O luto sem
fim de famílias de desaparecidos no RS
“Estamos
esperando encontrar mais alguém para fazer o velório do Dorly.”
Assim
Luana Brino, de 23 anos, resume a angústia de quem aguarda há dois meses o
momento de enterrar mais da metade dos parentes, que foram vítimas da maior
catástrofe ambiental da história do Rio Grande do Sul.
Em
uma única tarde, Luana e o marido, Eduardo Brino, de 24 anos, perderam seis
familiares em razão da chuva torrencial que caía desde a véspera.
Três
deles ainda estão desaparecidos: Elírio Brino e sua mulher, Erica, ambos de 78
anos; e Janice, de 49.
Eles
são os três moradores do município de Roca Sales, no Vale do Taquari, a 142 km
de Porto Alegre, que não foram encontrados após temporais e enchentes atingirem
a região.
Os
três não compartilhavam apenas o sobrenome, mas também o endereço em uma
pequena propriedade na localidade de Linha Marechal Hermes, a cerca de 18
quilômetros do centro da cidade, onde a família criava bois e porcos.
Elirio
e Erica viviam com o filho, Dorly, de 58 anos, e com a mulher de Dorly, Janice,
de 49. Também viviam ali as netas do casal idoso e filhas de Dorly e Janice:
Maria Eduarda, 20 anos, e Gabriela, 9 anos.
Dorly
e Janice são pais também de Eduardo, que vivia com Luana no município vizinho
de Muçum.
Elirio,
Erica e Dorly foram vistos pela última vez por volta das 15h30 de 30 de abril.
Nas
semanas seguintes à tragédia, equipes do Corpo de Bombeiros encontraram os
corpos de Dorly, Maria Eduarda e Gabriela.
Maria
Eduarda e Gabriela foram enterradas, mas o corpo de Dorly permanece no
Instituto Médico Legal (IML) na esperança de que seja possível velá-lo em
companhia dos pais e da mulher.
As
buscas pelos desaparecidos prosseguiam até o fechamento desta reportagem.
A
dor da perda de tantos parentes é diariamente agravada pela tentativa frustrada
de localizar os corpos.
“Agora
sou a única pessoa ao lado dele [do marido]”, desabafa Luana à BBC News Brasil.
• Os últimos momentos da família Brino
Para
Luana e Eduardo, a espera é entremeada com lembranças amargas dos últimos
contatos com as vítimas.
Horas
antes de desaparecer, Janice fez várias ligações por celular para Eduardo para
alertá-lo sobre o mau tempo.
“Se
cuida”, dizia.
“Ela
[Janice] ficava ligando de tempo em tempo para saber como nós estávamos”, conta
Luana.
“Moramos
em ponto alto da cidade, a enchente não chega até aqui, mas dizíamos a eles que
a chuva estava muito forte.”
A
família Brino foi soterrada por uma imensa massa de rochas e lama que se
desprendeu de um morro na propriedade, cobrindo tudo que existia nas
imediações.
A
elevação era considerada tão segura que Eduardo e Luana pretendiam construir
uma casa no topo e se mudar para lá para ficar junto com os familiares.
Em
29 de abril, uma segunda-feira, quando soou o primeiro alerta vermelho, Eduardo
esteve no local para deixar uma carga de blocos de concreto destinados à obra.
O
deslizamento, que produziu um estrondo, ocorreu em segundos, de acordo com
vizinhos. Eles tentaram, junto com Dorly e Janice, desentupir uma vala nos
instantes anteriores à tragédia.
A
família não sabe com exatidão o que aconteceu a partir do momento em que um dos
vizinhos, que operava um trator, aconselhou Dorly e Janice a suspender o
trabalho, porque a água já havia chegado à metade da altura da máquina.
“Vamos
ter de abandonar”, teria dito o amigo do casal.
Após
se despedirem, Dorly e Janice começaram a descer o caminho de terra que leva à
casa, onde se encontravam Elirio, Erica, Maria Eduarda e Gabriela.
“Provavelmente,
eles continuaram tentando abrir a vala enquanto desciam”, imagina Luana.
• Quem são as vítimas ainda
desaparecidas
Elírio,
Erica e Janice estão entre as 34 pessoas que continuam desaparecidas após as
enchentes.
