sábado, 27 de julho de 2024

Prevenção como protagonista na medicina do futuro: envelhecimento populacional exige novo olhar para o cuidado

Adoção de hábitos saudáveis e imunização são elementos essenciais para uma abordagem preventiva de olho na longevidade com qualidade de vida. Isso inclui o incentivo e a criação de oportunidades para uma boa nutrição, prática de atividades físicas, acesso equitativo à saúde, imunização, redução do consumo de álcool e do tabagismo. Com a tendência de uma população mais longeva – fenômeno que se tornou global e não restrito aos países desenvolvidos – a abordagem preventiva está cada vez mais no centro do debate para fomentar a qualidade de vida ao longo da jornada.

Hoje, quase 40 anos depois, a virada da lógica de uma saúde baseada na reatividade para a prevenção ainda enfrenta desafios para se tornar realidade, segundo os especialistas ouvidos nesta reportagem: a falta de ênfase em práticas preventivas na formação de profissionais de saúde, políticas públicas de saúde mais efetivas e poucos esforços no letramento em saúde da própria população são alguns deles.

Esse último item conversa com a ideia de que o paciente deve estar no centro do cuidado, tendo voz ativa e participação no cuidado com a sua saúde, enquanto o médico assume um lugar de parceria e mentoria. O letramento em saúde se refere à capacidade de uma pessoa compreender, interpretar e usar informações relacionadas para tomar decisões informadas sobre cuidados pessoais e bem-estar – de acordo com o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), que atualizou a definição em 2020.

“Hoje, o paciente espera sair da consulta com uma prescrição de medicamentos, ele já está educado para isso. Se o profissional fizer uma recomendação de atividade física, ele vai estranhar”, afirma Alexandre Kalache, médico epidemiologista e presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil (ILC-Brasil). “Essa é uma cultura inapropriada, porque somos uma nação que está envelhecendo rápido e pessoas que envelhecem têm um risco mais alto de desenvolver doenças crônicas que não são curáveis, mas sim que necessitam de cuidados.”

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2010 e 2022 o número de pessoas com 65 anos ou mais no país aumentou 57,4% – um total de mais de 22 milhões de brasileiros. Para que a adoção de práticas de promoção de saúde seja bem-sucedida, o paciente precisa compreender que embora alguns dos ganhos não sejam imediatos, é essa manutenção de hábitos saudáveis a longo prazo que vai lhe permitir um envelhecimento sadio. É o que aponta Maisa Kairalla, médica geriatra e presidente da Comissão de Vacinação da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG):

“É preciso pensar que começamos a envelhecer quando nascemos. E isso é uma dificuldade para as pessoas, que tendem a ser imediatistas e não têm um planejamento a longo prazo. A impressão é de que a cada geração, esse imediatismo aumenta, então precisamos começar a trabalhar isso.”

•        Hábitos saudáveis como aliados no envelhecimento

Kairalla reforça que a prevenção é um conjunto que “inclui a prática de atividade física, alimentação, qualidade de sono, relações sociais e o controle de fatores de risco”. Neste contexto, as chamadas Blue Zones – termo dado para as cidades ou regiões que possuem grandes populações idosas e que se adaptam para promover um ambiente acolhedor para essas pessoas – ganharam destaque nos últimos anos justamente por fomentarem essas características. Um estudo5 publicado no periódico científico GeroScience, da Associação Americana de Envelhecimento (AGE, na sigla em inglês), realizado nas Blue Zones revelou, por exemplo, que o hábito de caminhar está relacionado a uma redução nos riscos de desenvolver doenças cardiovasculares e cerebrovasculares, diabetes tipo 2, comprometimento cognitivo e demência, além de melhorar o bem-estar mental, o sono e a longevidade.

Em contraste, de acordo com um levantamento feito por pesquisadores do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com instituições dos Estados Unidos e Noruega, cerca de 26% dos idosos avaliados no estudo não praticam qualquer tipo de atividade física no tempo livre.

Outro ponto de destaque nessa equação de prevenção e qualidade de vida é a nutrição. O consumo excessivo de alimentos ultraprocessados e ricos em gorduras, açúcares e sódio tem sido associado ao risco de desenvolver condições como hipertensão, obesidade, doenças cardiovasculares, diabetes e câncer – como destacou um artigo publicado na Nutrients em 2020.

Uma das metas do Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas e Agravos Não Transmissíveis no Brasil, 2021-2030 (Plano de Dant), do Ministério da Saúde, é o aumento do consumo recomendado de frutas e hortaliças. A iniciativa conta com sugestões para ampliar a disponibilidade e o acesso a alimentos como frutas e legumes, a elaboração de materiais de comunicação que incentivam a adoção de uma dieta saudável e o estímulo à produção de alimentos de bases orgânicas e agroecológicos em ambientes urbanos e rurais.

