terça-feira, 9 de julho de 2024

Jeferson Miola: A encruzilhada do governo - entre o programa eleito ou a armadilha do arcabouço

Em evento no Rio uma semana antes da votação do primeiro turno [25/9/2022], Lula repetiu a pregação feita durante toda a campanha: “Acabou o teto de gastos quando eu for presidente da República. Não é porque eu quero gastar de forma irresponsável. O Brasil está precisando de um presidente arrojado que tome atitude de voltar a investir em infraestrutura rapidamente”.

Nos discursos no dia da posse no Parlatório do Planalto e no Congresso [1/1/2023], Lula disse que o SUS, a educação, os investimentos em áreas sociais, na infra-estrutura e no crescimento foram prejudicados “por uma estupidez chamada teto de gastos, que haveremos de revogar”.

E complementou: “O modelo que propomos, aprovado nas urnas, exige, sim, compromisso com a responsabilidade, a credibilidade e a previsibilidade. E disso não vamos abrir mão. Foi com realismo orçamentário, fiscal e monetário, buscando a estabilidade, controlando a inflação e respeitando contratos que governamos este país”.

Desde sua criação, o Teto foi desmoralizado. Inviável por seu caráter austericida e recessivo, não foi cumprido nem mesmo no período do usurpador Temer, que o criou. E foi estourado em mais de R$ 300 bilhões com gastos eleitoreiros do Bolsonaro no último ano do governo fascista-militar.

A manutenção do Teto ficou, portanto, politicamente insustentável. E, com a vitória épica do Lula na eleição, a proposta de sua extinção ganhou legitimidade, sobretudo diante das urgências de reconstrução do país.

Apesar disso, no entanto, na transição de governo o já indicado ministro Haddad assumiu o compromisso de criar uma âncora fiscal no lugar do desmoralizado teto de gastos.

Naquele contexto, um compromisso desnecessário e que, claramente, seria contraproducente para o próprio governo que iniciaria em 1º de janeiro de 2023, que teria de se sujeitar a uma regra recessiva e de austeridade fiscal auto-imposta, e que dificultaria a execução do programa eleito – como, aliás, se alertava à época, e como se confirma hoje.

O roteiro é conhecido. Na PEC da Transição o governo eleito se comprometeu a encaminhar ao Congresso até 31 de agosto de 2023 um projeto de lei complementar instituindo um novo regime fiscal no lugar da regra do Teto, que acabou revogada da Constituição.

Com quatro meses de antecedência, em 18 de abril de 2023 o governo protocolou o projeto de lei daquele que viria a ser [a armadilha] do Novo Arcabouço Fiscal, o NAF.

Em outubro de 2023, já com a Lei do NAF aprovada [nº 200/2023], Haddad anunciou a meta do déficit zero – outra medida palatável à Faria Lima, porém bastante problemática e prejudicial para o governo.Economistas antineoliberais criticaram essas escolhas e alertaram para os riscos de especulação e terrorismo financeiro quando o governo fosse obrigado a anunciar a necessidade de ajustes orçamentários devido à inviabilidade do NAF e do déficit zero.

Como uma profecia auto-realizada, a partir do final deste mês de junho o Brasil foi alvejado por ataques especulativos contra o real. Matéria do Estadão [6/7] dá a pista para este esperável fenômeno: “Para analistas, revisão de metas fiscais agravou a percepção de risco do País”.

O anúncio de cortes de R$ 25,9 bilhões e a declaração do Haddad de que Lula determinou que “o arcabouço seja preservado a todo custo” arrefeceram momentaneamente a especulação, porém colocaram o governo numa encruzilhada: ou avança com o programa eleito, ou capitula à armadilha do arcabouço fiscal.

Ainda que não seja a intenção original, o NAF acaba reforçando a captura do Estado pelo rentismo, uma vez que comprime as despesas sociais para honrar o pagamento da segunda maior taxa de juros do mundo – só atrás da Rússia, um país em guerra, sujeito a sanções arbitrárias e vítima do roubo de 300 bilhões de dólares das suas reservas pelos EUA e OTAN.

Se o NAF estivesse vigente nos três primeiros governos petistas [2003 a 2014], Lula e Dilma não teriam podido realizar sequer metade do que realizaram e o combate à fome, à miséria e às desigualdades não teria sido exitoso.

Isso porque a média de crescimento das despesas naquele período foi de 6,47% ao ano, o que significa um desempenho quase três vezes maior que o permitido atualmente pelo NAF, de no máximo 2,5%, mesmo que o PIB e a economia nacional venham a crescer muito acima deste limite.

As oligarquias dominantes não abdicam de um centavo sequer dos mais de R$ 1,4 trilhão que roubam do orçamento da União através da taxa estratosférica de juros e das desonerações, favores e privilégios tributários.

Mas, ao mesmo tempo, pressionam o governo a acabar com a política de aumento real do salário mínimo e dos benefícios previdenciários, assim como com os pisos constitucionais do SUS e da educação.

