Jeferson Miola: A encruzilhada do governo -
entre o programa eleito ou a armadilha do arcabouço
Em evento no Rio uma
semana antes da votação do primeiro turno [25/9/2022], Lula repetiu a pregação
feita durante toda a campanha: “Acabou o teto de gastos quando eu for
presidente da República. Não é porque eu quero gastar de forma irresponsável. O
Brasil está precisando de um presidente arrojado que tome atitude de voltar a
investir em infraestrutura rapidamente”.
Nos discursos no dia
da posse no Parlatório do Planalto e no Congresso [1/1/2023], Lula disse que o
SUS, a educação, os investimentos em áreas sociais, na infra-estrutura e no
crescimento foram prejudicados “por uma estupidez chamada teto de gastos, que haveremos
de revogar”.
E complementou: “O
modelo que propomos, aprovado nas urnas, exige, sim, compromisso com a
responsabilidade, a credibilidade e a previsibilidade. E disso não vamos abrir
mão. Foi com realismo orçamentário, fiscal e monetário, buscando a
estabilidade, controlando a inflação e respeitando contratos que governamos
este país”.
Desde sua criação, o
Teto foi desmoralizado. Inviável por seu caráter austericida e recessivo, não
foi cumprido nem mesmo no período do usurpador Temer, que o criou. E foi
estourado em mais de R$ 300 bilhões com gastos eleitoreiros do Bolsonaro no
último ano do governo fascista-militar.
A manutenção do Teto
ficou, portanto, politicamente insustentável. E, com a vitória épica do Lula na
eleição, a proposta de sua extinção ganhou legitimidade, sobretudo diante das
urgências de reconstrução do país.
Apesar disso, no
entanto, na transição de governo o já indicado ministro Haddad assumiu o
compromisso de criar uma âncora fiscal no lugar do desmoralizado teto de
gastos.
Naquele contexto, um
compromisso desnecessário e que, claramente, seria contraproducente para o
próprio governo que iniciaria em 1º de janeiro de 2023, que teria de se
sujeitar a uma regra recessiva e de austeridade fiscal auto-imposta, e que
dificultaria a execução do programa eleito – como, aliás, se alertava à época,
e como se confirma hoje.
O roteiro é conhecido.
Na PEC da Transição o governo eleito se comprometeu a encaminhar ao Congresso
até 31 de agosto de 2023 um projeto de lei complementar instituindo um novo
regime fiscal no lugar da regra do Teto, que acabou revogada da Constituição.
Com quatro meses de
antecedência, em 18 de abril de 2023 o governo protocolou o projeto de lei
daquele que viria a ser [a armadilha] do Novo Arcabouço Fiscal, o NAF.
Em outubro de 2023, já
com a Lei do NAF aprovada [nº 200/2023], Haddad anunciou a meta do déficit zero
– outra medida palatável à Faria Lima, porém bastante problemática e
prejudicial para o governo.Economistas antineoliberais criticaram essas
escolhas e alertaram para os riscos de especulação e terrorismo financeiro
quando o governo fosse obrigado a anunciar a necessidade de ajustes
orçamentários devido à inviabilidade do NAF e do déficit zero.
Como uma profecia
auto-realizada, a partir do final deste mês de junho o Brasil foi alvejado por
ataques especulativos contra o real. Matéria do Estadão [6/7] dá a pista para
este esperável fenômeno: “Para analistas, revisão de metas fiscais agravou a percepção
de risco do País”.
O anúncio de cortes de
R$ 25,9 bilhões e a declaração do Haddad de que Lula determinou que “o
arcabouço seja preservado a todo custo” arrefeceram momentaneamente a
especulação, porém colocaram o governo numa encruzilhada: ou avança com o
programa eleito, ou capitula à armadilha do arcabouço fiscal.
Ainda que não seja a
intenção original, o NAF acaba reforçando a captura do Estado pelo rentismo,
uma vez que comprime as despesas sociais para honrar o pagamento da segunda
maior taxa de juros do mundo – só atrás da Rússia, um país em guerra, sujeito a
sanções arbitrárias e vítima do roubo de 300 bilhões de dólares das suas
reservas pelos EUA e OTAN.
Se o NAF estivesse
vigente nos três primeiros governos petistas [2003 a 2014], Lula e Dilma não
teriam podido realizar sequer metade do que realizaram e o combate à fome, à
miséria e às desigualdades não teria sido exitoso.
Isso porque a média de
crescimento das despesas naquele período foi de 6,47% ao ano, o que significa
um desempenho quase três vezes maior que o permitido atualmente pelo NAF, de no
máximo 2,5%, mesmo que o PIB e a economia nacional venham a crescer muito acima
deste limite.
As oligarquias
dominantes não abdicam de um centavo sequer dos mais de R$ 1,4 trilhão que
roubam do orçamento da União através da taxa estratosférica de juros e das
desonerações, favores e privilégios tributários.
Mas, ao mesmo tempo,
pressionam o governo a acabar com a política de aumento real do salário mínimo
e dos benefícios previdenciários, assim como com os pisos constitucionais do
SUS e da educação.
