quarta-feira, 3 de julho de 2024

O PREÇO DA DIGNIDADE: Manter trabalhador em situação análoga à escravidão custa apenas R$ 4.115,89 a escravocrata

Em 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego encontrou 3.190 pessoas em condições análogas à escravidão em todos os estados do país. Os empregadores flagrados pagaram R$ 12,8 milhões aos trabalhadores. Ao todo, no ano, foram 707 operações realizadas para coibir esse crime, sendo que em 345 houve flagrante de trabalho escravo.  Esses dados foram anunciados como um recorde do estado – e são mesmo. Desde 2009, o Brasil não resgatava tantas pessoas submetidas à escravidão contemporânea. Mas, por trás dos números superlativos, há um resultado degradante: ainda sai barato escravizar no Brasil.

No ano passado, os empregadores flagrados pagaram uma média de R$ 4.115,89 por pessoa escravizada em verbas rescisórias. Isso equivale a pouco mais de três salários mínimos.  Um valor muito baixo para quem cometeu uma violação de direitos humanos, um crime que vai muito além da esfera trabalhista – e sequer dá conta do que o trabalhador perdeu durante o tempo de serviço. 

Desde 1995, quando o governo brasileiro criou grupos móveis de fiscalização de combate ao trabalho escravo, 63.516 trabalhadores foram retirados de condições análogas à escravidão. E os empregadores pagaram um total de R$ 146.196.587,83 em verbas rescisórias no momento da fiscalização, de acordo com os dados do Ministério do Trabalho e Emprego. Os valores das rescisões estão disponíveis no site do MTE desde 2000, quando o salário mínimo valia R$ 151. As quantias dos anos anteriores não estão disponíveis. 

Atualizando os dados de cada ano pela inflação, os empregadores teriam pago o equivalente a R$ 321 milhões desde o início. Isso dá uma média de R$ 5.736,82 – 4,3 salários mínimos – por trabalhador no período. Além das verbas rescisórias, os trabalhadores resgatados têm direito a três parcelas de seguro-desemprego, pagos pelo Ministério do Trabalho, no valor de um salário mínimo. “Por que esses trabalhadores têm que ter como base dos seus direitos um salário mínimo?”, questiona Gildásio Silva Meireles. Ele foi submetido a condições degradantes de trabalho em uma fazenda no Maranhão, em 2005. 

Hoje, trabalha com vítimas de trabalho escravo no Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia, no Maranhão, e não vê a situação melhorar. Muitos trabalhadores acabam sendo resgatados pela fiscalização mais de uma vez porque a situação após o flagrante não muda.  “O que o trabalhador ganha não é o suficiente para sustentar a família durante muito tempo e, como geralmente ele não tem uma profissão [fixa], ele se submete novamente ao risco de ser escravizado”, explica. Os empregadores, além disso, não são penalizados e voltam a cometer o mesmo crime. “Eles pagam uma multa pequena, ficam com o nome na justiça durante muitos anos esperando o julgamento, enquanto isso não acontece e ele continua agindo da mesma maneira”, relata Meireles.  

·        Água suja com fezes de animais e alimentação escassa 

A agropecuária é a atividade econômica com mais casos de resgate de trabalhadores –, com 27% do total, segundo os dados do MTE. Era essa a atividade da propriedade em que Meireles foi resgatado.   Meireles contou ao Intercept que, na fazenda, a água que ele e seus colegas bebiam era a mesma que o gado, os porcos e outros animais consumiam. “É aquela água de igarapé, e desce todas as fezes e sujeira dos animais. O trabalhador tinha que coar a água para beber e para cozinhar”. Pela manhã, era servido um café puro e, às vezes, com farinha de puba, extraída da mandioca. No almoço era só arroz com feijão. “Se o trabalhador tivesse sorte, ele achava alguma caça no meio do mato e fazia o preparo para se alimentar”, lembra.