Kalache lembra, contudo, que o país precisa de ações não só para uma alimentação saudável, mas para garantir a segurança alimentar como estratégia de saúde: “Depois da vacina, a segunda coisa para se manter saudável é uma boa nutrição, e atualmente temos 12% dos brasileiros passando fome e 56% em instabilidade alimentar, que é aquela pessoa que não sabe se terá acesso aos melhores alimentos em termos de valor nutricional por questões de poder aquisitivo.”

•        Imunização como protagonista

A imunização é outro elemento que compõe o rol de ações para um envelhecimento com qualidade de vida, como lembra Kairalla: “É uma das causadoras dessa transformação demográfica no Brasil e no mundo, junto com o saneamento básico e os antibióticos.”

Historicamente ela tem uma relação estreita com o aumento da expectativa de vida e a longevidade: no Brasil, entre 1940 e 1998, a expectativa de vida ao nascer saltou cerca de 30 anos, principalmente em razão da redução de óbitos por doenças infecciosas preveníveis por vacinas, como destaca a Sociedade Brasileira de Imunização (SBIM).

Apesar de a vacinação ainda ser muito associada à infância, o calendário de imunização contempla todas as fases da vida, com vacinas recomendadas para cada faixa etária. Além da proteção direta na infância, fase adulta e no envelhecimento, há ainda o benefício da proteção coletiva – quando a sociedade mantém altas taxas de vacinação, a incidência de doenças preveníveis tende a diminuir.

Na fase idosa especificamente, há ainda a imunossenescência, processo natural de envelhecimento do sistema imune. Neste sentido, ao receber os imunizantes ao longo da vida, o indivíduo tem mais chances de envelhecer com um sistema imunológico fortalecido e ao mesmo tempo ter evitado adquirir doenças. Da mesma forma, tomar as doses recomendadas após os 60 anos contribui para evitar novas infecções, que podem se manifestar de maneira mais agressiva com idades mais avançadas.

Kairalla explica que as doenças de maior risco para os idosos são as infecções respiratórias virais e bacterianas, como o Vírus Sincicial Respiratório (VSR), as pneumonias, o Herpes Zoster e, agora, a Covid. “O Zoster é uma doença que causa muita morbidade, porque o paciente tem uma piora de qualidade de vida extensa e por muito tempo”, lembra.

A vacinação de adultos e idosos têm como desafios questões de acesso e hesitação – que têm sido alvo de campanhas de conscientização do Ministério da Saúde e de sociedades de saúde nos últimos anos. Segundo Kalache, parte da mudança desta realidade passa pelo letramento dos próprios profissionais de saúde: “Os médicos ainda entendem que vacina é coisa para criança, eles não estão se atentando para o fato de que as vacinas para o idoso vão muito além da gripe. Então, existe a necessidade de uma educação tanto do profissional da saúde quanto da população em geral.”

Para ele, é preciso uma abordagem que faça uso das oportunidades do dia a dia, como incluir perguntas sobre imunização nas consultas de rotina. “Você tem uma pessoa idosa que vai ao médico para medir a pressão, medir a glicemia. E aí o profissional de saúde, seja o médico, o enfermeiro ou outro membro da equipe multidisciplinar, aproveita para perguntar se a carteira vacinal está em dia. Um estudo mostrou que perguntas-chaves como essa aumentam em até 40% a chance do paciente adulto de tomar a vacina. Isso deve estar no nosso radar”, completa.

•        Desafios desde a formação

Esse desafio de capacitação dos profissionais de saúde começa ainda na formação, segundo Kalache. E não apenas para a imunização, mas para a abordagem da prevenção. A dificuldade de estabelecer esse modelo de medicina preventiva é uma questão histórica:

“Isso começa ainda na formação dos profissionais de saúde, que é toda voltada para o curar e não para o cuidado. Não há ênfase no aprendizado da prevenção. Em segundo lugar, a prevenção também não é valorizada pelos atuais modelos de remuneração, tanto no setor público, quanto no privado. Você ainda não é recompensado por prevenir, então se corre atrás daquilo que vai pagar, que vai trazer um retorno financeiro.”

Embora o ensino da promoção de saúde esteja contemplado como obrigatório nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de Medicina, por exemplo, a disciplina e os aprendizados relacionados às práticas preventivas costumam ficar em segundo plano.

“Para que o envelhecimento seja sustentável no país, a gente precisa começar a falar de prevenção. Aquela história de que prevenir é melhor do que remediar é mais do que nunca essencial. E isso não tem acontecido nas escolas médicas, na formação dos profissionais de saúde como um todo”, aponta Maisa Kairalla.

Para ambos os especialistas, o Brasil ainda não está preparado para lidar com as demandas que devem surgir com o envelhecimento da população e a prioridade deve ser olhar para as estratégias de prevenção com mais atenção e colaborações intersetoriais que incluam o governo, as instituições de saúde e outros atores sociais.

Segundo Kalache, o papel da mudança na própria prática clínica nesse futuro exige uma alteração cultural. “Temos que dar mais tempo ao profissional da saúde para que ele possa exercer essa sua função de educador de promotor da saúde. A promoção da saúde e a prevenção de doenças é mudar a chave e desenvolver uma cultura do cuidado”, conclui.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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