Há quem veja esta
realidade como inevitável, e diga que o governo é obrigado a ceder diante da
correlação de forças desfavorável, com um Congresso hostil e dominado por uma
maioria direitista e extremista.
Trata-se de uma
verdade parcial, porque a austeridade que prejudica os pobres causa perda de
apoio popular de um governo que já sofre pesadamente com a sabotagem da
oposição bolsonarista liderada por Arthur Lira e Roberto Campos Neto com apoio
da mídia hegemônica.
Para um governo
cercado pelas finanças, militares, oposição, mídia, grande capital, perder
sustentação e apoio popular poderá representar um risco fatal.
Se continuar a trilha
do arcabouço fiscal, o governo Lula poderá amargar uma derrota histórica que
atingirá não só a esquerda, mas a própria democracia liberal-burguesa.
¨ Bolsonaro renegava as vacinas e Lula renega a aritmética das
contas públicas. Por Fabiano Lana
Enquanto setores
pensantes e não pensantes do Brasil discutem se o dólar sobe por causa das
declarações de Lula ou por pura maldade dos agentes do mercado, algo que
poderíamos chamar de fato deveria ser menos controverso: as despesas do governo
crescem em proporção mais veloz do que as receitas. Politicamente nem mesmo
novas taxas ou acabar com as desonerações terão o condão de ajustar esse
processo estrutural.
Estudo do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), do governo federal, citado no editorial do
Estadão, concluiu que a receita da Seguridade Social no ano passado atingiu R$
1,179 trilhão, o equivalente a apenas 73,3% da despesa total de R$ 1,6 trilhão
do sistema de previdência. O déficit em 2023 chegou a R$ 429 bilhões. Em 2008,
as receitas representavam 111,8% das despesas assistenciais e de Previdência.
O economista da
Fundação Getúlio Vargas, Fabio Giambiagi, apresentou mais cálculos, esta
semana, na Folha de S. Paulo: a Previdência terá um aumento de ao menos R$ 100
bilhões em suas despesas nos próximos quatro anos devido à política de
valorização do salário mínimo instituída pelo próprio governo Lula.
Além disso, de acordo
com o último relatório do Instituto Fiscal Independente (IFI), órgão do Senado,
os déficits primários serão recorrentes e crescentes nos próximos anos.
A dívida pública
brasileira crescerá em 2024 para 78% do PIB até alcançar 100,6% do PIB em 2034.
Haveria, segundo a IFI, risco de estrangulamento fiscal absoluto em 2027
parecido com um “shutdown americano”.
Às vezes os problemas
têm causas, não culpas. No caso da Previdência o sistema é sustentado pelos
trabalhadores que estão na ativa, que garantem a remuneração dos aposentados.
Mas a estrutura
demográfica do Brasil tem mudado dramaticamente ao longo dos anos. São cada
vez, proporcionalmente, menos jovens a sustentar cada vez mais velhos. É uma
questão aritmética, digamos assim. A reforma de 2019 resolveu a matéria apenas
parcialmente
É uma Escolha de
Sofia, na verdade, numa referência ao filme de Allan J. Pakula, em que a
personagem de Meryl Streep precisa escolher qual filho precisa matar.
Cada Real que vai para
a Previdência é menos recursos para saúde, educação, infraestrutura, segurança
etc. Enquanto isso, no mundo político a situação é apresentada sem nenhuma
sutileza, como se seres malevolentes pressionassem o governo a cometer uma barbaridade
social.
Mas pode ser o
contrário. Caso nada seja feito, a saída para pagar as contas é fazer mais
dívida, o que aumentaria as taxas de juros futuros e diminuiria ainda mais o
pouco que temos para gastar até chegarmos ao colapso – mesmo que na cadeira da
presidência do BC estivesse sentada a atual presidente do PT, Gleisi Hoffmann.
Por falar em PT, esse
é exatamente o nó górdio das nossas contas públicas em dia que o presidente
Lula se reúne com os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento,
Simone Tebet, em busca de alguma saída para o rombo. Boa parte dos integrantes
do partido simplesmente não acredita nos números apresentados. O cálculo de
Giambiagi, por exemplo, foi considerado “terrorista” por Gleisi Hoffman.
E, além disso, segundo
a presidente do PT, a consequência de se buscar o equilíbrio nas contas é
entregar o país à extrema-direita. Veja o que ela escreveu no “X” ao comentar
as eleições da França.
“O primeiro turno das
eleições francesas deixou bem claro o que acontece com governos que adotam a
receita neoliberal e tiram direitos do povo: é a extrema-direita que tira
vantagem. Macron e seu centro liberal pagam nas urnas o preço da reforma da
Previdência que impuseram na marra e outras medidas de arrocho fiscal. E tem
gente que se diz democrata querendo impor políticas assim no Brasil”.
Bom, neoliberal
governo de FHC foi substituído democraticamente pelo PT, o que mostra que nosso
exemplo caseiro desmente a afirmação “terrorista” da deputada pelo Paraná.