Meireles prefere não revelar o nome da propriedade e do empregador que o submeteu a condições análogas à escravidão por medo de represálias. Ele e outros empregados faziam a limpeza manual do pasto, o chamado “roço de juquira”.  “Era eu e mais 15 pessoas. Fiquei cinco meses trabalhando e resolvi denunciar a situação. Lá tinha pessoas que estavam há dois, três e até cinco anos, e não conseguiam sair”, relata.  Para escapar da fazenda e fazer a denúncia, Meireles se articulou com alguns trabalhadores e conseguiu levantar dinheiro para fugir, em um momento de distração na fazenda. Percorreu 230 km do município de Santa Luzia, onde ficava a propriedade, até o Centro de Defesa dos Direitos Humanos em Açailândia. Chegando lá, esperou até que um grupo móvel de fiscalização do MTE aparecesse. “Só que passaram-se 30 dias e o grupo móvel não apareceu e eu fiquei preocupado com a situação dos companheiros que tinham ficado na fazenda”, conta. Então, decidiu voltar. “Eu inventei que tinha ido para lá encontrar uma moça e fiquei na casa dela durante 30 dias. Eu fui muito pressionado e ameaçado”.

Mais 30 dias se passaram e a fiscalização não apareceu, então Meireles decidiu fugir novamente para reforçar a denúncia. A fiscalização ainda demorou mais três meses para ir até a fazenda e resgatar o grupo de trabalhadores.  No final das contas, o fazendeiro não foi preso e os trabalhadores receberam só as verbas rescisórias. “Eu entrei com um processo por danos morais em 2005 que só saiu no ano passado, recebi um valor baixo, mas aceitei pela precisão que estava passando no momento”, lamenta. Os outros trabalhadores do grupo não entraram na Justiça Trabalhista.

Após a ação, Meireles decidiu trabalhar no Centro de Direitos Humanos que o ajudou. “Eu decidi lutar com todas as minhas forças para combater o trabalho escravo. Hoje em dia eu faço treinamentos, formações com os trabalhadores. Eu também tenho acompanhado alguns trabalhadores que foram resgatados”.

Vale reforçar que trabalho escravo não é uma mera infração trabalhista, como a bancada ruralista e o ex-presidente Jair Bolsonaro costumam defender.  O crime está previsto no art. 149 do Código Penal e define trabalho análogo ao escravo como aquele em que as pessoas são submetidas a jornadas exaustivas, a trabalhos forçados, condições degradantes e são impedidas de deixar o local de trabalho por conta de dívida contraída com empregador ou por ameaça e coerção.  A lei prevê pena de reclusão por dois a oito anos e multa, além da pena correspondente por violência. Dificilmente, porém, são aplicadas penas mais duras do que a cobrança de verbas rescisórias. 

·        Por que as verbas rescisórias são baixas?

Conversamos com Lucas Reis, auditor fiscal do trabalho que atua nas fiscalizações de combate ao trabalho escravo, para entender por que esses valores pagos aos trabalhadores são tão baixos.  “As verbas rescisórias são todos os direitos que o trabalhador teria se tivesse sido contratado regularmente desde o início do trabalho”, ele explica. Isto é, salário de acordo com piso da categoria, décimo-terceiro, férias, horas extras. Esse valor é calculado pelos auditores fiscais do trabalho no momento do resgate. “O valor acaba sendo baixo porque, infelizmente, os direitos dos trabalhadores no geral são poucos. Eu defendo que os direitos deveriam ser ampliados, principalmente, em caso de resgate de trabalho escravo”, opina o auditor. 

A fiscalização do Trabalho também aplica multas referentes aos autos de infração por cada descumprimento da legislação.  Mas o valor é irrisório. No caso de flagrante de trabalho infantil, por exemplo, a multa vai de R$ 416,18 por “menor” até o máximo de R$ 2.080,90. Em 2023, foram 2.564 crianças e adolescentes retirados do trabalho infantil. Questionamos o MTE quanto foi pago de rescisões para cada uma. O órgão afirmou que “não possui banco de dados com informações referentes a valores totais pagos em verbas rescisórias”. 

