Guerrilha do Araguaia: Por justiça, ainda
que tardia
Foram dez
mil soldados contra 69 guerrilheiros no segundo maior deslocamento militar da
história do Brasil. Camponeses, até hoje, vivem a cultura do medo. Dez anos
após o fim da Comissão Nacional da Verdade, “pacto de anistia” ainda persiste.
Em 2024, completam-se
10 anos da publicação do relatório final (Brasil, 2014a, 2014b) e da extinção
da Comissão Nacional da Verdade (CNV). É essencial, então, revisitar essa
comissão para entender qual era a sua finalidade e o que trouxe de mudanças
anos depois. Instalada em 2012 a partir da Lei nº 12.528, de 18 de novembro de
2011, veio somente com a presidente Dilma Rousseff, do Partido dos
Trabalhadores (PT). Sabendo que a comissão atrelada à legislação é uma
vantagem, tinha como objetivo “efetivar o direito à memória e à verdade
histórica e promover a reconciliação nacional” (Brasil, 2011, online) na
esteira da justiça de transição. Desde já, problemas aparecem.
Para começar, a lei
delimita o período de investigação de violações de direitos humanos de 1946 a
1988, o que corresponde a 42 anos. A Ditadura Militar, porém, durou 21 anos,
com seu início no golpe de 1964 e seu fim por meio da eleição presidencial indireta
(via Colégio Eleitoral) de 1985. Trata-se de uma ambiguidade que amplia
demasiadamente os anos de estudo. Conforme questionam Teles e Quinalha (2020,
p. 47), “a ditadura não foi de 1964 a 1985 (ou 1988, se a referência for a nova
Constituição; ou, ainda, 1989, se for a primeira eleição direta para
presidente)? Então, quais violações de direitos humanos serão examinadas e
esclarecidas a partir de 1946?”. Somando-se a isso, teve um curto intervalo
para levantar e esclarecer os fatos, pois esteve ativa nos anos de 2012, 2013 e
2014, dissolvendo-se em 16 de dezembro de 2014, momento pós-eleitoral no qual
Dilma já havia sido reeleita.
A despeito das
comissões anteriores – como a Comissão de Anistia e a Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos -, nenhuma delas conseguiu cumprir os quatro
requisitos da justiça de transição, delineados por Teles e Quinalha (2020).
Segundo os autores, as quatro ideias centrais em tal discurso são: 1) direito à
reparação (pecuniária ou simbólica, individual ou coletiva); 2) direito à
memória (esclarecimento dos fatos e homenagem aos perseguidos); 3) direito à
verdade (acesso às informações dos arquivos da repressão); e 4) direito à
justiça (investigação dos fatos e responsabilização jurídica/penal daqueles que
violaram os direitos humanos). Embora a CNV seja a mais avançada, esclareceu,
mas não puniu. No parágrafo 4º do artigo 4º da Lei nº 12.528, lê-se: “as
atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou
persecutório” (Brasil, 2011, online). O “valor legal do Relatório” (Weichert,
2014, p. 124) é significativo, mas não é suficiente para responsabilizar os
torturadores, não deixando de apagar os fantasmas que perduram desde os anos
1980.
Além da falha justiça
de transição brasileira, marcada pela Lei nº 6.683 – a famosa Lei da Anistia,
de 28 de agosto de 1979 (Brasil, 1979) -, a própria CNV vem depois de um
considerável hiato temporal. O intervalo entre o fim da ditadura e a instalação
de uma comissão da verdade é gritante. São 48 anos depois do golpe de 1964 e 27
anos depois da eleição presidencial indireta de 1985. De fato, a
redemocratização brasileira se deu sob tutela militar. Apesar de ser uma
empreitada fundamental e indispensável, a CNV não enfrentou todos os problemas
da transição, cujo exemplo máximo se manifesta na repressão à Guerrilha do
Araguaia. 10 anos depois da CNV e 50 anos depois do extermínio perpetrado
contra os guerrilheiros do Araguaia, há muito a ser descoberto.