O
número é muito menor do que no auge da crise, no dia 10 de maio, quando as autoridades
buscavam 146 pessoas em todo o Estado.
No
Rio Grande do Sul, 179 pessoas perderam a vida por conta da catástrofe, segundo
a Defesa Civil do Estado.
Como
costuma ocorrer em catástrofes dessa proporção, o cômputo de desaparecidos
decresceu à medida que a chuva amainou e os corpos das vítimas foram
localizados.
Assessora
da Defesa Civil, a tenente Sabrina Ribas diz que, a partir de agora, o órgão só
divulgará boletins quando houver alteração nos números.
Antes,
chegaram a ser divulgados três boletins diários com contagem de vítimas.
O
maior número de desaparecidos está em Cruzeiro do Sul, a 124 km de Porto
Alegre, onde autoridades ainda buscam seis moradores — outros 12 habitantes já
foram confirmados entre os mortos no Estado.
Um
bairro inteiro, Passo de Estrela, na divisa com o município de Lajeado, foi
varrido do mapa pela força das águas do rio Taquari, que atingiu a marca
histórica de mais de 33 metros.
Com
23 desaparecidos, o Vale do Taquari, onde estão localizados Roca Sales e
Cruzeiro do Sul, responde por 67,6% dos que ainda estão desaparecidos em razão
da catástrofe.
Também
ainda não foram encontrados moradores de Arroio do Meio (1), Encantado (2),
Estrela (1), Lajeado (1), Marques de Souza (1), Poço das Antas (1), Relvado (1)
e Teutônia (1).
Porto
Alegre, a capital, tem apenas um habitante na lista.
• Até quando vão as buscas?
O
delegado Mario Souza, diretor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa
da Secretaria de Segurança Pública do Estado, afirma que as buscas prosseguirão
até que a ocorrência seja arquivada — seja por meio da localização com vida, se
forem achados os corpos ou restos mortais das vítimas ou da decretação de morte
presumida.
A
legislação brasileira prevê a presunção de morte, entre outras situações,
quando é extremamente provável que alguém em situação de perigo extremo tenha
morrido, mas seus restos não tenham sido localizados.
Nesses
casos, a morte é declarada por decisão judicial, a ser requerida depois de
esgotadas as buscas pelo corpo. A sentença fixa, no caso de morte presumida, a
data provável do óbito.
Desde
o início da tragédia, a principal preocupação do Departamento de Homicídios,
segundo Souza, foi adaptar o trabalho das equipes para fazer frente ao grande
número de registros de pessoas com paradeiro ignorado.
“No
dia 6 de maio, aumentamos a estrutura da busca por desaparecidos de um para
quatro delegados à frente de quatro equipes”, afirma o diretor.
A
partir do momento em que um desaparecimento é informado à Polícia Civil, por
meio de um boletim de ocorrência feito em delegacia especializada – que, desde
maio, também pode ser feito por WhatsApp ou ligação telefônica para o número
0800-642121 –, a investigação passa por distintas etapas.
A
primeira passa pelo contato dos policiais com familiares e amigos. Em um
segundo momento, são realizadas buscas de rotina em sistemas de câmeras, bancos
e bases de dados das polícias. O estágio final são as diligências nas ruas.
“É
um trabalho sensível, complexo, que precisa ser feito com muito cuidado e
abrangência. Às vezes, um desaparecimento pode envolver um crime, um problema
de saúde, uma situação em que a pessoa não quer ser encontrada ou um suicídio”,
diz Souza.
• Tragédias em sequência
O
destino dos Brino exemplifica de forma dramática a participação de Roca Sales
na crise gaúcha.
Afetado
por enchentes por duas vezes em menos de um ano, o município pagou um preço
aproximado em vidas humanas em ambas as ocasiões.
Em
setembro de 2023, Roca Sales registrou 16 mortos e nenhum desaparecido. Oito
meses depois, o cômputo da Defesa Civil do Estado indica que 12 pessoas
pereceram.
Outras
três, os Brino, ainda não foram localizadas. Além da distância no tempo, porém,
há uma diferença entre os dois episódios: enquanto no primeiro a morte veio
pela água, no último impôs-se pela terra.