Uma verba indenizatória pode ser paga via dano moral individual proposto pelo Ministério Público do Trabalho, seja por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta ou via ação civil pública. Porém, isso não acontece em todos os casos e os valores variam muito. Cada procurador analisa de acordo com a gravidade da situação encontrada pela fiscalização. De acordo com a assessoria de comunicação do Ministério Público do Trabalho, o MPT, em 254 fiscalizações realizadas com a participação do órgão em 2023, foram arrecadados R$ 14,31 milhões em danos morais coletivos e R$ 8,7 milhões em danos morais individuais. O MPT não participa de todas as ações de fiscalização do Ministério do Trabalho, por isso os números são menores. Não tivemos acesso à quantidade de trabalhadores resgatados nessas operações para saber qual foi a média que cada um recebeu por dano moral.

<><> RELEMBRE: (reportagem publicada pelo The Intercept em 3 de abril de 2023)

¨      O QUE ESCREVEM DESEMBARGADORES E JUÍZES AO INOCENTAR ESCRAVoCRATAS ACUSADOS DE TRABALHO ESCRAVO

HÁ QUASE 18 ANOS, uma operação de auditores fiscais do trabalho resgatou 43 pessoas da fazenda de Marcos Nogueira Dias, o Marcão do Boi, na zona rural de Abel Figueiredo, no Pará. O fazendeiro era conhecido como um dos mais ricos do sudeste do estado. Segundo a denúncia do Ministério Público Federal, o MPF, os trabalhadores bebiam água fétida, comiam carne podre de vacas que morriam no parto, não tinham salário e recebiam bebida alcoólica como pagamento. Eles também tinham que comprar produtos de higiene superfaturados do patrão e eram submetidos a jornadas exaustivas “em sol escaldante”, inclusive nos feriados e fins de semana.  Era evidente a condição de trabalho degradante e análoga à escravidão, de acordo com o MPF. Mas, para o desembargador Olindo Menezes, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o TRF-1, essas circunstâncias não eram degradantes, mas apenas comuns ao trabalho rural, que tem “o desconforto típico da sua execução, quase sempre braçal”, e não se caracterizavam como algo que “rebaixa o trabalhador na sua condição humana”.  Seus argumentos convenceram os outros desembargadores da 4ª turma do TRF-1 a absolver Marcão do Boi em 2019. Ele chegou a ser condenado a cinco anos de prisão pela Vara Federal de Marabá. O juiz Fábio Ramiro, relator convocado que analisou o recurso na segunda instância, propôs aumento da pena para seis anos, mas o voto do desembargador Menezes mudou o rumo do processo. 

Ele alegou que o caso deveria ser melhor analisado, pois muitas denúncias de condições análogas à escravidão tinham como base apenas os levantamentos feitos pelos fiscais do Ministério do Trabalho, que “são muito ardorosos e, normalmente, feitos por pessoas que não têm a menor noção do que é um trabalho no meio rural. Os exageros, em muitos casos, são evidentes”, justificou, pedindo mais tempo para decidir seu voto.

Quando se manifestou, alguns meses depois, o desembargador Menezes votou pela absolvição de Marcão do Boi. Para o magistrado, as denúncias mencionadas na sentença, como os alojamentos insalubres, a falta de água potável, a comida podre “devem ser vistos dentro da realidade rural brasileira”, em que os patrões “não raro” também se submeteriam a tais condições, na visão de Menezes. O fazendeiro, contudo, já havia informado que só ia ao local onde os trabalhadores estavam “a cada trinta ou sessenta dias”. Era a sua defesa para alegar não ter conhecimento das condições precárias.  Muitos operadores do direito, argumentou ainda o desembargador, “se contentam com os desconfortos mais comuns do trabalho rural para dar por configurado o trabalho análogo ao de escravo” quando seriam na verdade situações “comuns na realidade rústica brasileira” sem “gravidade intensa que implique a submissão dos trabalhadores a constrangimentos econômicos e morais inaceitáveis”. Marcão do Boi morreu em 2021, executado por pistoleiros, sem nunca ter sido preso pelo caso. 