·
Os problemas da
transição no Brasil
Obviamente, a Lei da
Anistia tem uma face positiva no que concerne à volta de exilados e ao perdão
político de civis. Contudo, funcionou mais para os militares. Os civis já
haviam sido punidos pelo Estado; os que estavam ao lado da repressão, não. O
pacto trazido pela anistia “ampla, geral e irrestrita” privilegiou os
torturadores. Em uma redemocratização negociada, nenhum torturador foi punido e
os perpetradores de violações aos direitos humanos foram perdoados (Teles;
Quinalha, 2020). Para Teles (2020, p. 243), “a lei [de 1979] foi considerada
‘recíproca’, equiparando a violência da tortura praticada pelos agentes do
Estado à violência dos opositores da ditadura. Restrita e parcial, ela permitiu
o retorno da maioria dos exilados ao Brasil. (…) A interpretação hegemônica da
lei protege os agentes do Estado”.
Se os agentes do
Estado foram protegidos, os responsáveis não foram punidos ou presos. No
Brasil, o direito à reparação, nítido com indenizações pecuniárias, está
presente, mas esse é não mais que um dos quatro elementos para efetivar uma
justiça de transição, que aparece tardiamente no país. Ao englobar “crimes
políticos ou conexo com estes” (Brasil, 1979, online) de 02 de setembro de 1961
a 15 de agosto de 1979, surgia, entre o alto escalão das Forças Armadas que
retirou João Goulart à força, um pacto de esquecimento e impunidade para um
período de terror de Estado.
Para muitos militares,
o que tinha a ser cicatrizado se cicatrizou com a Lei da Anistia. A CNV foi
lida como uma ofensiva revanchista; apologistas da ditadura entenderam a CNV
como uma vingança que entrava em conflito com a lei de 1979. Na verdade, ninguém
foi punido no início dos anos 2010 – e o direito à justiça continua a ser
deixado de lado. Para piorar a situação, Teles (2020) comenta uma provável
subnotificação das vítimas fatais reconhecidas pelo Estado brasileiro. O
relatório final da CNV (Brasil, 2014a, 2014b) reconhece 434 casos de morte; a
Comissão Camponesa da Verdade (2014), criada em 2012 por movimentos sociais com
a finalidade de pressionar a comissão atrelada à Casa Civil, denuncia a morte
de 1.196 camponeses (e exclusivamente camponeses!) entre 1961 e 1988. Nesse
sentido, olhar para o caso da Guerrilha do Araguaia é primordial.
·
A Guerrilha do
Araguaia
Visto que a transição
brasileira, durante a segunda metade da década de 1980, foi caracterizada pelo
silenciamento e pela proteção aos torturadores, o combate à Guerrilha do
Araguaia, empregado conjuntamente pelas Forças Armadas (Exército, Marinha e
Aeronáutica) e pelas polícias militares dos estados do Pará, Maranhão e Goiás
(pois, até então, Tocantins não era um estado independente), é parte central
para se entender as continuidades e as mudanças. De acordo com Campos Filho
(2012, 2014) e Peixoto (2014), há uma guerra que continua depois do extermínio
da guerrilha e depois do fim da Ditadura Militar, assustadora por afetar
camponeses e indígenas diante da militarização da questão agrária. Ademais, em
2010, no caso Gomes Lund e outros versus Brasil, julgado pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, o
próprio Estado brasileiro “foi considerado responsável pelo desaparecimento
forçado de 70 pessoas, entre as quais membros do PCdoB [Partido Comunista do
Brasil, que optou pelo caminho da guerrilha rural, nos moldes do maoísmo] e
camponeses da região da guerrilha do Araguaia” (Bernardi, 2017, p. 66).
Cinco décadas após os
massacres de dezenas de guerrilheiros, o efetivo empregado para derrotar os
pecedobistas continua a ser o maior deslocamento militar no interior na
história do Brasil (Campos Filho, 2012; Maciel, 2014). Em números, perde
somente para o efetivo do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o qual teve mais de
25 mil homens na Força Expedicionária Brasileira. Enquanto o relatório final da
CNV (Brasil, 2014a) e Martins (1985, 1986) reconhecem 10 mil soldados no
combate aos guerrilheiros, Oliveira (1988) levanta uma quantia que chega na
casa dos 20 mil. Segundo o autor, é justamente pela queima de arquivos,
decorrentes da Operação Limpeza de 1975 (Campos Filho, 2012, 2014), que o
número seria o dobro do divulgado pela CNV.