“Em
setembro, todas as 16 vítimas fatais em Roca Sales morreram por afogamento. Em
maio, todos foram soterrados”, diz o prefeito Amilton Fontana (MDB).
O
Rio Taquari, que banha a região, surpreendeu os moradores em 2023, fazendo com
que este ano os alertas da Defesa Civil em relação a cuidados e evacuações
tenham sido mais rapidamente seguidos.
“A
enchente de maio foi a maior da história. Se as pessoas não tivessem saído, ia
dar muita morte”, afirma.
¨
Lula deveria olhar
para o RS como estratégia: com El Greco e com tudo. Por Tarso Genro
Toda
a região metropolitana e a maior parte do território gaúcho – em maior ou menor
grau – enfrentam a fúria da natureza em rebelião e a presença constante da
morte. Os rios e os arroios querem voltar para os seus cursos imemoriais,
apertados nas suas margens por toneladas de argamassa e tiras de asfalto; as
raízes das árvores não mais conseguem prendê-las nas terras altas; as hortas,
os plantios e as encerras dos animais, são afogadas nas enchentes das novas
catástrofes climáticas.
A
correta decisão do Governo Federal de tratar, em primeiro lugar, da questão
humanitária e iniciar o refinanciamento dos negócios e o financiamento das
obras necessárias para que sejam amortecidos os efeitos da catástrofe, foi e é
correta. E mais ainda: revelou o liberalismo de opereta de grande parte dos
grandes empresários gaúchos, que rapidamente deixaram de lado o seu ódio às
funções públicas do Estado Social e recorreram – alguns até com desaforos e
mentiras – ao Estado, para repor-se no cenário produtivo e comercial do país.
Vai
chegar a hora todavia – acho que em Janeiro de 25 – que a História poderá
cobrar da comunidade política gaúcha e especialmente do Governo Federal, qual o
papel reservado ao nosso Estado nesta brutal tragédia socioambiental, não
somente nas questões humanitárias e de reconstrução, mas também sobre o que ela
ensinou ao Estado brasileiro e ao seu Governo nacional para, a partir do Rio
Grande, não só recuperar o que foi destruído, mas também sobre o que legaremos
para o futuro, como estratégia de construção de um desenvolvimento nacional com
inserção global soberana.
Penso
que é necessário formatar um novo “bloco histórico” para governar o país e
localizo na tragédia que se abateu sobre o Estado essa possiblidade. A do
Estado tornar-se tornar dominante – não acessório – na questão climática global
e reduzir drasticamente o “estoque” de necessidades que acumula a nossa
população. Ela precisa comer melhor, fruir novas fontes de energia alternativa,
educar-se melhor, morar melhor, proteger-se melhor e – a partir de uma nova
concepção de desenvolvimento – distribuir melhor a renda, promover a pesquisa
voltada para novas tecnologias produtivas e induzir – a partir do Estado – uma
construção socioambiental ecologicamente equilibrada.
Tudo
isso já era sabido, mas o que tem de novo é que a tragédia que nos assola nos
dá a oportunidade de reconstruir o Rio Grande e ajudar o Brasil a reerguer-se
do negacionismo estatal e ambiental do bolsonarismo criminoso, ainda instalado
em nosso meio. O olhar de El Greco, desconfiando da eternidade e a genialidade
de Turner, abordando a dramaticidade da luta para controlar a naturalidade,
pode nos dizer muito sobre isso.
A
construção de um modelo socioambiental correto para o Estado, aproveitando as
suas carências e potencialidades também abrirá novos horizontes para o Mercosul
e recolocará o Rio Grande no bloco “paulista-norte-nordestino”, que tem mais
influência sobre os destinos da Federação desde há muitas décadas. Desde a
deposição de João Goulart, aliás, em função do déficit da nossa estrutura
política o Rio Grande tem sido objetivamente subestimado na sua capacidade de
ajudar-se ajudando o Brasil.
A
beleza trágica de um quadro de Turner, que viveu entre 1775-1881, exposto no
Museu Calouste Gulbenkian em Lisboa (um óleo sobre tela nominado “Naufrágio de
um Cargueiro”) pode ilustrar a síntese perfeita de uma – das duas
características – da grande arte pictórica da humanidade. A primeira delas está
nesse quadro de Turner, de 1810, que mostra a luta dos humanos para subordinar
as forças da natureza ao seu desejo de conquista, a partir do que estes, à
época, concebiam como progresso.