Argumentos assim são recorrentes nas manifestações do desembargador. Encontrei ao menos outros quatro processos em que o magistrado votou pela absolvição do acusado, relativizando a denúncia por conta do lugar ou do tipo de trabalho realizado. As condições no meio rural, como em carvoarias ou em fazendas de café, segundo ele, são “duras pela própria natureza da atividade” e, por isso, não devem ser confundidas com trabalho análogo à escravidão.  “A condenação somente se justifica em casos graves e extremos, sem razoabilidade, quando a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, alçando-se a níveis gritantes”. 

Não era o caso de trabalhadores de uma carvoaria submetidos pelo acusado a exaustivas 12 horas diárias de trabalho. Na interpretação de Menezes, tratava-se apenas de uma jornada “um pouco acima daquela prevista em lei, e realizada como forma de aumentar a produtividade”, como afirmou em um processo de 2013.  Em processo de 2011, como os trabalhadores ficaram poucos dias submetidos à situação degradante justamente pela ação de resgate do Ministério Público do Trabalho, o desembargador minimizou a denúncia. No entendimento dele, como os trabalhadores ficaram menos de 30 dias nas condições descritas na denúncia, não havia justificativa para “imputação de trabalho escravo”.  Menezes ainda considerou favorável aos trabalhadores quando o empregador deixou de pagar R$ 40 por cada alqueire roçado – uma medida que, no Pará, equivale a cerca de 2,5 campos de futebol – para pagar R$ 25 a diária. Segundo o magistrado, o acusado teria constatado que levaria vários dias para executar o trabalho e entrou em acordo com relação ao novo valor. “O que parece ter constituído um benefício para os trabalhadores e não um malefício, como quer fazer parecer a acusação”.

Considerando apenas o salário bruto, o magistrado ganha quase R$ 1,2 mil por dia, inclusive quando não trabalha, como em feriados e fins de semana. Seu salário mensal fixo é de R$ 35,4 mil, mas devido a algumas gratificações e benefícios como auxílio alimentação, nesse mês de março, ele recebeu, já com os descontos, R$ 37,4 mil.  Procuramos o desembargador Menezes por meio da assessoria de imprensa do TRF-1 e informamos os números de todos os processos analisados, bem como os trechos que destacamos nesta reportagem, para que ele pudesse se manifestar. O magistrado, contudo, não respondeu a nenhum dos seis questionamentos. Vale ressaltar que, juridicamente, não existe a figura do trabalho escravo, mas sim a do trabalho em condições análogas à escravidão, já que, a nível oficial, a escravidão acabou com a Lei Áurea, em 1888. No entanto, o Intercept tomou a decisão de usar a expressão, entendendo que a imposição de um regime de trabalho degradante, com jornadas exaustivas e sem o devido pagamento salarial não pode ser chamada de outra forma, senão de trabalho escravo.

·        A culpa é da vítima 

Segundo Lívia Miraglia, coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, a falta de sensibilidade com processos como esses se explica porque o Judiciário é majoritariamente elitista, branco e masculino.  “As pessoas que trabalham nesse poder estão muito distantes da realidade dos brasileiros que são submetidos à condição de trabalho análoga à escravidão. Há um espelhamento maior do Judiciário com os empregadores julgados do que com os trabalhadores”. 

A clínica coordenada por Miraglia, junto com o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, também da UFMG, traçou um raio-x das ações judiciais de trabalho escravo. O levantamento de quase 1.900 ações iniciadas entre 2008 e 2019 constatou que o TRF-1 é o tribunal federal que mais absolve os acusados de trabalho análogo à escravidão na segunda instância – apenas 0,48% deles foram condenados. Dos 293 empregadores condenados por juízes da primeira instância, o tribunal absolveu 254, o equivalente a 86,7%. 