De qualquer maneira, a
desproporcionalidade é colossal. Conforme se constata no relatório (Brasil,
2014a), as Forças Guerrilheiras do Araguaia totalizavam 69 homens e mulheres,
divididos em três destacamentos (A, B e C) com 22 pessoas cada, que respondiam
à Comissão Militar. 69 guerrilheiros enfrentaram, em três anos de conflito
(1972, 1973 e 1974), 20 mil soldados. A média chegava a quase 300 membros das
Forças Armadas e das polícias militares para 1 guerrilheiro. Foi, realmente, um
extermínio. A Ditadura Militar buscava que não fossem deixados sobreviventes e
que as notícias não se espalhassem.
Para entender esse
movimento, as datas são cruciais. Os “paulistas” (como eram conhecidos os
comunistas) chegaram no Sul do Pará em 1966. Os militares os encontraram 6 anos
depois, no dia 12 de abril de 1972. Nesse ínterim, mesmo sem começar a fase de
politização e propaganda, os guerrilheiros conseguiram certo apoio, pautado
principalmente pelas relações de solidariedade e trocas diárias que construíram
em meia década. Para combatê-los, as Forças Armadas começaram a insultá-los de
“terroristas”. Após duas campanhas fracassadas, os militares partiram para a
Operação Marajoara, Terceira Campanha, “operação de caça que buscava a
eliminação total da guerrilha” (Brasil, 2014a, p. 691). Como escreve Peixoto
(2014), a derrota da guerrilha passou por uma caçada humana que envolveu
execuções sumárias, torturas e decapitações. A violência foi tamanha que corpos
foram encontrados sem cabeças (Brasil, 2014a, p. 710), algo reconhecido e que
consta entre os documentos da comissão.
No relatório final da
CNV, dois capítulos abordam a Guerrilha do Araguaia. No volume 1, o capítulo 14
versa especificamente sobre tal episódio (Brasil, 2014a); no volume 2, uma
seção é destinada à guerrilha dentro do texto 3, referente às violações de direitos
humanos de camponeses (Brasil, 2014b). Isso ocorre porque houve adesão
camponesa à luta armada proposta pelo PCdoB. Em 1973, 29 camponeses foram
recrutados e passaram a integrar as Forças Guerrilheiras do Araguaia (Brasil,
2014b). Outrossim, os militares também reprimiram camponeses: foi identificada
a presença de mão de obra qualificada para tortura, isto é, militares formados
em “turmas de interrogatório” (Brasil, 2014a, p. 696). Para se ter uma dimensão
da violência empregada, instituiu-se uma cultura de medo e de silenciamento
entre os moradores da região.
·
As permanências da
Ditadura Militar 60 anos depois do golpe
Não é hiperbólico
afirmar que as heranças da ditadura são sentidas até hoje. 60 anos depois do
golpe de 1964, 50 anos depois da Terceira Campanha e 10 anos depois da extinção
da CNV, o negacionismo perpetua. Poucos anos depois da Lei nº 12.528, o cenário
mudou brutalmente. Em 2011, Dilma estava no seu primeiro mandato; em 2014, é
reeleita e, nas semanas seguintes, a CNV divulga seus três volumes de
relatórios finais; em 2016, é deposta; em 2018, Jair Messias Bolsonaro é
eleito.
Uma camada dos
militares – que, erroneamente, entendia o golpe como uma “contrarrevolução” –
sentiu-se atacada pela CNV, afinal o conluio interno e o acobertamento das
Forças Armadas seriam, inevitavelmente, minados em prol do direito à verdade
com o esclarecimento dos fatos e o acesso às informações dos arquivos da
repressão. Já na votação da lei de 2011, Jair Bolsonaro, então deputado federal
pelo Progressistas (PP), clamava que a CNV iria apunhalar as Forças Armadas em
uma posição claramente negacionista (Almada, 2021). Em 2016, em outra votação
de suma importância para cravar o destino do Brasil, abraçava outra polêmica.