Enfim, o partido do
presidente não é afeito a contas aritméticas. Nega a urgência e a precisão
contida nos números. Irão se opor a qualquer tentativa racional de ajuste a ser
apresentada hoje ao Lula.
Seria até
compreensível se fosse por cinismo, o que levaria a crer que se trata de
cálculo político, mas parecer ser mais da convicção de um adolescente que
cabulou as aulas de aritmética – o que é bem mais perigoso.
É a tragédia do
Brasil. Depois de convivermos quatro anos com quem negava os efeitos negativos
da pandemia e negava os efeitos benéficos e mesmo civilizatórios de uma vacina;
agora estamos sob o comando de quem nega a verdade dos cálculos de adição, subtração,
multiplicação e divisão.
¨ Pauta de costumes mostra que existe um desprezo ao amor à
democracia, Por Luiz Felipe Pondé
Por que, de repente, a
chamada pauta de costumes começou a fazer tanto barulho? É fácil rechaçar o
fenômeno como “fascista!” e “ultradireita!”. Mas, na verdade, esses xingamentos
com ares conceituais de nada adiantam. Afinal, essas pessoas que se importam com
a pauta de costumes encontram suas razões para isso. Ou basta chamá-los de
idiotas reacionários e ir tomar uma cerveja progressista?
Comunidades morais são
um conceito descendente da ideia de “little platoon” —pequeno pelotão— que
Edmundo Burke, no século 18, usava para descrever uma espécie de célula mater
da moral em sociedade.
O sociólogo americano
Robert Wuthnow publicou, em 2018, um livro que deveria servir de exemplo para
nossos intelectuais preguiçosos que repousam na ideologia em vez de trabalhar.
“The Left Behind , Decline and Rage in Small-Town America” —os abandonados,
declínio e fúria na América profunda, numa tradução selvagem.
Trata-se de um estudo
empírico, a base de um dossiê de entrevistas com a população da América
profunda, aquela mesma que passamos o tempo todo a xingar de trumpistas,
fascistas, racistas, misóginos. Não que tais adjetivos não caibam a eles, em
alguma medida. Mas eles são muito mais que isso e muito mais nuançados.
Enquanto não
aprendermos a entender as nuances do perfil dessa população furiosa e
identificada com populismos a direita, não seremos capazes de honrar a nossa
função de agentes do pensamento público.
“Comunidades morais” é
o conceito que Wuthnow —ele mesmo um confesso liberal, ou seja, membro da elite
acadêmica de esquerda da Yvi League, termo usado para as universidades de ricos
nos Estados Unidos— usa para descrever o que seriam essas pequenas localidades
rurais americanas de “ultradireita”. A América rural, como ele diz.
Uma rede de pequenas
empresas de todos os tipos, pequenos fazendeiros, pequenos comerciantes,
escolas provincianas, templos religiosos tocados pela própria população, que
compõem aquilo que o brilhante economista americano Thorstein Veblen
considerava a grande riqueza social e econômica da América. Essa rede é a
América profunda, distante das costas e das modas intelectuais que nelas
habitam.
A tese de Wuthnow é
que essas comunidades se sentem cercadas e atacadas pelas transformações que
põem em risco seus modos de viver. Muitas das suas pequenas cidades passam por
perdas econômicas importantes —não todas— o que agrava o sentimento de destruição
de todo um tecido social ancestral que eles valorizam e no qual se reconhecem.
A “pauta de costumes,”
como se fala entre nós, os preocupa —temas como aborto, drogas, casamento gay e
similares— e são objeto de combate, principalmente ali onde se reúnem, nas
igrejas.
Mas, mesmo esse
“combate” é mais nuançado do que parece quando pensamos neles como “adoradores
de Hitler”, como diz a indústria de fake news da esquerda. Quem pensa que só há
fake news de direita é um idiota em política contemporânea.
As opiniões são
múltiplas e contraditórias, como as reais opiniões são, principalmente quando
envolvem pessoas do seu círculo de afetos que fizeram um aborto ou são gays.
Essas pessoas não são umas idiotas, como tentam emplacar nelas essa imagem. A
“pauta de costumes” é uma das formas de responder à negação do direito de ser
como sempre foram.
Moral aqui não é uma
doutrina de certo e errado, mas uma rede de relações em que eles se reconhecem
e praticam nas famílias, no trabalho, nas igrejas, nas instituições políticas
das suas localidades. Valores impregnados como uma língua mater em que repousamos
quando a falamos. Sentem que “Washington” e seus “boys” querem obrigá-los a ser
o que eles não são. E aí, vão pro pau.
Que tal aproximarmos
esse conceito de algumas regiões do Brasil que se sentem atacadas pela nossa
inteligência acadêmica de esquerda?
Resposta: não. Basta
de conhecer o mundo, há que transformá-lo. O projeto é esmagar quem não
concorda comigo, de ambas as partes. O modelo do debate político hoje é o do
combate a heresias. O “amor” a democracia é uma farsa.
Fonte: Brasil 247/Agencia
Estado/FolhaPress
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