Há quem veja esta realidade como inevitável, e diga que o governo é obrigado a ceder diante da correlação de forças desfavorável, com um Congresso hostil e dominado por uma maioria direitista e extremista.

Trata-se de uma verdade parcial, porque a austeridade que prejudica os pobres causa perda de apoio popular de um governo que já sofre pesadamente com a sabotagem da oposição bolsonarista liderada por Arthur Lira e Roberto Campos Neto com apoio da mídia hegemônica.

Para um governo cercado pelas finanças, militares, oposição, mídia, grande capital, perder sustentação e apoio popular poderá representar um risco fatal.

Se continuar a trilha do arcabouço fiscal, o governo Lula poderá amargar uma derrota histórica que atingirá não só a esquerda, mas a própria democracia liberal-burguesa.

 

¨      Bolsonaro renegava as vacinas e Lula renega a aritmética das contas públicas. Por Fabiano Lana

Enquanto setores pensantes e não pensantes do Brasil discutem se o dólar sobe por causa das declarações de Lula ou por pura maldade dos agentes do mercado, algo que poderíamos chamar de fato deveria ser menos controverso: as despesas do governo crescem em proporção mais veloz do que as receitas. Politicamente nem mesmo novas taxas ou acabar com as desonerações terão o condão de ajustar esse processo estrutural.

Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), do governo federal, citado no editorial do Estadão, concluiu que a receita da Seguridade Social no ano passado atingiu R$ 1,179 trilhão, o equivalente a apenas 73,3% da despesa total de R$ 1,6 trilhão do sistema de previdência. O déficit em 2023 chegou a R$ 429 bilhões. Em 2008, as receitas representavam 111,8% das despesas assistenciais e de Previdência.

O economista da Fundação Getúlio Vargas, Fabio Giambiagi, apresentou mais cálculos, esta semana, na Folha de S. Paulo: a Previdência terá um aumento de ao menos R$ 100 bilhões em suas despesas nos próximos quatro anos devido à política de valorização do salário mínimo instituída pelo próprio governo Lula.

Além disso, de acordo com o último relatório do Instituto Fiscal Independente (IFI), órgão do Senado, os déficits primários serão recorrentes e crescentes nos próximos anos.

A dívida pública brasileira crescerá em 2024 para 78% do PIB até alcançar 100,6% do PIB em 2034. Haveria, segundo a IFI, risco de estrangulamento fiscal absoluto em 2027 parecido com um “shutdown americano”.

Às vezes os problemas têm causas, não culpas. No caso da Previdência o sistema é sustentado pelos trabalhadores que estão na ativa, que garantem a remuneração dos aposentados.

Mas a estrutura demográfica do Brasil tem mudado dramaticamente ao longo dos anos. São cada vez, proporcionalmente, menos jovens a sustentar cada vez mais velhos. É uma questão aritmética, digamos assim. A reforma de 2019 resolveu a matéria apenas parcialmente

É uma Escolha de Sofia, na verdade, numa referência ao filme de Allan J. Pakula, em que a personagem de Meryl Streep precisa escolher qual filho precisa matar.

Cada Real que vai para a Previdência é menos recursos para saúde, educação, infraestrutura, segurança etc. Enquanto isso, no mundo político a situação é apresentada sem nenhuma sutileza, como se seres malevolentes pressionassem o governo a cometer uma barbaridade social.

Mas pode ser o contrário. Caso nada seja feito, a saída para pagar as contas é fazer mais dívida, o que aumentaria as taxas de juros futuros e diminuiria ainda mais o pouco que temos para gastar até chegarmos ao colapso – mesmo que na cadeira da presidência do BC estivesse sentada a atual presidente do PT, Gleisi Hoffmann.

Por falar em PT, esse é exatamente o nó górdio das nossas contas públicas em dia que o presidente Lula se reúne com os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet, em busca de alguma saída para o rombo. Boa parte dos integrantes do partido simplesmente não acredita nos números apresentados. O cálculo de Giambiagi, por exemplo, foi considerado “terrorista” por Gleisi Hoffman.

E, além disso, segundo a presidente do PT, a consequência de se buscar o equilíbrio nas contas é entregar o país à extrema-direita. Veja o que ela escreveu no “X” ao comentar as eleições da França.

“O primeiro turno das eleições francesas deixou bem claro o que acontece com governos que adotam a receita neoliberal e tiram direitos do povo: é a extrema-direita que tira vantagem. Macron e seu centro liberal pagam nas urnas o preço da reforma da Previdência que impuseram na marra e outras medidas de arrocho fiscal. E tem gente que se diz democrata querendo impor políticas assim no Brasil”.

Bom, neoliberal governo de FHC foi substituído democraticamente pelo PT, o que mostra que nosso exemplo caseiro desmente a afirmação “terrorista” da deputada pelo Paraná.