Abrangendo os estados da Amazônia Legal, um área de intenso conflito agrário, o TRF-1 tem o maior número de acusados por trabalho análogo à escravidão – 1.943, quase sete vezes mais que a quantidade de acusados no TRF-3, que aparece em segundo lugar. Já o Pará, estado de Marcão do Boi, tem o maior número de empregadores incluídos na lista suja do trabalho escravo – 152 pessoas. A impunidade, segundo Miraglia, leva os empregadores a concluírem que compensa submeter pessoas à situação degradante. “A falta de punição impede a perspectiva de mudar esse cenário no presente e no futuro, porque o crime continuará sendo praticado”.  O próprio fazendeiro Marcos Nogueira Dias entrou na lista duas vezes quando estava vivo. Três anos depois dos 43 trabalhadores serem resgatados em Abel Figueiredo, 11 pessoas foram libertadas em outra fazenda dele, dessa vez localizada em Rondon do Pará. 

Mapeei ao menos 17 processos em que magistrados do TRF-1 absolveram acusados de submeter pessoas a trabalho escravo em suas decisões. Oito deles têm manifestação do desembargador Menezes, mas também aparecem na lista outros nomes, como o do juiz Leão Aparecido Alves, que atuou como relator convocado em alguns processos em segunda instância – para ele, a solução do problema, nesses casos, parece caber às vítimas. Em uma ação de 2009, ele votou pela absolvição do réu porque, entre outros argumentos, não foi apresentado teste para comprovar que a água era imprópria para consumo. Além disso, escreveu que “os trabalhadores não estavam impedidos de ferver a água a ser por eles consumida”. 

Em outro processo, de 2011, ele concordou com a decisão do juiz de primeira instância que absolveu o réu. Para os magistrados, o trabalho degradante e a jornada exaustiva só indicam que o trabalhador foi submetido à condição análoga à escravidão se ele for vítima de violência ou efetivamente privado de liberdade por meio de agressões ou ameaças. De outra forma, é livre para “abandonar o local e buscar melhores condições de trabalho”.

Procurado por meio da assessoria da justiça federal de Goiás, o juiz Alves respondeu que seu voto foi acompanhado nos dois processos, por unanimidade, pelos demais integrantes da Terceira Turma do TRF-1, resultando em decisões unânimes. Com relação ao processo de 2009, ele argumentou, entre outras coisas, que os trabalhadores “nunca foram constrangidos ou ameaçados e não se consideravam escravos” e que “os tribunais têm decidido que o simples descumprimento de normas de proteção ao trabalho não é conducente a se concluir pela configuração do trabalho escravo”. Sobre o processo de 2011, ele disse que as testemunhas não relataram “o uso de violência contra os trabalhadores pelo empregador ou prepostos ou a presença de segurança armada na fazenda, tampouco noticiaram a existência de servidão por dívida ou o impedimento de deslocamento dos trabalhadores”. O magistrado acrescentou ainda que “condena quando há prova acima de dúvida razoável, e, em sentido oposto, absolve quando inexistem provas aptas a expurgar a dúvida razoável”.

Existe, de fato, um entendimento consolidado no meio jurídico de que o trabalho escravo se caracteriza pela privação de liberdade por meio de violência para forçar a permanência da vítima contra a sua vontade. A falta de provas de que as pessoas se sentiam como escravas, aliás, é um dos argumentos que se repetem para absolver os réus em todos os tribunais, de acordo com levantamento de que Miraglia participou. Nas 26 decisões analisadas, os magistrados alegaram que o consentimento da vítima afastaria o delito praticado. Para a pesquisadora, esse entendimento só comprova quão distantes desembargadores e juízes estão da realidade de um trabalhador, por estranharem que ele não abandone o local de trabalho quando se percebe explorado ou, ainda, que não tenha ciência do crime a que é submetido. “Parece uma situação fácil de ser resolvida. Se não está bom, basta ir embora. É o que essas pessoas fazem nas situações que lhes incomodam. Mas, para muitos brasileiros que precisam de qualquer coisa para sobreviver, não é bem assim”.