No
quadro, a rebelião das ondas, a velocidade cruel dos ventos e as costas
rochosas impassíveis, vencem toda a ciência e toda a técnica, dispostas na
construção do cargueiro que naufragará. O “afastamento” de todas as barreiras
da natureza, para que os humanos imperem sobre ela, controlem as suas regras
insondáveis a olho nu e dominem os seus impulsos, todavia, é uma experiencia de
milênios.
A
racionalidade moderna adaptou esta experiencia, tanto em valores materiais (o
dinheiro, a propriedade) como imateriais (a ciência e a arte) e construiu as
narrativas dos futuros, ora épicos, ora trágicos. Sua “razão”, porém – neste
momento – está exposta como decadência em Porto Alegre, num só monumento de
destruição negacionista e ultraliberal da capital: é o “Muro da Mauá”. O muro é
uma síntese do vírus ideológico da extrema-direita, destrutivo da solidariedade
social e da empatia que, combinado com o ultraliberalismo econômico solapa as
bases de uma coesão social mínima para a construção de um destino comum.
A
precariedade criminosa da sua manutenção é – ela mesma – um totem do
negacionismo climático e as “obras de arte”, nele desenhadas – financiadas
pelos donos da cidade para homenagearem a si mesmos – é a exploração dos
limites entre o grotesco e a idiotia publicitária, através do qual eles querem
– pela força do dinheiro – registrar para o mundo a sua passagem na vida, com
poderes sobre a vida, a morte e a moradia dos habitantes de Porto Alegre.
Na
guerra para dominar a natureza com as virtudes do progresso, nossos empresários
e seus pintores não puderam fazê-lo com uma grande arte, dotada de uma dolorosa
força civilizatória ascendente, como foram – por exemplo – os desenhistas das
Pirâmides egípcias, construídas pelos humanos da época, submetidos à
escravidão. Nem nossas obras físicas foram concebidas como as obras de
irrigação dos Aztecas, que submetiam o fluxo das águas – originárias de fontes
naturais – para fazer uma cuidadosa compensação natural, para os humanos
sobreviverem à escassez e às intempéries pré-colombianas.
Diferente
do aristocrático El Greco, que viveu entre 1541 e 1614) autor do espetacular “O
enterro do Conde de Orgaz” (pintado em 1587) que tratava da dupla dimensão da
vida – uma terrena e factual e a outra celeste e eterna – Turner concebe a
natureza como um inimigo a ser vencido na luta pela sobrevivência.
Em
El Greco, ao contrário, os Santos do céu baixam para receber o Conde, mas ele
parece olhar para a vida eterna com o medo de quem não quer testá-la. Parece
que com seu olhar mortiço, se pudesse, evitaria a morte e não apreciaria subir
da terra para uma eternidade celeste puramente presumida.
O
confronto com a morte e o confronto com a natureza são “valores” sempre
renovados no cotidiano e na História dos humanos, pois não gratuitamente eles
percorreram a História do Renascimento e todas as revoluções posteriores até
chegaram aos nossos dias com os traços mais cruéis e desatinados do
“capitalismo” liberal-rentista: é o ciclo histórico em que o domínio do homem
sobre a natureza e o seu negacionismo climático já se tornaram tão perfeitos
que conquistaram o senso comum na promessa de extinção da Humanidade trocada
pelo progresso infinito.
Ter
a morte coletiva como uma perspectiva previsível e “natural” – já fixada como
um degrau definitivo do futuro – (uma segunda natureza incapaz de ser
contornada por decisões políticas) é uma grande conquista da extrema-direita
global, que se refletiu – aqui em nosso Estado – no monumento-síntese do Muro
Mauá, transformado em outdoor. O descaso com a sua manutenção e a idiotia da
sua “arte”, reverenciando os usufrutuários absolutos da cidade, diz mais do que
as Pirâmides diziam dos Faraós, numa civilização escravista ascendente. Ele, o
Muro, fez transparecer a alma do capital sem freios, devorando o que resta de
solidariedade humana, ao que tudo indica já no ocaso desta forma fraturada de
democracia liberal.
Fonte:
BBC News Brasil/Sul 21
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