Enfim, o partido do presidente não é afeito a contas aritméticas. Nega a urgência e a precisão contida nos números. Irão se opor a qualquer tentativa racional de ajuste a ser apresentada hoje ao Lula.

Seria até compreensível se fosse por cinismo, o que levaria a crer que se trata de cálculo político, mas parecer ser mais da convicção de um adolescente que cabulou as aulas de aritmética – o que é bem mais perigoso.

É a tragédia do Brasil. Depois de convivermos quatro anos com quem negava os efeitos negativos da pandemia e negava os efeitos benéficos e mesmo civilizatórios de uma vacina; agora estamos sob o comando de quem nega a verdade dos cálculos de adição, subtração, multiplicação e divisão.

 

¨      Pauta de costumes mostra que existe um desprezo ao amor à democracia, Por Luiz Felipe Pondé

Por que, de repente, a chamada pauta de costumes começou a fazer tanto barulho? É fácil rechaçar o fenômeno como “fascista!” e “ultradireita!”. Mas, na verdade, esses xingamentos com ares conceituais de nada adiantam. Afinal, essas pessoas que se importam com a pauta de costumes encontram suas razões para isso. Ou basta chamá-los de idiotas reacionários e ir tomar uma cerveja progressista?

Comunidades morais são um conceito descendente da ideia de “little platoon” —pequeno pelotão— que Edmundo Burke, no século 18, usava para descrever uma espécie de célula mater da moral em sociedade.

O sociólogo americano Robert Wuthnow publicou, em 2018, um livro que deveria servir de exemplo para nossos intelectuais preguiçosos que repousam na ideologia em vez de trabalhar. “The Left Behind , Decline and Rage in Small-Town America” —os abandonados, declínio e fúria na América profunda, numa tradução selvagem.

Trata-se de um estudo empírico, a base de um dossiê de entrevistas com a população da América profunda, aquela mesma que passamos o tempo todo a xingar de trumpistas, fascistas, racistas, misóginos. Não que tais adjetivos não caibam a eles, em alguma medida. Mas eles são muito mais que isso e muito mais nuançados.

Enquanto não aprendermos a entender as nuances do perfil dessa população furiosa e identificada com populismos a direita, não seremos capazes de honrar a nossa função de agentes do pensamento público.

“Comunidades morais” é o conceito que Wuthnow —ele mesmo um confesso liberal, ou seja, membro da elite acadêmica de esquerda da Yvi League, termo usado para as universidades de ricos nos Estados Unidos— usa para descrever o que seriam essas pequenas localidades rurais americanas de “ultradireita”. A América rural, como ele diz.

Uma rede de pequenas empresas de todos os tipos, pequenos fazendeiros, pequenos comerciantes, escolas provincianas, templos religiosos tocados pela própria população, que compõem aquilo que o brilhante economista americano Thorstein Veblen considerava a grande riqueza social e econômica da América. Essa rede é a América profunda, distante das costas e das modas intelectuais que nelas habitam.

A tese de Wuthnow é que essas comunidades se sentem cercadas e atacadas pelas transformações que põem em risco seus modos de viver. Muitas das suas pequenas cidades passam por perdas econômicas importantes —não todas— o que agrava o sentimento de destruição de todo um tecido social ancestral que eles valorizam e no qual se reconhecem.

A “pauta de costumes,” como se fala entre nós, os preocupa —temas como aborto, drogas, casamento gay e similares— e são objeto de combate, principalmente ali onde se reúnem, nas igrejas.

Mas, mesmo esse “combate” é mais nuançado do que parece quando pensamos neles como “adoradores de Hitler”, como diz a indústria de fake news da esquerda. Quem pensa que só há fake news de direita é um idiota em política contemporânea.

As opiniões são múltiplas e contraditórias, como as reais opiniões são, principalmente quando envolvem pessoas do seu círculo de afetos que fizeram um aborto ou são gays. Essas pessoas não são umas idiotas, como tentam emplacar nelas essa imagem. A “pauta de costumes” é uma das formas de responder à negação do direito de ser como sempre foram.

Moral aqui não é uma doutrina de certo e errado, mas uma rede de relações em que eles se reconhecem e praticam nas famílias, no trabalho, nas igrejas, nas instituições políticas das suas localidades. Valores impregnados como uma língua mater em que repousamos quando a falamos. Sentem que “Washington” e seus “boys” querem obrigá-los a ser o que eles não são. E aí, vão pro pau.

Que tal aproximarmos esse conceito de algumas regiões do Brasil que se sentem atacadas pela nossa inteligência acadêmica de esquerda?

Resposta: não. Basta de conhecer o mundo, há que transformá-lo. O projeto é esmagar quem não concorda comigo, de ambas as partes. O modelo do debate político hoje é o do combate a heresias. O “amor” a democracia é uma farsa.

 

Fonte: Brasil 247/Agencia Estado/FolhaPress

 

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