniciativa privada em setores, até então, relativamente protegidos dessa
ofensiva.
Se a reforma
gerencialista do Estado não hesitou em vender empresas estatais estratégicas,
como as de telefonia, mineração e bancos, alguns serviços públicos, graças à
resistência oferecida pelos movimentos sociais, especialmente no campo da saúde
e da educação, não permitiram o entreguismo privatista às custas do
sucateamento de tais serviços.
No entanto, o avanço
da extrema-direita em todo o mundo e, em especial, no Brasil, sobretudo a
partir do golpe contra Dilma Rousseff em 2016, impôs aos movimentos sociais,
sindicatos, partidos políticos e outras formas de organização da classe
trabalhadora, um cenário defensivo e de baixa, ou quase nenhuma, capacidade de
resistência.
Resta-nos, agora,
analisar a conjuntura dessa quadra da história e compreender o papel das forças
progressistas, democráticas e da esquerda radical no confronto direto a essa
ofensiva ultraliberal da extrema-direita. Como convocou Franz Fanon: “cada geração
tem que descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la” (Fanon, 2022, p. 207).
À nossa geração coube
fazer esse enfrentamento que começa no nível mais basal da realidade,
desfascistizando as relações cotidianas e criando todas as barreiras
necessárias para o avanço das políticas privatizantes.
Fonte: Por Ricardo
Normanha, no Blog da Boitempo
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