Durante o impeachment
de Dilma, o mesmo Jair Bolsonaro, desta vez deputado federal pelo Partido
Social Cristão (PSC), homenageou, em seu voto, um comandante do DOI-CODI com
envolvimento em prisões de opositores que resistiam à ditadura durante os anos
de chumbo. Em sua fala, disse: “pela memória do Coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff” (Poder360, 2021). Depois de sair
impune do plenário, veio a se tornar o chefe do Executivo na eleição
presidencial seguinte. O resultado da eleição de 2018 é, acima de tudo, a marca
da volta dos militares com Bolsonaro, que, proporcionalmente, compôs seus
ministérios com uma participação relativa das Forças Armadas superior ao
período de 1964 a 1985 (Fuccille, 2021).
Vê-se, portanto, que a
Lei da Anistia privilegiou os golpistas. Apologias feitas no Congresso Nacional
não renderam punições – e o problema vai além. Quando estava no Palácio do
Planalto, Bolsonaro recebeu, em 2020, Sebastião Rodrigues de Moura, conhecido
como Major Curió ou Doutor Luchini, e o tratou como “herói do Brasil” (Brasil
de Fato, 2023; Castilhos; Matoso, 2020; Estado de Minas, 2023). Curió é um dos
responsáveis pela repressão à Guerrilha do Araguaia e é citado nominalmente no
relatório final da CNV como um dos líderes da Casa Azul, “centro clandestino de
tortura” (Brasil, 2014a, p. 694) na sede do Departamento Nacional de Estradas
de Rodagem, no município de Marabá-PA. Infelizmente, não é um acidente de
percurso: enquanto ainda era deputado federal, Jair Bolsonaro se posicionava
sobre a busca dos desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia e afirmava
que “quem procura osso é cachorro”.
<><> Em 10
anos, o que, de tão profundo, mudou?
De 2014 para cá,
retrocessos sociais enormes são sentidos, intensificando-se a partir daquilo
que sabemos que ocorreu em 2016.
Uma coisa é certa:
apesar das críticas feitas à CNV, é uma ação fundamental, posto que o paradeiro
de muitos dos que ousaram lutar ainda não foi revelado, divulgado ou desvelado.
A CNV pode ter sido
tardia e com funções tímidas, sem possibilidades de responsabilizar penalmente
os torturadores mencionados nas 3.388 páginas que compõem os três volumes do
relatório final, mas foi um passo adiante para tentar consolidar uma justiça de
transição brasileira, carente, defeituosa e incompleta. Tal déficit passa,
inegavelmente, pela Lei da Anistia.
A redemocratização
pós-1985 foi altamente judicializada, protegeu torturadores, silenciou
torturados, não teve punições e trouxe reparações discretas. Aqueles que
violaram os direitos humanos em sessões de tortura morreram impunes, de velhice
e com aposentadorias pomposas.
Em 2018, com menos de
quatro anos completos depois da publicação do relatório final da CNV,
simpatizantes da repressão já iam às ruas clamando por uma intervenção militar
e por um novo Ato Institucional nº 5 para fechar o Congresso e suspender a
garantia do habeas corpus, abrindo caminho para a perseguição de dissidentes.
Com isso, vê-se, a despeito da subnotificação de vítimas fatais, do hiato
temporal e do debate focado no âmbito legislativo (que deixou movimentos de
familiares de desaparecidos políticos em segundo plano), a urgência de
retomarmos e reavermos a CNV e seus resultados.
Para além dos
relatórios, é imprescindível, paralelamente, relembrar a perseguição à
Guerrilha do Araguaia. A Terceira Campanha foi uma caça, um massacre e um
extermínio extrajudicial em que milhares (10 a 20 mil) mataram e apagaram os
rastros de dezenas (69 membros do PCdoB e 29 camponeses que aderiram à luta
armada). As consequências são sentidas até a atualidade, pois os locais também
sofreram com os efeitos da repressão.
10 anos depois da CNV
e 50 anos depois do extermínio contra os guerrilheiros do Araguaia, a ditadura
ainda não foi totalmente vencida. Há um pacto de anistia que ainda permanece
enquanto um obstáculo e favorece a manutenção da impunidade.
Fonte: Por Vinícius
Carluccio de Andrade, em Outras Palavras
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