No seu voto a favor da condenação de Marcão do Boi, o juiz e relator convocado Fábio Ramiro citou a sentença do juiz de primeira instância para caracterizar o trabalho degradante como “aquele que priva o trabalhador de dignidade, que o desconsidera como sujeito de direitos, que o rebaixa e prejudica, e, em face de condições adversas, deteriora sua saúde”. Segundo o magistrado, a coação moral pode ser mais efetiva que a força física para manter a vítima em condição análoga à escravidão, principalmente quando o empregador lhe impõe dívidas, impedindo seu desligamento do serviço.

<><> 112 condenações em mais de 10 anos

De acordo com o raio-x das ações judiciais, as equipes de fiscalização resgataram mais de 20 mil trabalhadores de 2008 a 2019 e mais de 2,6 mil empregadores foram acusados por trabalho análogo à escravidão, mas apenas 112 foram condenados definitivamente – os magistrados absolveram, em primeira instância, quase metade dos acusados por falta de provas. A maior pena de prisão, após o processo transitado em julgado, foi de 11 anos e seis meses. Mesmo assim, há quem afirme em suas decisões que há exagero nas leis trabalhistas. É o caso da desembargadora Cláudia Cristina Cristofani, do TRF-4. Assim como o desembargador Menezes, ela enfraquece as denúncias usando o mesmo argumento de serem características do meio rural. Em um processo de 2013, do qual foi relatora, a magistrada afirmou que as condições de alimentação e alojamento dos trabalhadores eram precárias, “quando considerados os padrões, elevados e irrealistas, requeridos pelas normas trabalhistas” e que “o empregador rural se vê obrigado a reduzir custos, a fim de manter um lucro cada vez menor”. Por isso, disse no seu voto pela absolvição do acusado, não era “razoável dar relevância criminal ao fornecimento de condições de trabalho idênticas às condições de habitat da localidade em que a atividade estava sendo prestada”.  Procurada por meio da assessoria de imprensa do TRF-4, a desembargadora não se manifestou.

Em 2021, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux reconheceu a repercussão geral de um pedido de recurso extraordinário do MPF para debater o acórdão do TRF-1 que absolveu Marcão do Boi. Os procuradores querem o reconhecimento das condições retratadas nos autos como degradantes e afirmam que a absolvição “pode estimular o empregador rural, proprietário de fazenda no interior, a cada vez mais tratar os seus empregados de forma desumana”. O relator do processo no STF é o ministro Edson Fachin, que defende ser “inconstitucional a diferenciação regional dos critérios para caracterização do trabalho como degradante”. 

O procurador-geral da República Augusto Aras concorda com a tese de Fachin. “A efetivação dos princípios da dignidade humana, da erradicação da pobreza e da redução das diferenças econômicas e sociais direciona-se no sentido de proteger o padrão de vida e as condições de trabalho minimamente satisfatórias nas diversas regiões brasileiras, de modo a equalizar a situação do trabalhador em todas as localidades do país”, disse o PGR, em fevereiro de 2022, em sua manifestação no processo. O procurador também recomendou o restabelecimento da sentença de prisão de Marcão do Boi pelo crime previsto no artigo 149 do Código Penal, ou seja, por submeter pessoas a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, sujeitá-las a condições degradantes e à restrição de locomoção. Mas quando tudo isso aconteceu, já era tarde demais para o fazendeiro ser punido pelo rigor da lei.

 

Fonte: Por Bianca Pyl e Marcelo Soares, para The Intercept

 

Nenhum comentário: